Sábado, 14 de Junho de 2025. Terceiro (e, para nós, último) dia da edição de 2025 do Primavera Sound Porto. Dia com lendas consagradas e com nomes que caminham para essa mesma consagração, foi mais um dia típico de um Primavera, ainda que mais restrito ao rock dito alternativo, com as excepções da prata da casa, aqui encarnada por David Bruno, e pelos Squid, banda inglesa que encerra em si uma data de coisas e que vai bem lançada para a condição de “bandão”.
A ansiedade de fim de festival já se começava a instalar, mas o moral continuava em altas e a reflexão continuava apurada, que entre nós dizia-se a frase do dia, consentânea com o psicadelismo de uns Squid: “a minha lagosta está a precisar de umas calças novas”. A jornada de festival prometia.
David Bruno – palco Revolut
A prata da casa foi a primeira salva sónica do terceiro dia de festival (com Baleias de Roberto Carlos na introdução). David Bruno (ou DB), o bardo de Gaia e autêntico etnógrafo dos costumes da Portugalidade contemporânea com umas batidas, samples e solos de guitarra pelo meio, declarou com toda a propriedade ser o único artista de Gaia a actuar duas vezes no Primavera Sound Porto e pediu palmas para o assador de chouriços, esse instrumento de congregação social dos membros da Portugalidade.
Em jeito de celebração de percurso, para além de Marquito (o Eddie Van Halen de Barcelos) na guitarra e de António Bandeiras (o melhor hypeman nacional dos últimos anos) no alpinismo de palco e na distribuição de rosas, houve ainda participação de convidados especiais. E, nunca esquecer, concerto de David Bruno e comparsas tem sempre direito a coros de apoio a tudo e mais alguma coisa: tascos (salvem-nos dos influencers), autarcas (incluindo Isaltino) e terras (Gondomar e Gaia sempre no coração e no PA).
Para começar, um repasto sonoro de homenagem a todos os que deixaram o seu país em busca de uma vida melhor. Praliné e suas sapateiras e chocolates (o Toblerone pode ficar para vocês) foram um doce aprimorado pelo solo de Marquito. Todavia, não se percam com o mel de Doucement, senão ainda levam um “camien” em contramã nas ventas.
Sempre demasiado gentil, DB apresenta Marquito como o descendente artístico directo de Phil Mendrix e Zé Pedro e pede palmas para Bandeiras, o Homem Aranha das Caxinas (que não precisa de lançar teias, só mesmo de uns bons sapatos de pala) que entretanto subiu pela estrutura do palco acima, com cero miedo do vento. Com tanta gentileza, temos mesa marcada no Carpa (esse clássico de Gaia e da obra de David Bruno) para umas duas mil pessoas. O picante fica para a suite no Tropicana.
Para Tema de Sequeira exigiu-se a participação de Rui Reininho, com um fato-de-treino de veludo ou coisa que o valha pedido emprestado ao melhor drip-fetiche de George Costanza. Personagem de mil obras em mármore e igual número de amantes, o Mundo é a ostra de Sequeira e construir é o seu afrodisíaco.
O desfile de convidados não se ficou por aqui. Do recente Paradise Village foi trazida Dez em Dez, essa ode à figura feminina e ao eventual projecto de vida em comum (“[…] o que importa é ser feliz, ‘tar junto, ter um petiz […]”), que lá porque se conheceu a deusa na discoteca tal não significa que esta gente não seja séria. Estando-se em ocasião de gala, para o palco vieram Helena de Vilar do Paraíso e Presto dos Mind da Gap, replicando os papéis de estúdio.
Azeitona Cocktail e Bebe & Dorme são G(aia)-Funk. A sondagem à plateia revelou que a maioria eram indígenas, mas ainda assim espera-se que os poucos estrangeiros presentes tenham aprendido que Miramar é infinitamente superior a Benidorm, até porque por cá temos um Bandeiras a transformar-se no Travis Bickle do Norte depois de ter rapado o cabelo até perfazer uma crista enquanto se mirava numa travessa de inox do merchandise de David Bruno.
