Reportagem


Mão Morta

Décadas a fazer a cena deles, independentemente do que os outros pensam.

Theatro Circo

06/01/2018


© Jornal de Notícias

2018 começou em altas: os Mão Morta encerraram no Theatro Circo, em Braga, as comemorações dos 25 anos de edição do “Mutantes S21”, disco seminal do rock nacional. Os anos 90 são distantes, a inocência morreu, torna-se difícil olhar no tempo e compreender qual seria a reacção dos pais daquela geração à música visceral dos bracarenses e à figura de palco de Adolfo Luxúria Canibal.

Quando tocámos há 25 anos nesta sala éramos mais novos. A sala era diferente, e ficou muito diferente depois.

O concerto estava carregado de significado, para além do óbvio: tocaram em casa, na cidade que os viu nascer e com a qual várias vezes admitiram ter uma relação estranha – como é compreensível, face ao género, ao estilo, à estética e à sonoridade de Mão Morta. Quem passa pela sala centenária recorda o Theatro Circo como um espaço clássico, repleto de veludo encarnado e dourados que se iluminam pelo imponente candelabro da sala principal, cuidados de uma recente recuperação e investimento na estrutura.

Em 1993, um outro concerto ficaria na história quer da banda, quer da cidade, e também do disco. O Theatro Circo tinha em planos encerrar portas para obras e no concerto integrado na tour de apresentação de “Mutantes S21” houve porrada velha, saltos de palco, cadeiras pelo ar e um cenário de destruição catártica. «Os Mão Morta não têm culpa nenhuma da destruição do Theatro Circo, ninguém tem culpa, são coisas que acontecem e o Presidente da Câmara mostrou-se perfeitamente compreensivo… Aliás, disse que preferia ter o Theatro Circo destruído mas depois de uma enchente do que ter o Teatro Circo eternamente vazio», defendeu-se Adolfo Luxúria Canibal à XFM no ano seguinte.

Mas regressemos a 6 de Janeiro de 2018. A sala estava esgotada, da plateia aos camarotes, repleta de fãs preparados para sorver aquele elixir de juventude. Em palco, Adolfo estava tão imponente como sempre: farda preta, cabelo no ar, olhos arregalados a perfurar a alma com a sua poética ecoada por aquela voz grave e rouca.

A banda tocou o disco na íntegra, enquanto que nas suas costas 15 ilustrações que fazem parte da reedição de “Mutantes S21” eram manipuladas e texturavam a música a tons de preto e cor de sangue. A viagem seguiu por destinos tão exóticos como “Marraquexe”, “Paris”, “Berlim” e “Istambul”, e claro está com escala em “Lisboa (por entre as sombras e o lixo)”. No hino “Budapeste” há a primeira ovação da noite, rematada por um Adolfo a declarar que o respectivo autor, Carlos Fortes, lhe chamava uma «música para atrasados mentais». Ah, aquele humor debochado e negro como as trevas eternas.

Em diálogo com o público, Adolfo lá ia revelando a sua rebeldia inquestionável. A certa altura gritou algo como “Fotos! Tirem muitas fotos com flashes. Nós não nos incomodamos!”, uma clara infracção às regras do Theatro Circo, cujos assistentes de sala fazem verdadeiras piscinas olímpicas para impedir os espectadores de fotografar souvenirs dos concertos.

Estaria Adolfo a confrontar o sistema ou a devolver um espelho ao público obcecado por olhar o concerto por ecrãs?

Do fundo da sala correu um fã e encostou-se ao palco para curtir um concerto rock em pé, como deveria ser sempre obrigatório. Seria ele o primeiro passo de novo motim na sala, como há 25 anos? (in)Felizmente, não. O rapaz lá se sentou e deu tudo a partir da cadeira aveludada.

O disco faz-se de nove temas e é curto para tanta ânsia dos fãs. O concerto acaba com dois encores, três ovações, agradecimentos e declarações de amor. E ainda “Tiago Capitão” e “Fazer de Morto” de 2010, culminando em apoteótico throwback com o fúnebre “Véus Caídos” e o clássico “E Se Depois” de 1987.

Longa vida aos Mão Morta e a tudo o que trouxeram ao panorama musical. Sempre fiéis à sua origem, construíram uma tribo que os acompanha desde o primeiro momento, conquistaram gerações e ainda tocam os mais novos que agora redescobriram o magnífico “Mutantes S21”. “Somos de outra época, pareceria que eram gerações que não se tocavam, que não conseguiríamos conversar. E não, a realidade vem nos mostrar – para nosso grande contentamento – que continuamos a tocar minorias das gerações, é evidente, nós não somos uma banda de massas.“, confessou ainda recentemente Adolfo em entrevista ao Arte-Factos.


sobre o autor

Isabel Leirós

"Oh, there is thunder in our hearts" (Ver mais artigos)

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