David Bruno

Raiashopping
2020 | Edição de Autor | Hip hop, tugawave

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Vinte anos volvidos desde o início do século e do milénio, a nostalgia continua a perpassar pela cultura popular como um livre do André Cruz por cima de uma barreira (viram?). Bem assim, depois da grande reabilitação dos anos oitenta através de meios como Grand Theft Auto: Vice City – e da consequente exploração de sons da década, que dura até hoje – chegámos já à nostalgia dos anos zero, década em que muitos passaram da adolescência para a idade adulta (olá). David Bruno (ou dB), mago já calejado das batidas (ou da tugawave) e membro do Conjunto Corona, traz-nos Raiashopping, um álbum de recordação do seu passado, entrelaçando episódios da vida no interior esquecido e menorizado com a modernidade sónica urbana. E que, parece-nos, quer dignificar (e bem) aquelas parcelas de Portugal e provocar um exercício de reminiscência a quem lhe ouvir e vir a obra, para mais que as canções são acompanhadas de vídeos editados pelo próprio.

Com o fidelíssimo comparsa Marco Duarte (ou Marquito; também membro dos Leviatã), David Bruno pega nas suas credenciais de antropólogo digital e saca da forja mais um bloco de canções, agora sobre a infância e viagens à aldeia de Freixeda do Torrão, no concelho de Figueira de Castelo Rodrigo, uma espécie de Amarcord com beats e guitarradas. Não é exemplo único, visto que ainda no ano passado os Sensible Soccers fizeram exercício semelhante no magnífico Aurora, ainda que numa toada mais abstracta, partindo de sinapses de memória em vez de episódios concretos.

O autor destas linhas não é natural da Beira Alta nem de Trás-os-Montes; é, contudo, lisboeta de primeira geração e descendente de uma beirã (e de um açoriano) e, tal como David Bruno, passou temporadas na terra do lado materno, num pedaço de Portugalidade cujo foral é anterior à fundação da Pátria. E, como ouvinte, também se identifica com muito do conteúdo de Raiashopping. No ensaio clínico da audição, relembrou as rendas nas antenas dos carros (e os buzinões) em dia de casamento e as conspirações e batatada para ver quem enfeita o tractor da procissão num dado ano. Perante isto, avisamos já: é um belo disco.

Se hoje em dia já pouco se vai à terra materna (mea culpa), as aventuras pelo Portugal castiço e genuíno (mas também das tragédias das sopas de cavalo cansado e da desertificação) e pelo outro lado da fronteira continuam, seja na Correlhã (Ponte de Lima), em Paredes de Coura ou em raid até Vigo. Não se compra caramelos, antes cerveja artesanal e discos, esses novos pralinés que adoçam a existência.

Com o sample de declamação de Miguel Torga (criteriosa selecção, a fazer lembrar DJ Cruzfader no clássico Ressurreição) na Introdução não restam dúvidas: este é David Bruno a afastar-se da selva de cimento do Aparthotel Céu Azul e da saga de Adriano Malheiro e a enveredar pelo sentimento telúrico, por entre calhaus e courelas na Beira Alta e em Trás-os-Montes. Arrancamos com uma placa a indicar que vamos sair de auto-estrada para nacional e com outra azul a dizer “Espanha”.

Relógio da Green Sands (essa espécie de cerveja para menores de idade em tempos idos) e calendário do mecânico na parede, um fino, uma fatia de bola e um café com desinfectante depois de se varar as oliveiras (também o fizemos no olival do avô) ou de cavar batatas e umas suecadas, bola na TV ou histórias e broncas da terra. Eis Café Central. Não temos lobisomens, mas temos similar, também na Beira Alta: Pata Larga, o homem tão alto que podia ser centro na NBA e que terá andado à pancada com lobos quando protegia crianças a caminho da escola, qual Groundskeeper Willie dos Simpsons.

Certeiro o primeiro interlúdio do disco, Momento n.º 1. Para além de manter a tradição de interlúdios em álbuns de hip hop (ou, concomitantemente in casu, de tugawave), mantém-nos no ambiente do café central, onde rodam as peças de dominó e os traçadinhos, com uma melodia que podia bem ser de um programa de receitas nacional dos idos de noventas.

Como ao relembrar também dá para dançar, ao programa de receitas segue-se um doce dançável chamado Praliné. Suave golpe de mão transfronteiriço para orientar caixas de “Juliã” (Guylian; um pormenor sublime do disco, este piscar de olho às bolas fora na pronúncia de “coisas lá do estrangeiro”, erro inocente que todos já cometemos). Como várias outras composições de David Bruno (e de Marquito), arrancou-nos um sorriso – porque também em tempos assim vivemos. E confirma-se: dB tem já uma identidade própria nas batidas, joga no topo do género e não troca pesetas por tretas.