Num registo obviamente diferente daquele que o Conjunto Corona apresentou no ano passado, o lugar de David Bruno nesta edição do Primavera Sound Porto ficou gravado a ouro e nem sequer vimos todo o concerto, que no palco Super Bock as Horsegirl estavam já com a carroça em andamento. Ficam as rosas e os mármores como monumentos-recordação.
Horsegirl – palco Super Bock
“Graças” às sobreposições de horário, fomos forçados a abandonar o festão de jogo, barbearia improvisada e homenagens a várias localidades deste nosso Portugal da parte de David Bruno para espreitarmos o concerto das Horsegirl, trio de Chicago (cidade com ampla representação nesta edição, só faltaram mesmo os Shellac) constituído por Nora Cheng, Penelope Lowenstein e Gigi Reece. Desde a estreia em LP em 2022 com Versions of Modern Performance que o assunto (e a imprensa) lhes tem sido favorável, para mais que há um Phonetics On and On novinho em folha para mostrar. Haveria, pois, que tirar as teimas ao vivo.
Lamentavelmente, o que em disco soa intrigante, ao vivo soa a secante. In Twos induz o sono e torna-se banal e facilmente olvidável. Confessamos aqui algum arrependimento em termos saído de um concerto que já ia a caminho de ser um dos melhores do festival como foi o de DB para nos enfiarmos numa provável desilusão como o de Horsegirl.
O palco era o mais pequeno do recinto, pelo que não haveria o problema de excesso de dimensão como sucedeu com os Beach House no palco Vodafone na noite anterior. Se o trio não prima propriamente pelo sangue na guelra, muita da nuance de estúdio perde-se ao vivo, lutando a banda para manter os quase sussurros das vozes a um nível consistente ao vivo.
No entanto, houve tempo para uma breve redenção antes do fim do concerto mediante I Can’t Stand To See You e, sobretudo, 2468, ambas reminiscentes das Raincoats da “nossa” Ana da Silva. O público finalmente acordou e deu de si com uns saltos típicos de quem tem de segurar um tote e um copo ao mesmo tempo que tem de manter a pose “cool”.
Ficou a esperança de que, numa eventual visita em nome próprio, a música das Horsegirl esteja melhor enquadrada numa sala mais pequena e com outros arranjos para finalmente haver concordância entre a qualidade que demonstram em álbum e o que delas se espera ao vivo.
Kim Deal – palco Porto
Quando falávamos acima em lendas consagradas pensávamos (também) em Kim Deal, grande senhora do rock independente dos últimos trinta e tal anos. Cremos, sem reservas, que foi para gente como ela (e para a irmã gémea, Kelley) que a palavra “fixe” foi criada; afinal de contas, quando se passa pelos Pixies, pelas Breeders e ainda se tem vagar para se estrear a solo no ano passado com o óptimo Nobody Loves You More, não se pode ser outra coisa senão uma lenda da fixeza.
Com honras de palco principal e com uma moldura humana já apreciável (incluindo na bancada), imediatamente antes de Kim Deal entrar em palco já o seu concerto se estava a tornar num dos dignos de memória deste Primavera Sound Porto: no PA passava uma gravação de The End of Radio dos Shellac, antiga banda residente do festival, da qual foi membro o saudoso Steve Albini, que tanto da carreira de Kim Deal gravou (incluindo a referida estreia a solo, que acabaria por ser dos últimos trabalhos de Albini).
Logo no primeiro minuto e tal de Nobody Loves You More (e do concerto) revela-se o novo rumo de Kim Deal. Arranjos de sopros e cordas pedidos de empréstimo a Sinatra, Dean Martin e companhia colocam esta fase da carreira de Deal num plano distinto – e extremamente convincente na sua piada.
Antes de mais distinção sónica em Coast, saca do sorriso matreiro com que nos entra pela vida adentro há décadas e lê umas notas em português macarrónico (palmas para o esforço, contudo): “seish novash cançõesh e seish velhash”. E assim foi, prosseguindo com uma demonstração da sua nova força criativa que se prolongou até à abrasão de Big Ben Beat.
