Reportagem


Vodafone Paredes de Coura

No futebol, quarta-feira é dia de Liga dos Campeões. Em Coura, quatro campeões tocaram à quinta.

Praia Fluvial do Taboão

18/08/2022


© Hugo Lima - https://www.facebook.com/HugoLimaPhotography

O terceiro dia do Vodafone Paredes de Coura foi o primeiro dia “a doer” segundo o calendário tradicional. E em termos de dor falamos mesmo de mais um dia de boa porradinha – aquela do jazz dos The Comet Is Coming, do indie rock (o bom) dos Parquet Courts ou da porrada de um coração ardente de Donny Benét ou dos corações ao alto dos Turnstile.

 

 Surprise Chef

 Os australianos apanharam “três aviões e muitos carros” para estarem ali no palco secundário às seis da tarde de 18 de Agosto de 2022, o dia da sua estreia em palcos europeus. E, humildes, acrescentaram: “que estão aqui a fazer quando deviam estar aqui ao lado no rio?”

Da nossa parte, estávamos a arregalar os olhos da banda (perante a boa casa) e a assistir a um concerto suave, não no sentido de uns BadBadNotGood “light”, mas de um trio que entende que mesclar jazz e funk é uma boa ideia para juntar à brisa de fim de tarde minhoto. De composição cuidada, ouvimos aqui e ali laivos de The Human Abstract de David Axelrod e também de Curtis Mayfield, ainda que tudo seja instrumental.

Concomitantemente, os Surprise Chef foram uma boa surpresa e, quem sabe, voltarão ao Taboão quando já tiverem tomado conta do seu cantinho no funk para hipsters.

 

 

Donny Benét

 De um trio australiano para outro, de rapazes tímidos para o agrupamento de Donny Benét (composto pelos irmãos Waples, com Ben “Donny Benét” Waples à cabeça), o gajo que, nunca é demais dizê-lo, é o tipo com mais pinta desde há anos em Coura – e sê-lo-á para os próximos cinco anos, pelo menos. Chegou, viu e venceu, tornando aquele palco no seu templo de ancas gingonas e olhares marotos, com Working Out.

Apesar de ser dono de um jogo impressionante, Benét não é o tipo mais bem parecido do Mundo; sabe-o tão bem, que Moving Up é exactamente sobre isso: sobre os últimos de ontem serem os primeiros de hoje, serem aqueles cujos músculos peitorais e genitais estão mais rijos do que aqueles que gozavam com eles outrora. Um conto bem humorado sobre o envelhecimento e o karma, dançável até abanar o tutano, ou não o ordenassem as linhas de baixo de Benét e a bateria e saxofone dos seus manos.

Em benfazeja premonição para o que viria no restante cartaz do dia, Second Dinner é um portento neo-disco oriundo da escola Moroder e demais vultos do italo-disco, que não dá descanso e puxa para o pé de dança. E, claro, nunca falta o charme malandro do autor de The Don, o capo da família da máfia do coração ardente.

O patrão Benét y sus muchachos, depois de rodeios nas faixas anteriores, passam à acção em Konichiwa e Girl of My Dreams, torridamente interpretadas, tal qual a temperatura corporal aquando daquilo a que se chama na gíria “cambalhota”. Comparação algo maldosa seria a de Benét ser um misto de cantor lounge e de proxeneta, até porque Benét é um cavalheiro, não um predador.

Despedimo-nos de Donny Benét por via de apertos de horário com uma saudação de respeito (e um negroni) para com o grande sedutor que não precisa de caparro, só da seda e champanhe das suas canções.

 

 

The Comet Is Coming

Foi a partir do concerto dos The Comet Is Coming, trio encabeçado por Shabaka Hutchings (acompanhado de Max “Betamax” Hallett e Dan “Danalogue” Leavers) com origens na cena contemporânea de jazz londrina, que a similitude com o dia anterior se começou a construir, isto é, a da dureza. Com contrato com a clássica editora Impulse!, a casa que John Coltrane construiu, são discípulos dilectos de um Miles Davis da era de fusão – em especial de Bitches Brew, mas trilham a sua própria galáxia e quem quiser que embarque no vaivém com eles. Pelo que se viu, muito boa gente embarcou e desfrutou.

