Vai já para vinte anos que Julho em Algés é igual a NOS Alive. Três dias de uma romaria de gente de diversa proveniência – geográfica e sócio-económica – para encher o Passeio Marítimo de Algés de algazarra e, por vezes, de música. Como o pôr-do-sol (este ano deveras encoberto) e os ares da zona até que combinam com concertos, eis a primeira jornada da edição de 2025 do festival.

Das cercanias do palco NOS (ou o principal) ouvia-se o cantor norte-americano Mark Ambor, estreante por cá, a contar as suas impressões sobre a volta que deu na “vossa bela cidade”, com a correspondente ululância geral. Da sensação dos EUA de um lado do recinto partiu-se para o palco Coreto, onde a dupla nacional Girls 96, composta por Paloma Moniz e Ricardo Gonçalves, ia mostrando um synthpop escorreito cujas letras compunham um manual de como divar (Estrela Superstar, com a lembrança, na t-shirt de Gonçalves, da estrela de outrora Mischa Barton e da sua Marissa em The OC). Não se confundido com Current 93, os Girls 96 abriram ligeiramente a porta do dia com um pouco mais de assunto do que o astro Ambor.

Não obstante as dificuldades de construção de cartaz, que levou com cancelamentos de nomes grandes a poucos dias do festival (como os de Kings of Leon e Sam Fender), afigura-se que a óptica deste primeiro dia era a de dar destaque a nomes cujo crescimento tem provindo essencialmente de fontes que não são as tradicionais: números de reproduções em plataformas de streaming e popularidade no TikTok (enfim, modernices). Pelo que se observou no recinto, a aposta nesta gama de nomes e num nome de retorno garantido como Olivia Rodrigo revelou-se um tiro certeiro da organização.

No palco Heineken, o britânico de origem cipriota Artemas passeava uma pop que, embora sensaborona e sem chama, ainda assim cativava uma moldura humana digna de nota; uma jovem apanhada pelas câmaras de televisão do festival mostrava, no ecrã do telemóvel, uma mensagem para o cantadeiro britânico cantar um dos seus êxitos como prenda de aniversário. Apesar do pouquíssimo assunto, não seria o primeiro artista cujo timbre de voz daria para substituir Brendan Yates dos Turnstile numa emergência (fazer figas para que tal não aconteça).

Dali para o vizinho palco Clubbing foi uma curta caminhada (com miudagem aos guinchos a caminho do concerto de Artemas; afinal o rapaz é mesmo um ladrão de corações) para conferir um pouco da actuação dos portugueses Motherflutters, dupla dos irmãos André e Filipe Cameira. Se das ameaçadoras nuvens não caiu chuva alguma, naquele palco caíram largos de minutos de pop afunkalhada dançável, com toda uma mensagem positiva que foi enchendo devagar aquele palco.

Benson Boone – palco NOS

Entrado em palco e mal conhecendo nós a figura, até nos parecia que o norte-americano Benson Boone era, na verdade, irmão gémeo de Dominik “Dirty Dom” Mysterio, filho de Rey Mysterio. Para além do bigode atrevidote, as semelhanças com maiorais actuais da luta livre não ficaram por aqui, como se verá. E também ostenta um timbre de voz que, numa prova cega, daria para se fazer passar por Brendan Yates.

Boone, estrela que começou nos programas de talentos e cuja popularidade tem raízes nas redes sociais (em especial no TikTok), tem já dois álbuns para apresentar, Fireworks & Rollerblades (2024) e American Heart (2025), e foi com Sorry I’m Here For Someone Else (a maior parte do público também, pá) que deu início a uma assinalável execução do manual de instruções de como fazer tudo direitinho para consolidar o estrelato.

Está tudo no sítio, à boa maneira da máquina de fabricar vedetas da pop (ocidental e não só): a voz, o visual, o impacte em palco. Boone puxa pelas goelas (com a devida preparação e manutenção) e lança-se a uma orelhuda I Wanna Be The One You Call (com aqueles agudos ainda mais agudos a caminhar para o final, como carimbo de vigor da pop e uns milhões de reproduções no Spotify ou no Tidal garantidos), seguida de cor e salteado pela plateia, sabedora do que tinha à sua frente. Problemas nos canos? Pneu furado? O cão fugiu? Liguem ao Benson Boone, pelos vistos.

Antes de mais,  a conversa da praxe sobre o seu usufruto da beleza de Lisboa (e a luz, claro) e uma pergunta: “já odiaram alguém [ui]?”. Daqui, Benson parte para uma balada pós-contemporânea com Drunk In my Mind para acalmar o ritmo e o público meter filhos às cavalitas para registarem o momento (esperemos que os telemóveis não sejam deles).

