Depois de noites de vila, de idas a Vigo e de estágios noutros festivais minhotos, eis o fulcro da campanha minhota de 2025: mais um Vodafone Paredes de Coura. Na sua trigésima segunda edição, o festival minhoto acolhe novidades, revelações, repetentes históricos (nacionais e internacionais) e nomes que já tardavam em estrear-se por ali. Ainda que a distribuição por dias tenha sido algo irregular (o cancelamento dos mui aguardados Maruja não ajudou nada) e concentrando o assunto em menos dias do que o esperado, motivos de interesse não faltaram neste primeiro dia de Coura. A eles.

Being Dead – Palco BacanaPlay

O trio de Austin (Texas) teve honras de abertura de festival e não perdeu tempo a mostrar duas coisas: o seu surf psych rock (ou combinação equivalente) e a admiração pela beleza de Coura (“é a nossa primeira vez aqui e isto é lindo!”). Com EELS (2024) para promover, os norte-americanos deram o litro, com toda uma atitude de quem ainda não está refeito de ter ido ali parar. Bom para eles e para nós.

Com o pequeno mar de gente que tinham à sua frente (este ano o palco secundário foi só palco sem tenda), foram os primeiros vencedores do prémio simpatia de 2025. Para além do surf rock de rio, uma troca de instrumentos em Problems e uma sessão de reco-reco em Blanket of my Bone bastaram para os três vivazes do Texas gravarem o seu nome na história desta edição. Estar vivo é o contrário de estar morto, já dizia o outro.

 

Being Dead © Hugo Lima | instagram.com/hugolimaphoto | hugolima.com

Samuel Úria – Palco Vodafone

Depois das honras de abertura de festival por parte dos Being Dead, calhou a Samuel Úria abrir o palco principal. Se há quem tenha unhas para tal guitarra no tocante a artistas nacionais, Úria é um deles. Sem tretas, mal avançou sobre o palco disparou logo: “a malta que fica à sombra não aparece na fotografia”.

E tratou logo de lembrar em que século estamos, pegando em 2000 A.D., canção homónima do seu mais recente registo, cujos caracteres adornavam o palco, como que um calendário necessário. A par de Mão Morta e Linda Martini, Úria é prata da casa (da nacional, que também há a estrangeira, como se verá). Assim sendo, manteve-se no mesmo álbum com Era de ouro, canção que é tudo menos pechisbeque sónico e que assinala que o próprio Úria atravessa uma fase dourada, numa revolução artística que foi televisionada pelas câmaras de televisão do palco e pelos telemóveis de muitos dos presentes.

Em jeitinho melódico à Scott Walker nacional (na guitarra mais para o Chet Atkins de Tondela) foi cumprindo com louvor e distinção esta abertura de palco principal da edição. Sendo esta uma ocasião de gala, havia que trazer convidados de luxo a palco: assim foi, num dueto com Carol em Daqui para trás que mui competentemente reproduziu o estúdio e deixou a plateia rendida.

Também Lenço Enxuto, balada uriana na qual se pede a receita do caldo lacrimal, ganhou aqui uma interpretação de antologia com o regresso ao palco do resto da banda, igualmente carregada de gente com talento, incluindo Jónatas Pires. Com muito assunto se foi até ao pulsar final do alinhamento em É preciso que eu diminua, cuja admirável execução fechou em beleza um concerto que, pedindo de empréstimo um dos versos da canção, só soube crescer.

Pelo que se viu, afigura-se que este foi o maior e melhor concerto que Samuel Úria deu em Coura. Não é dos Blur nem nunca foi do prog rock (faltou essa), mas é muito de Coura.

Samuel Úria
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Nilüfer Yanya – Palco Vodafone

A cantautora britânica com raízes turcas (e não só) aterra em Coura num momento singular da carreira. Depois de um fulgurante ano de 2024, no qual lançou o óptimo My Method Actor (Ninja Tune), Nilüfer Yanya é parte integrante de um plantel de bandas e artistas britânicos (e não será exemplo único nesta edição do festival, como se verá nos próximos dias) que, nunca nos cansamos de dizer, revitalizaram a música popular alternativa do Reino Unido nos últimos anos depois de anos de marasmo – incluindo os horrendos anos do indie do aterro.

Com uma voz de veludo que muito nos lembra a de Sade, Yanya faz-se acompanhar de um quarteto de músicos, nos quais se inclui, nas guitarras eléctrica e acústica, Wilma Archer, imprescindível companhia de composição. A relevância desta colaboração faz-se sentir em canções como Method Actor, aqui mais pesadona (na veia dos Dry Cleaning) e a denotar uma versatilidade já patente noutros registos da autora.

Também do portentoso álbum do ano passado, Call It Love e o seu intróito instrumental pendente para uma ambient sensualona (com saxofones e tudo) são a melhor montra do que Yanya é capaz, assentando lindamente num início de noite ainda cheio de luz, mas a precisar de um cafuné sonoro destes. Contudo, nem só do último trabalho viveu o concerto, que The Dealer (de Painless, de 2022) revelou todo um entrosamento e uma dimensão sónica – instrumental e de voz – mais arrojados do que aquilo a que o concerto nos tinha habituado.

Com toda a sobriedade, Nilüfer Yanya foi levando a água ao seu moinho e deixou-nos lavrada uma actuação bastante positiva.