Se este é o presente excelente de Kim Deal, então o passado das “velhash cançõesh” como No Aloha galvanizou ainda mais a torcida. De facto, em comparação com o público presente em Algés no ano passado (que na verdade só estava a guardar lugar para Pearl Jam) no concerto das Breeders, este deu-lhe quinhentos a zero; respeitador e conhecedor em vez de irritante e sem civismo (para mais sendo as Breeders e os Pearl Jam da mesma linha temporal e sónica), ajudou cabalmente a compor o ramalhete, em particular quando Deal apitou (literalmente) para o pontapé de saída de Cannonball, êxito maior das Breeders.
Uma menção para a enternecedora Drivin’ on 9, versão das Breeders de uma canção dos Ed’s Redeeming Qualities (“uma banda divertida, tipo os Pogues com mais dentes”, terá Deal dito deles), aqui brilhantemente melhorada com arranjos de sopros e que continuou em loop pela nossa cabeça recinto fora.
Para além da voz inigualável e das idiossincrasias de Deal, o concerto viveu também da competência da banda, que cumpriu e não a deixou ficar mal em momento algum, nem sequer no culminar do concerto com Gigantic dos Pixies, momento em que aquela finalmente pega no baixo e traz à colação o porquê de ser tão influente, referindo-se a esse período como “eu estive numa banda chamada Pixies e gravei um disco chamado Surfer Rosa com um tipo chamado Steve Albini”. Como se diz lá para os lados da terra de Deal: “game recognizes game”.
Um grande, grande amor de actuação. Dir-se-á mesmo: gigante. Vêem, caros veteranos do rock alternativo de noventas, é inteiramente possível manterem-se relevantes, basta só terem noção e talento.
Destroyer – palco Super Bock
À sua peculiar maneira, Dan Bejar é uma lenda. Idiossincrático até dizer chega, por detrás do exterior brusco e da pose blasé está um dos melhores letristas da sua geração (para além de antigo membro dos New Pornographers, que muito ajudou a tornarem-se numa banda decente), que há três décadas vem desenvolvendo uma carreira intrinsecamente brilhante.
De blazer e copo na mão entra em palco com umas ganas escamoteadas e vai daí para uma poderosa The Same Thing as Nothing at All, faixa de Dan’s Boogie, lançando no corrente ano. Espécie de balada, é bastante mais pesada sonicamente do que muito post-rock que para aí anda – duas guitarristas e um trompete maior do que o mundo contribuem para o facto.
A dançável It Just Doesn’t Happen (de Have We Met, de 2020) torna-se aqui numa malha de heartland rock, com Bejar de pandeireta e papéis em punho sem perder pitada e inteiramente no controlo da verdadeira besta sonora que é a sua banda. Gingão e a destilar “sprezzatura” à sua maneira, fita o público como um inspector de polícia mica um detido por um crime grave enquanto desfila os versos de Times Square.
O MVP do concerto não é apenas Dan Bejar. Também JP Carter, trompetista e teclista de longa data, é concorrente ao prémio de melhor em palco. Ora dá texturas portentosas nos sopros, ora auxilia na melodia, sendo uma peça fundamental da engrenagem dos Destroyer.
A selecção de canções para o alinhamento tem aqui bastante mais critério do que aquilo que se pensa. Tinseltown Swimming in Blood foi o momento dançável que faltava no meio do peso das guitarras e da bateria; uma batida convidativa ao movimento e Bejar a contar-nos mais umas abstracções da sua lavra.
Este mantinha-se com o seu ar de tipo que saiu da cama para uma reunião completamente desnecessária, mas com todo o acerto na interpretação. Fosse com Bologna ou Sun Meet Snow, os Destroyer não brincam em serviço, como bem se viu no crescendo da segunda.
Rasgados aplausos mereceu a execução inexcedível de Kaputt. Canção que colocou Destroyer no mapa para muita gente (como foi o nosso caso), convidou novamente o pezinho a mexer e o ouvido a seguir as fantasias de estrela do rock de Bejar, tantas delas o chavão de antanho: cocaína, mulheres e adulação da imprensa lambe-botas do New Musical Express ou da Smash Hits (tentamos não ser como esta gente em tempos foi).