Vindo do país da guerra preventiva, Boone veio rampa abaixo e atirou-se preventivamente ao público, para continuar a dar a lição de como ficar na mente e no ouvido e construir popularidade. E não ficou por aí no espectáculo físico, que tirou da cartola um mortal para trás do cimo de um piano como se estivesse a fazer um finisher numa Wrestlemania. 

Dispensando uma imagem de vedeta cagona e chorona por assuntos do coração, procedeu à interpretação de mais êxitos (como Mr Electric Blue, canção na qual goza com os subúrbios norte-americanos) e a mais converseta. Confessou ter ido à praia algures na Linha de Cascais e apanhado um escaldão que, segundo o próprio, não é ajudado pela roupa que tem em cima (“Despe! Despe!”, gritava-se ao nosso lado). Afinal as estrelas também têm problemas de pessoa normal.

Mesmo não sendo a nossa praia (piadola inevitável), não ficámos escaldados com o que vimos e deixámos Benson Boone na sua demanda por ser uma estrela deste século e rumámos numa piscina recinto fora até ao palco Coreto ver baleias ao cubo (na verdade, ao quadrado porque são só dois membros).

Baleia Baleia Baleia – palco Coreto

Os Baleia Baleia Baleia são uma das bandas mais sem tretas deste país – em estúdio e ao vivo – e só isto bastaria para descrever o seu concerto em Algés. A dupla portuense, formada por Manuel Molarinho (baixo) e Ricardo Cabral (bateria), aconselhou (em forma de aviso) logo que quem estava a comer nas barracas de comida nas redondezas deveria era aproximar-se – que o concerto ia valer a pena, dizemos nós em jeito de spoiler.

Num festival patrocinado por uma operadora de telecomunicações e em que a identidade online dos espectadores estaria em constante demonstração, nada como agitar as águas com Quero Ser Um Ecrã, que com punk (e sushi e gatinhos virtuais) se castigam os costumes. Um breve excurso assim de surra por uma versão de Apocalipse, canção de outra grande banda nacional dos dias que correm, os Conferência Inferno, só serviu para dar ao concerto uma aura que deixa qualquer estrela da pop a um canto. Note-se que os Baleia Baleia Baleia são, nos termos de Egossistema (aqui muito para além do estúdio), das pouquíssimas bandas capazes de dar um encontrão ao Chuck Norris e de este cair redondo no chão. 

“A próxima é para quem gosta do Agostinho da Silva [oi], que disse que o Homem não nasceu para trabalhar, nasceu para ser vadio”. Foi assim que Venham as Máquinas foi apresentada. E foi tocada, como diria o saudoso Mestre, como um espírito que dá vida – porque também há que ser criador (o tal “vadio”) e poeta à solta nesta vida. E máquina de produzir jarda.

Para uma banda que disse que geralmente toca pouco e fala muito mas que se viu forçada a fazer o contrário à conta do reduzido tempo de actuação, conseguiu ainda tocar NPC, canção que virá a figurar no novo trabalho do duo. Também esta é um manifesto contra a apatia e o comodismo (missão que é mesmo como “cavar túneis com um ancinho”), com uma base sónica de Motörhead e Black Flag (Motör Flag, se se preferir) que porá muito pé no ar nos anos vindouros.

Único momento previsível de um concerto de Baleia Baleia Baleia é um concerto seu acabar com Exorcismo, canção que é o hino não oficial da banda. Já a imprevisibilidade da sua interpretação é apanágio da banda; desta feita, calhou Molarinho a tocar no meio do público, num suado abraço (a que Cabral se juntou depois da última pancada nos timbalões) que é o arquétipo de que o Homem nasceu mesmo para ser da vadiagem do punk. Mereciam era o recinto todo a vê-los, que o sangue será sempre mais forte do que as ilusões da fama.

Deixa tocar, que há um verdadeiro pontapé de saída de festival para ser dado.

Pelo recinto, pais ora com ar entusiasmado, ora com ar resignado, continuavam a passear as proles antes de irem guardar lugar para as redondezas do palco principal à espera da estrela cadente deste primeiro dia, Olivia Rodrigo. E, claro, continuavam as filas para brindes nos stands de patrocinadores, que comprovam duas coisas: que no que depender destes a sustentabilidade deste modelo de festival está garantida e que o romance entre portugueses e coisas de borla é a relação amorosa mais duradoura do País.

De caminho, uma volta por outros palcos. No palco Heineken, os Glass Animals, “primos” sónicos dos Foals e artífices de uma pop dita alternativa para chamar visitantes britânicos a Algés, foram-se atirando (com toda a confiança, diga-se, já que tinham Also Sprach Zarathustra de Richard Strauss como introdução; 2025, odisseia em Algés?) ao dançável logo desde Life Itself – mas deixaram o êxito maior, Heat Waves, para o fim, que há que manter o público ali quietinho e atento e deixar a arma (pouco) secreta para o auge da coisa. 