Nilüfer Yanya
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Cass McCombs – Palco BacanaPlay

Como não há duas sem três, era a vez do concerto de mais um cantautor, desta feita o de Cass McCombs, veteraníssimo com mais de vinte anos de carreira e nome extremamente relevante no cartaz, até porque encaixa na perfeição no tipo de cartazes do festival dos últimos dez ou doze anos e, mais importante, na envolvência do recinto. Chegados ao palco secundário de Coura, McCombs e companhia não tardaram a deslindar o porquê do seu assunto.

Bum Bum Bum (não se confunda com certa malha dos Venga Boys) é um clássico sobre o terror da violência policial racista, dedilhado com toda a classe pelo cantautor californiano e sua inexcedível banda. Tal como Steve Gunn, McCombs é um guitarrista cuja elegância sónica pode ser a banda sonora para todas as palavras e mais algumas: das mais belas estrofes até à descrição de um flagelo social e cultural, não há nada que fique fora do sítio.

Sublinhe-se que, mercê do assunto que continua a ter, nem só de clássicos da sua obra viveu o concerto. A tresandar a novo, Peace é uma das melhores canções de McCombs (de Interior Live Oak, lançado este ano), aqui revelada com uma verve que, bem, quem dera à versão do álbum, já de si fantástica. Algumas horas antes, tínhamos tido o privilégio de assistir a uma versão acústica da faixa, que é daquelas que foi feita para brilhar em qualquer instrumento. A filigrana dos acordes não engana: só podia ser da pena de McCombs. Idem para a crueza da letra: “Until we meet again/ I bid you peace, my friend/ Nothing to conquer/ Nothing to defend”. Danem-se os chorões que andam net fora a perorar contra tirar fotografias e vídeos em concertos, que foi para registar uns segundos de canções como esta que os telemóveis passaram a ter câmaras.

Para muita sorte deste escriba, McCombs foi até Big Wheel and Others (de 2013, ano em que o começámos a ouvir) buscar Big Wheel (tão grande que só podia figurar no título do disco). Mais um retrato social dos compatriotas, desta feita sobre os camionistas e existencialismos de quem anda na estrada e vive em zonas áridas da Califórnia.

Malha de pendor alt-country, os acordes repetitivos são quase uma raga, são o pano de fundo para uma reflexão sobre a vida de quem prefere o cheiro a gasóleo aos demais e dos condutores devotos de São John Deere. Superiormente interpretada, é uma manifestação da necessária ubiquidade de McCombs quando se fala de cantautores norte-americanos de topo das últimas décadas.

Um concerto e tanto de alguém que ajuda a explicar a vitalidade da música de guitarras vindas dos Estados Unidos desde que dobrámos o milénio e o século. Sinal verde para um regresso não muito distante (esperemos).

Cass McCombs
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Depois do enorme concerto que MJ Lenderman deu (que tem direito a texto próprio), havia que respirar por um bom bocado. Depois do sucesso dos L’Impératrice em 2022 e 2024, a procura dos próximos maiorais franceses de música de dança por parte da organização parece ter sido retomada, desta feita com Zaho de Sagazan. A francesa não se fez rogada e, piadolas nossas com Zahovic à parte, fez tremer o recinto, deixou tudo em palco e passou os dias seguintes nas redes sociais a considerar Coura como um concerto cimeiro da carreira. Missão cumprida para a artista – e provável regresso nos próximos anos, já a manter essa tradição de uma ala francesa de dança no festival.

Tal como MJ Lenderman, também os Vampire Weekend, que se seguiram a Zaho de Sagazan no palco principal, têm direito a um texto sobre a sua actuação. Não tendo abandonado o passado, esta encarnação dos nova-iorquinos vai muito para além dos miúdos que andaram a juntar o indie ao afrobeat.

Joey Valence & Bray – Palco BacanaPlay

Com um berreiro que se deve ter ouvido na vila anunciou a dupla de MCs a sua presença em palco, nem que fosse como chamariz para o palco secundário, já de si muito bem preenchido de público. Composta por Joseph Bertolino (Joey Valence) e Braedan Lugue (Brae) e complementada por um DJ, a fanfarra de rimas e batidas não tardou a demonstrar o seu saudosismo do hip hop de noventas, em particular os 2 Live Crew e os Naughty By Nature, com umas skrillexzadas de brostep e EDM em esteróides pelo meio.

Para além de um disco que sairia daí a dias, intitulado HYPERYOUTH, os norte-americanos foram buscar The Baddest ou a Like a Punk No Hands (2024), ainda morno de tão recente. Conseguiram arrancar o maior pit deste primeiro dia (mais por defeito do que outra coisa), emitindo de antemão um aviso para que todos se divirtam sem matar o próximo ali no meio.

Manifestando algum espanto por estarem em palco tão tarde (que meninos), cantaram os parabéns a um dos seus e continuaram a incursão pelas rimas dos anos noventa e em canções como Ok e Crank it Up (primeira canção que compuseram juntos) fizeram lembrar os Beastie Boys. Maior motivo de interesse? A esquizofrenia de THE PARTY SONG que passa do brostep para uma quebra seguida de um sample de Think (About It) de Lyn Collins. Nada mau para sessão de aeróbica de after.

Joey Valence & Bray
_ © Hugo Lima | instagram.com/hugolimaphoto | hugolima.com

 

Enquanto Joey Valence & Bray continuavam imparáveis (tal como a plateia), fechámos este primeiro dia do Vodafone Paredes de Coura. Com dois grandes destaques e uma mão-cheia de cantautores, nada mais se pode dizer para além de que foi uma excelente primeira jornada.

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