Nesta maratona de jazz cósmico, o começou foi em ritmo de ligeiro embalo, talvez inspirado por todos os que estavam sentados a gozar o fim de tarde. Não tardaria a contagem decrescente para uma intensidade que só terminou com a última nota da actuação.

Tal como os BadBadNotGood têm o seu momento de apogeu, esse momento acontece com Summon The Fire. Hutchings alavanca o throttle do saxofone ao máximo e sai disparado num afterburner de melodia, guiando o resto da banda e o público (que tinha de moshar, pois claro) em vários minutos de força e garra.

Com um álbum novo (Hyper-Dimensional Expansion Beam) prestes a sair, havia que explicar o conceito e Danalogue fê-lo: a música é um raio, um feixe que une as pessoas. Assim vão os rapazes do cometa escrevendo a sua espiritualidade, através do tridente saxofone-bateria-sintetizadores, cada um com seu tempo de protagonismo e liderança na lide. E o tal feixe apontado à plateia.

O universo de Shabaka Hutchings não se fica pelos The Comet Is Coming; prolífico, é também membro dos Sons of Kemet, que entrarão em hiato por tempo indefinido este ano. Talvez por saudade antecipada ou porque é uma composição e tanto, lançaram-se a My Queen is Harriet Tubman com afinco.

Por este andar, os londrinos (ainda que não saindo do registo instrumental) parecem-se mais com o free jazz de Albert Ayler do que, por exemplo, Ornette Coleman – e não é só porque também acreditam que a música é a força conciliadora do universo. Se bem que estendem o trabalho de estúdio até limites magníficos ao vivo, há uma estrutura que não descaracteriza por completo o material, mantendo-se sempre fiel a rebentar a bomba em palco.

Se Ayler falava em conciliação, as palavras de ordem dos The Comet Is Coming são exploração sonora e libertação em todas as dimensões. Terceiro concerto que vimos deles e nenhum deles foi igual aos outros, mantendo-se apenas a imensa intensidade da fusão de sons. E essa intensidade foi chão que deu muita uva em Coura.

 

 

Molchat Doma

Destaque do cartaz para os góticos de serviço e os seus primos contemporâneos, os doomers, os bielorrussos Molchat Doma (Молчат Дома, ou “Casas Silenciosas”), compostos por Roman Komogortsev, Egor Shkutko, and Pavel Kozlov, são um caso sério – de popularidade, de curiosidade e de autenticidade das letras. Não usam preto só porque fica bem a quem toca esta intersecção de cold-wave e post-punk, mas também porque a Bielorrússia, agrilhoada pela ditadura de Lukashenko e seus sequazes, tem a sua alma de luto, morta por falta de liberdade. E não só pelo seu país, mas também por toda a ignomínia da invasão e genocídio perpetrados pela Rússia na Ucrânia com o apoio de Minsk.

Relativamente à popularidade da banda, uma enchente de antologia no palco secundário atesta que nem o facto de ser hora de jantar demove os curiosos – afinal de contas, desde as Pussy Riot em 2018 que não havia nada tão exótico de Leste no habitat natural da música.

Podemos estar em 2022, mas num concerto de Molchat Doma parece que estamos em 1987, com a URSS ainda de pé e os Kino e os Alyans a serem um atrevimento num país decadente e cinzento, com a revolução a esboroar-se. A sonoridade da banda não tem rodeios e Egor Shkutko canta curvado ao microfone, como que a tomar as dores do seu país, com um esgar expressivo.

Se Portugal tem o seu conceito de “saudade”, os Molchat Doma exprimem uma melancolia semelhante através de Toska. Esta transfigura-se para uma angústia existencial, muita vezes sobre nada – e a banda consegue exprimi-la através de pormenores melódicos que a distinguem das demais.

Exemplo disso é Volny, efusivamente tocada por Kozlov e recebida com palmas e ombros em movimento. Com tanta emoção nem parece que estamos diante de uma banda que fez boa parte da sua vida por entre o cinzentismo opressor das khrushchyovkas de Minsk.

Com toda a sua singularidade, os Molchat Doma deram um dos melhores concertos do festival. Por várias vezes Egor Shkutko agradeceu com um sóbrio “spasibo”; no fim foi a nossa vez de retribuir com um “obrigado”.