Desengane-se quem pense que o disco não tem o David Bruno sedutor sussurrante. Com Salamanca By Naite temos batida a piscar o olho ao clássico absoluto do cânone engatatão que é Sexual Healing de Marvin Gaye e versos que pedem mais umas flutes para abafar o picante da malha e dos pimentos de padrón. Não, ainda não nos cansámos dos versos esparsos de remate às canções, essa marca registada de dB. Decerto que, neste Amarcord, a Gradisca da espuma também não.

Após mais um Momento (ouvimos lá ao fundo o anúncio de um produto qualquer de Verão), é tempo de ir à Festa da Espuma – cuidado é com curtos-circuitos no material de Marquito, que a textura é toda dele. Evocando tempos de há duas décadas em que o Hélder era mesmo o Rei do Kuduro (o genial neo-kuduro bajulado pelas Pitchforks ainda era miragem), merece um drip não só da Cofides e da Lacatoni, mas também da Reetruck e da Patrick, que um ritmo destes leva ao gesto malandro à cachopa ali do canto e a dois Pisang Ambon até se desvanecer a espuma.

A romaria não pára; segue-se Flan Chino Mandarim, cuja melodia, batida e samples apelam à anca e ao sonho de tarde de Verão. Três e meia apitando no Casio e Dire Straits no rádio, Sol ao alto e a labuta da ida à fonte interrompendo o sonho psicadélico da canção mais catchy de Raiashopping. Segue-se-lhe Momento n.º 4, que é – tal como Fenómeno de Refracção dos Sensible Soccers – um recuerdo arqueológico televisivo que só vem agigantar o conjunto. Aquele tempo em que à uma da tarde ou às oito da noite se estava em sentido para ver o que se passava no País e lá fora, porque apps de notícias ou televisão por cabo eram miragem.

Marco Duarte é o Mark Knopfler da estrada nacional e da paisagem natural, sempre certeiro com a SG nos arranjos – precioso instrumento no desfiar do Raiashopping da nossa memória bem sentados ou a guiar estrada fora, num sucessor contemporâneo de um Renault 5, Opel Tigra ou Fiat Tipo. Um dos melhores elogios que se pode fazer ao álbum e à restante obra de David Bruno e Marco Duarte é este: se um estrangeiro nos perguntar por discos que retratem a contraposição entre o Portugal urbano contemporâneo e o Portugal rural relativamente recente, não haverá mais digna obra para a demonstrar.

Para fechar o álbum, Doucement. Dificilmente se poderá contar a história do interior de Portugal contemporâneo sem incluir a sua diáspora – incluindo a referência ao françoguês, aos desvarios com álcool e à condução perigosa pelos nossos emigrados. Por entre montes estriados por estradas nacionais e por sulcos de vinha e de oliveira o Sol de Raiashopping põe-se devagarinho e com dignidade – e sem estar em contramã.

Poder-se-ia dizer que tanta nostalgia por parte de artistas, colectivos e movimentos já enjoa; contudo, com gosto e ponderação (e não transformando a nostalgia em marca registada) a memória terá sempre lugar na cultura popular. Gerações de gente como David Bruno fizeram a ponte entre os tempos sem Internet e com Internet; das histórias de férias (muitas delas de pescador ou à moda de Fernão Mendes Pinto) contadas aos amigos na escola sem grande matéria probatória até à partilha online de fotos (analógicas, ainda) de férias em criança na terra dos pais, num universo que foi a espaços fascinante, entediante (quando se é adolescente e parvo, passe o pleonasmo) e hilariante.

Meter-lhe umas batidas, samples elegantes e arranjos de guitarra da mesma laia só resulta mesmo em mais um belíssimo registo de David Bruno, cada vez mais um contador de histórias fundamental na música popular nacional – seja como um homem de paixões romântico como o Marante e apaixonado tipo Toy nos seus poisos do Carpa ou do Monte da Virgem, um Sonny Crockett de Gaia ou um memorialista da Raia. É o seu A Cidade e as Serras, a conciliação e homenagem do artista de matriz cultural citadina – nacional e estrangeira – com as suas raízes no Portugal profundo. Sem o desprezo e o cosmopolitismo bacoco de muita gente que se diz urbana (mas de fraca urbanidade) – apenas e só amor à Portugalidade, com todos os seus defeitos e virtudes.

Este é um disco escorreito, provindo da memória e da criatividade de David Bruno (e de Marco Duarte), deixando a porta entreaberta a que cada ouvinte que com ele se identifique puxe pela sua própria recordação. Sempre a ternamente lembrar e a rir com (mas nunca de) os que ainda vivem longe do bulício e que respeitam e trabalham a terra. Doucement se desfia o tempo.


sobre o autor

José V. Raposo

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