Reportagem


Model/Actriz + Dove Armitage

O hype é real. E um superpoder.

Galeria Zé dos Bois

20/11/2023


© Ricardo Almeida

O hype, aqui definido como a expectativa que acompanha um dado projecto ou trabalho artístico, é uma força tremenda na música popular (e não só) há décadas. Capaz de fazer ou desfazer o percurso de uma banda, tanto pode ser o seu maior aliado como o seu maior inimigo. Na lupa do hype de 2023 estão os Model/Actriz, estreantes em Portugal, quarteto norte-americano composto por Cole Haden (voz), Ruben Radlauer (bateria), Jack Wetmore (guitarra) e Aaron Shapiro (baixo).

Autêntica locomotiva de expectativas, a banda outrora de Boston e agora de Brooklyn (de onde mais poderiam ser, né?) chegou e viu (veremos se venceu) para duas datas esgotadas sob a rubrica Super Ballet na Galeria Zé dos Bois, cuja sala-aquário já confirmou e refutou muita máquina de hype ao longo dos anos.

Não sendo propriamente uma banda verde-estreante e apesar de só este ano ter editado o seu álbum de estreia, Dogsbody (True Panther Sounds), o quarteto tem já dois EP no saco, Ava e 100€, ambos de 2016. Um inquérito a priori a quem já os viu nesta digressão concluiu que a máquina está mesmo bem oleada e que, como se diz Internet fora, o hype é (mesmo) real. Algodão para o teste e tampões nos ouvidos e siga, então.

Pouquíssimo depois das dez da noite entrava em palco Dove Armitage, projecto a solo de Quincy Larsen (Cat Scan e Kevin) a quem coube honras de pontapé de saída. Através de gravações do seu material, Larsen, após apresentar-se como uma espécie de Harley Quinn do Bairro Alto e exprimindo-se esforçadamente em português, começa a mostrar ao que veio.

Para uns, uma espécie de Peaches dos pobres, para outros pop não-binária e a pender para uma série de direcções. De canção em canção passa-se os últimos vinte e tal anos de música popular em revista: Garbage, t.A.T.u. e laivos de K-pop de um lado e, do outro, 130 BPM não muito longe de Ascendant Vierge.

Se às dez e tal da noite ainda será cedo para pastilhada, não só as batidas puxavam para isso como as próprias letras a isso aludiam, como foi o caso de Glass In Me, incluída em Concernless, EP lançado este ano: “Let’s walk on down to the mezzanine / IV drips and ecstasy / Your high carried over from the other night.”

Oscilando entre a provocação sensual e a distopia cyberpunk, na actuação de Dove Armitage assistiu-se a mais um episódio do esbatimento de fronteiras entre a pop mainstream e a pop dita alternativa, bem evidente nos últimos anos. Simpatias e aplausos recíprocos e está fechado o primeiro acto da noite.

Intervalo com neo-baile funk saindo do PA. Acerto na escolha, fazendo-se uma ponte entre a sexualidade distópica de Dove Armitage e a putaria de Model/Actriz.

Como comité de boas-vindas do concerto (que começou antes das 23:00h, que o que é bom é para antecipar), uma luz vermelha e os primeiros ruídos de Donkey Show. Uma introdução de tensão paulatina, a luz vermelha transformando-se num sol ardente (“the sun turns slowly over me”) e Cole Haden é um Moloch apoiado no suporte do microfone proclamando o negrume que lhe vai no coração, não sem antes de pintar os lábios e beber um trago de vinho para o ritual que se avizinha. Na plateia, as crianças prontas para o sacrifício.

Uma versão inacreditável de Mosquito revela o que já se suspeitava: que Model/Actriz é uma banda que transcende enormemente o estúdio. O atrevimento dançável de estúdio dá lugar à violência de palco, que rapidamente transformou a ZDB numa loja de ferragens humana, na qual todos martelavam o chão aos saltos. Em paralelo com a letra: foi a vida que quisemos.

As atenções dividem-se entre o abrasivo e dançável post-punk/industrial/noise da banda e a conduta do vocalista. Cole Haden, que diz que se juntou ao grupo para combater a solidão, é um Batman marialva. De lenço na cabeça tipo velhinha do monte e véu escuro, as más-línguas diriam que lhe falta o cinto cheio de gadgets do vingador de Gotham City mas, ao contrário do alter-ego de Bruce Wayne, Haden tem um superpoder: a sua presença de palco ou, perante o que víamos, presença de sala.

Girando o véu no ar como se fizesse um capotazo (ou não tivesse o grupo tocado Matador), encarna a personagem de um marialva devoto da intimidade com o público. A ferocidade sónica contrastaria, para os incautos, com todo o calor humano que se observa; Haden anda pelo meio do público a distribuir a bílis das letras da banda com o ar mais displicente e introspectivo do mundo, como se estivesse a temperar uma salada ou a organizar a lista do supermercado, sem nunca perder o fio à meada (que dizíamos nós ali em cima sobre a máquina oleada de Model/Actriz?).

Mas eis que nos surpreende e prova a sua imprevisibilidade: põe-se de cócoras e, em perfeito cosplay de vai-acima-e-vai-abaixo à Bellini em Samba de Janeiro, salta e a ZDB entra em erupção. Neste Hades sito no Bairro Alto quem manda são os Model/Actriz, que continuam a extravasar o disco que nem gente grande – a Slate de estúdio devia ter vergonha, que ao vivo foi um golo de bandeira.

Em apenas doze canções ficou demonstrado que o hype é bem real e merecido. O barítono à Michael Gira de Haden em Sun In, espécie de balada neo-no wave para a despedida (ou nova despedida, dado o tema de ruptura da canção), foi um último rebate do Batman marialva (de novo no meio da malta) para todos os Robin e Catwomen da plateia – com o “sol” da luz de palco nos olhos de todos. Escorreita despedida (um “até amanhã” para quem fosse ao concerto da noite seguinte) e Tá Tranquilo, Tá Favorável de MC Bin Laden no PA como aposição de termo à putaria.

Com efeito, Model/Actriz vieram, viram e venceram. Abrasivos como os HEALTH e de agressividade similar à de Pop. 1280, a jarda foi de descontinuidade geográfica entre a banda em palco a fornecer lume para a fogueira e Cole Haden a estabelecer-se no meio da casa cheia como um dos vocalistas e tanto que para aí anda.

Arriscando futurologia e, ceteris paribus em termos de percurso da banda, a noite teve todos os ingredientes para se transformar em munição para fanfarronice cronológica hipster. A primeira vez de Model/Actriz não foi na Antena 3, foi de tirar os três.

O hype é real. E um superpoder.

Galeria


(Fotos por Ricardo Almeida)

sobre o autor

José V. Raposo

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