 

Parquet Courts

 Nome meio subvalorizado do cartaz (por quem não os conhece, obviamente), os Parquet Courts, quarteto nova-iorquino (aqui aumentado ao vivo) constituído por Andrew Savage, Austin Brown, Max Savage e Sean Yeaton, é uma enciclopédia de rock alternativo, ou seja, uma banda através da qual se percorre um quase infindável número de sonoridades – pode dizer-se, com propriedade, que são como uns candidatos a Yo La Tengo ou a Sonic Youth deste século. O alinhamento do concerto disse isso mesmo, registando-se ainda, neste dia 18 de Agosto de 2022, o décimo aniversário de Light Up Gold, segundo álbum da banda.

Pontapé de saída com Application/Apparatus, de Sympathy for Life, um desafio em forma de música de dança às expectativas do fã típico de indie rock. Todavia, não tardaria que o azimute a seguir fosse o do catálogo rock do grupo, com uma muito boa Human Performance. E o pó começava a levantar-se, ainda antes de Dust.

Estes Parquet Courts são diferentes de outras vezes que os vimos, mais pesados e agressivos, com uma verve inédita. Nestes dias, foi relativamente fácil identificar pontos altos em cada concerto; no caso dos Parquet Courts é difícil, que tudo o que se passa em palco é digno de registo. A voz de Savage e os arranjos de teclado remetem imediatamente para os Modern Lovers de Jonathan Richman e para o período tardio dos Big Star, com aquela malagueta a que aludimos que torna tudo mais interessante – e moshável.

Uma das piadas recorrentes da música popular ocidental dos últimos quarenta anos é a de pedir “Free Bird” dos Lynyrd Skynyrd em qualquer concerto – seja de que género ou estilo for. Como tal, nem uma Freebird II faltou à actuação dos Parquet Courts, banda de humor subtil, mas devidamente amplificado.

O lado de repositório de sonoridades do rock alternativo esteve ainda mais em evidência com Plant Life, numa versão que deixa a versão de estúdio a léguas. Mais de dez minutos de dub (lembrando nomes da no wave como os DNA, as ESG ou os Liquid Liquid), traduziu-se num show de bola de Andrew Savage, primeiro na melódica e depois na guitarra e de Austin Brown nos sintetizadores que virou o bico ao prego no movimento do público mas que nem assim o deixou quieto, que a genialidade dificilmente nos pára.

Duas versões a rasgar de Homo Sapien e de Master of My Craft conduziam o concerto (e o sacrossanto crowdsurf por tudo e por nada, essa marca registada de Paredes de Coura) e firmavam que o dia era mesmo de pancada. Igual cavalgada foi a de Stoned and Starving, de guitarras entrelaçadas como manda a boa tradição nova-iorquina (e de Nova Jérsia), com raízes nos Television, Sonic Youth e Yo La Tengo. O baixista, Andrew Yeaton, não se continha de satisfação e tirou várias selfies, que ter vinte mil ou perto disso aos saltos com a sua música é para contar aos netos.

A artilharia dos Parquet Courts calou-se, ficando apenas a dança entre o fumo do palco e o pó das grades. O grande concerto que deram só reforçou a convicção de que este dia era forte no papel e forte na prática. Sorrisos de satisfação por uma execução de estalo e, apesar de Total Football ter sido uma lacuna no alinhamento, o Tom Brady que se foda.

 

Naquela que viria a ser uma das melhores sequências de sempre em Coura, aos Parquet Courts seguir-se-iam os também norte-americanos Turnstile, nome já com doze anos de existência mas que explodiu no ano passado, qual filho de um meteorito com uma explosão de uma bomba nuclear, após a edição de Glow On. Atenta a magnificência da actuação, os Turnstile merecem um texto próprio.

Dignas de registo foram as ovações dirigidas aos L’Impératrice ao longo do seu concerto. A banda francesa, de Charles de Boisseguin e Flore Benguigui, mal acreditava no que via e ouvia. A nossa aposta é mesmo o efeito Parquet Courts-Turnstile e o gigantesco entusiasmo por um fenomenal dia de festival que teve lugar após dois anos sem Couraíso.

Fecho com chave de ouro (passe o chavão) num dia que ficará na História de quase trinta anos do festival.


sobre o autor

José V. Raposo

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