Quando saímos da zona do palco Super Bock estava a terminar uma admirável Chinatown. A qualidade de Destroyer é tal que, mesmo sem termos visto todo o concerto, este destruiu (por assim dizer) as saudades que tínhamos de ver a banda de Dan Bejar e entrou para os campeões desta edição.
Squid – palco Revolut
Aquando da passagem dos ingleses Squid por Paredes de Coura em 2023, fomos da opinião de que o seu substrato sónico era baseado em Manchester, nomeadamente na obra dos A Certain Ratio e dos The Fall; estávamos no tempo de O Monolith, portento post-punk que já começava a levantar a ponta do véu para outras paragens. Com efeito, sendo a banda parte integrante da cena do Windmill (e algo adjacente à cena jazz de Londres, dos saudosos The Comet Is Coming/Sons Of Kemet de Shabaka Hutchings), está-lhe na massa do som a exploração, que ter colegas de cena como os Black Country, New Road ou Maruja acaba por ter o seu efeito de contágio. Marcando o calendário o ano de 2025, é mesmo para paragens bem diversas que a banda de Brighton se encaminha.
Toda esta atitude é bem mais punk do que muita mediocridade que não passa dos três acordes, do blusão de cabedal e da mesma mensagem panfletária mais gasta do que retórica política “made in” TikTok.
Neste ano da graça de 2025, a evolução dos Squid levou canções como Swing (in a Dream) para terrenos dos Weather Report e dos Can; os sopros e a percussão são ainda mais centrais à manobra do grupo e Ollie Judge, baterista e vocalista de serviço, não perde fôlego nenhum. Quebras e improvisos levitam banda e público, com uma dose cavalar de psicadelismo em cima. A contrastar está uma mais linear The Cleaner, oriunda de Town Centre, EP de 2019 no qual a banda ainda estava a afinar o som mas que já continha traços distintivos, a tal ponta do véu a que nos referimos supra. Em abono da verdade e dada a sua consistente evolução, o véu dos Squid é do tamanho de algo com que Christo e Jeanne-Claude cobriam monumentos.
Como também já se viu uma quantidade de vezes noutros espectáculos desta edição do festival, o material de estúdio dos Squid transfigura-se maravilhosamente em palco. Não voltaremos a ouvir Building 650 (do notabilíssimo Cowards, editado este ano pela Warp) ou Undergrowth de outra forma, num duplo sentido: as interpretações ao vivo agigantam-se perante as versões de estúdio e a banda não é de se repetir tintim por tintim na execução.
Nesta altura do campeonato, os Squid merecem uma vinda em nome próprio para poderem abrir os braços e soltar os bichos (como os de Cro-Magnon Man) sem as limitações de tempo de um festival (com estas ficamos aos gritos interiores como os de Pamphlets). Talvez um dia venham a ser cabeças-de-cartaz e aí terão bastante mais tempo para apresentar as suas ideias, porque quem já está com as duas mãos no troféu de “bandão” merece-o plenamente e uma dose de lulas destas não é de se recusar.
Com o experimentalismo do confronto guitarras v. sopros dos Squid acaba este resumo do terceiro dia do Primavera Sound Porto, que os senhores (e que senhores, senhores!) que se seguiriam, as lendas Cap’n Jazz e o furacão de atitude mental positiva Turnstile (que também caminham para lendas), têm direito a textos próprios.
A título de rescaldo, esta foi uma edição notável, superior à do ano passado. Sem chuva, sem cancelamentos, com uma melhor distribuição por palcos e com propostas que espelharam a tradição de passado, presente e futuro da música popular alternativa que é apanágio de um Primavera Sound (ainda que com pendor menos experimental do que no ano transacto), o balanço é extremamente positivo. Mesmo sem Shellac, a coisa está bem entregue, Steve Albini é agora santo padroeiro do certame e o Parque da Cidade do Porto continua a ser local de construção de um acervo sónico memorável.
Continua a faltar o Guedes, mas ao menos houve Conga – uma bifana aqui deste tasco é o melhor after possível nos tempos que correm.
Até para o ano, Primavera Sound Porto.