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Vergine Giurata
Título Português: Virgem Prometida | Ano: 2015 | Duração: 90m | Género: Drama
País: Itália, Suiça, Alemanha, Albânia, Kosovo | Realizador: Laura Bispuri | Elenco: Alba Rohrwacher, Flonja Kodheli

Na Albânia rural, o papel da mulher foi sempre altamente limitado pelos preceitos religiosos. A troca de género, prevista no Kanun (código de honra medieval que contém as regras criadas pelos camponeses do norte da Albânia), é uma prática ancestral que reconhece o direito da mulher em comportar-se socialmente como um homem, conquistando os direitos reservados ao sexo masculino. A conversão foi, durante séculos, uma solução para as famílias sem homens (por exemplo, quando o patriarca da família morria e era necessário que alguém assumisse esse papel) ou para escapar a um matrimónio imposto. O preço a pagar era a renúncia definitiva à condição feminina, implicando mudar de nome, cortar os cabelos, vestir-se e comportar-se como um homem, beber e caçar. E ainda um juramento público de virgindade eterna.

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Nos dias de hoje, a tradição da virgem jurada (burnesha) desapareceu, restando poucas mulheres a viver ainda nesta condição. Nesse sentido, o argumento de Vergine Giurata (baseado num romance de Elvira Dones) tem qualquer coisa de anacrónico, apresentando-nos um drama contemporâneo cuja protagonista é uma virgem jurada muito jovem. Hana (Alba Rohrwacher), nascida e criada no ambiente opressivo das montanhas remotas do norte rural albanês, assume-se como Mark e por lá fica até aos 20 e muitos anos, assistindo à fuga da irmã mais nova (que deserta com um namorado para Itália) e à morte dos pais. Sozinha, ela decide viajar e procurar a irmã Lila (Flonja Kodheli), que vive agora com a família em Itália.

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O primeiro filme da italiana Laura Bispuri é de um imenso realismo, conseguindo essencialmente através da escolha de Alba Rohrwacher (mais um grande papel, depois de a termos visto em Hungry Hearts). Na estrutura, o filme assenta na bipolaridade do cenário (por um lado, as montanhas gélidas e silenciosas da Albânia, por outro, o urbanismo e burburinho da cidade) para sublinhar a duplicidade da personagem e a dicotomia corpo/identidade: A odisseia de Hana/Mark é-nos contada através de flashbacks que vão narrando a sua infância e a adolescência, entrecortados com a experiência de Hana/Mark já na cidade, dando passos acanhados no processo de recomposição da sua identidade sexual do qual nunca parece demasiado certa.

Vergine Giurata é sobretudo uma reflexão sobre a questão da identidade de género, no caso, sobre o que sobra dessa identidade depois de desvestida de todas as suas características. Vêm-nos imediatamente à memória teorizações sociológicas mais ou menos recentes sobre o papel da sociedade e costumes na construção da identidade sexual e na imposição das representações do género, mas também as discussões sobre os papéis sexuais e o estatuto dos homens e mulheres nas sociedades (bastante estável entre culturas) enquanto produto de uma construção social. Se a masculinidade e feminilidade se fundam na atribuição do sexo à nascença, não deixa de ser interessante que, em alguns casos, um corpo não se conforme às suas características biológicas, ou noutros (como no caso ilustrado no filme) possa ser reeducado no sentido de um comportamento oposto ao esperado ou ao biologicamente determinado. Esta reflexão fica do lado do espectador e constitui a grande virtude deste trabalho. A verdade é que nunca conseguimos aceder ao mundo psíquico da personagem, cuja composição insondável não permite mais do que supor aflições e sentimentos. A suposição e a dúvida constariam da nota de intenções de Laura Bispuri, e estão plasmadas na interpretação magnífica de Alba Rohrwacher – afinal, é para isto que serve o cinema.


sobre o autor

Edite Queiroz

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