Para além de bailarico, houve falsetes, elogios rasgados a Lisboa (“Fuck yeah, Lisbon! I love this city!”), recordações da primeira passagem pelo festival em 2017 e uma energia gradual que demonstraram o calo que os Glass Animals já levam em quinze anos de carreira. Do outro lado do recinto, não tardava muito para o prato forte deste primeiro dia.

Olivia Rodrigo – palco NOS

[Nota: por limitações impostas pela artista não foi possível fotografar o concerto]

Olivia Rodrigo, nome maior do dia, depois de ter enchido a MEO Arena duas noites consecutivas (na mesma altura do Rock in Rio, sito agora ali perto) no ano passado, voltou cá ao rectângulo para esgotar o primeiro dia de festival e fazer mais números impressionantes de bilheteira. We Got the Beat das Go-Go’s no PA e um vídeo de apresentação que bem poderia ser um anúncio arrojado de um perfume por alturas do Natal precederam uma entrada em palco que mereceu uma ovação que deve ter sido ouvida na Trafaria – nunca subestimem a potência sonora da gritaria de pessoas com as hormonas aos saltos.

Desengane-se quem nunca a ouviu e acha que está ali mais pop afogada em batidas tomadas de empréstimo ao hip hop e sintetizadores à pop das últimas gerações. Preparada desde tenra idade para o palco, nessa espécie de cursus honorum que são as aparições enquanto criança em anúncios, as aulas de interpretação e de canto e o estrelato precoce em séries para jovens, Olivia Rodrigo, que nasceu quando Avril Lavigne era a miúda de oiro do rock comercial para adolescentes (por contraposição à pop pura de Britney Spears e Christina Aguilera), é a Avril Lavigne da era da pós-verdade. 

Aqui ao vivo e a cores apresenta-se como uma rockeira inveterada, de guitarras gordas (a própria  por várias vezes fez o gosto à palheta) e brutos solos (talvez alguns pais daqueles que passam a vida a queixar-se no YouTube que o rock está morto tenham saído convencidos), mas também de baladas para lancetar a emoção. Aliás, é demasiado nova para estar já com baladas ao fim de três ou quatro canções, mas depois de uma (enganosamente) intitulada ballad of a homeschooled girl (esse fenómeno social dos últimos quinze ou vinte anos), a toada não mais acalmaria, salvo para uma balada ou outra (incluindo traitor ao piano), mais um vídeo-tipo-anúncio-de-perfume e o encore.

Para além de procurar cimentar a sua posição como artista pop de topo mundial, Olivia Rodrigo (ou quem a aconselhe) tem andado a construir certa credibilidade artística ao arranjar duetos com David Byrne ou interpretar versões suas de canções dos Fontaines D.C.. E insiste em transformar o seu material em rockalhada com todo o estardalhaço: rasteja pela rampa (que a pop de nomeada exige nestas ocasiões) até à sua guitarrista, Arianna Powell, em jeito de representação da idolatria aos heróis das guitarras e torna canções como so american e bad idea right? em apogeus sónicos.

Para fechar o alinhamento principal, uma deja vu que não deixou ninguém fartinho da californiana e, no encore, uma all-american bitch de estalo (com mais berreiro para o Guinness) e get him back! com Rodrigo de megafone em punho tipo capo de claque para mandar toda a gente para casa surda, contente e, no caso de muitos pais, aliviada (ou preocupada, porque os palavrões de vampire já devem dar que falar no lar).

Se os prazeres pop de Dua Lipa (concertaço na edição do ano passado do NOS Alive) são mais da nossa preferência, há que reconhecer que Olivia Rodrigo fez das guts coração e acabou por reiterar o estatuto de artista arrasta-multidões (ou arrasta-famílias, para se ser mais preciso). Porque as relações públicas são fundamentais para a fama (como bem se viu ao longo do dia com os nomes mais populares), agradeceu ao público ter ficado para vê-la e sublinhou que comeu “passstays de naaahtas”. 

Êxtase para milhares de membros das gerações Z e Alpha, o aplauso final da noite foi um megafone colectivo. Para muitos foi o momento de uma vida (ainda que não deva ser despiciendo o curtíssimo foco de atenção dos mais novos), para outros foi um frete que se faz pelos filhos. No cômputo geral, Olivia Rodrigo cumpriu e garantiu que na próxima vinda não deverá restar um bilhete à venda que seja, salvo se a criançada crescer e se fartar da norte-americana.

Assim terminou para nós o primeiro dia de NOS Alive deste ano. Do que se viu, do punk nacional à pop internacional vai uma grande distância em exposição mediática, vendas e receita mas, pegando na letra de Venham as Máquinas dos Baleia Baleia Baleia, as máquinas vieram mesmo, cada uma de sua maneira.

Fotos por Hugo Rodrigues
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