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Silence
Título Português: Silêncio | Ano: 2016 | Duração: 161m | Género: Drama, Histórico
País: EUA | Realizador: Martin Scorsese | Elenco: Andrew Garfield, Adam Driver, Liam Neeson

O silêncio instala-se nos primeiros momentos do filme, prelúdio da obra magistral que virá depois. É assim que começa a mais recente obra-prima de Martin Scorsese  – o fervor das palavras é imperativo para escrever esta crítica. Desde que leu pela primeira vez a novela “Silêncio” do católico japonês Shusaku Endo, em 1966, Scorsese tem vindo a esboçar este filme. Antes dele, a novela já havia sido posta em tela: primeiro por Masahiro Shinoda em 1971 e depois por João Mário Grilo com o “Os Olhos da Ásia”, em 1994.

O argumento é simples à primeira vista. No século XVII, Sebastião Rodrigues e Francisco Garrpe (Andrew Garfield e Adam Driver), dois padres jesuítas, deixam Portugal rumo ao Japão, com a missão de encontrarem o padre Ferreira (Liam Neeson). Corre o rumor de que o padre Ferreira havia se tornado apóstata, ao pisar um fumié com imagem de Jesus, à força do tormentos infligidos pelas autoridades japonesas. Eventualmente o padre Rodrigues acaba por passar por uma experiência semelhante, onde emergem questões de difícil resposta: Quanto sofrimento pode um homem aguentar em nome da fé? E se ceder, será a sua fé menor por isso? Será que o amor de Deus poderá perdoar as fraquezas da dor humana? Onde está Deus? Porque se mantém em silêncio perante todas atrocidades cometidas?

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Se esperam um filme de entendimento  lógico e mecânico, com respostas e finais concretos, não será este a fazer-vos a vontade. Mais do que gostar ou não, este é um filme para sentir, para deixar entranhar na pele. É que Scorsese segue à risca a política do “show don´t tell”, e o filme é realizado de modo a que espectador construa o seu próprio significado do filme, longe dos dogmatismos de outras películas sobre os mesmos temas. Fica também a sugestão: quando entrarem na sala de cinema, preparem-se para despir preconceitos e estereótipos – tão violentamente entranhados nas opiniões respeitantes ao cristianismo. Ao longo do filme as minhas respostas às questões expostas acima mudaram várias vezes. No final, continuei sem certezas. O processo de desconstrução do que é a religião, a humanidade, o respeito, o sofrimento e a dor é um belíssimo legado que Scorsese nos deixa com este filme.

O elenco ajuda ao sucesso, principalmente através da personagem principal, o padre Rodrigues. De uma faceta inocente, quase infantil, segue-se a evolução de uma personagem que se vai tornando cada vez mais complexa, mais ambígua e real. Mais humana, talvez. Se a dor purifica, como se explica o caminho do padre Rodrigues até ao final do filme?

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O filme merece louvores também pela fotografia. As paisagens são lindíssimas, fazendo jus ao país do sol nascente, mas sem contudo descurar uma certa austeridade e rudeza dos campos e praias dos karure kirisutan (nome dado aos cristãos ocultos no Japão), que nos colocam em alerta para uma tragédia iminente. E temos sempre o silêncio a povoar o espaço. O incólume silêncio, que substitui qualquer banda sonora e adensa a trama. E é esta peregrinação do silêncio que delineia tão bem o trajecto do filme.

Scorsese tem sido acusado de endeusar os missionários, esquecendo as atrocidades cometidas em nome de Deus. Não creio que assim seja. O realizador fez bom esforço para retratar o ponto de vista das autoridades japonesas, representadas pelo oficial Inoue Masashige (Issei Ogata). Este oficial clarifica que respeita o cristianismo, mas não considera que possa ser um benefício para o Japão, onde o budismo funcionará melhor. O padre Ferreira chega mesmo explicar que os japoneses nunca conseguirão venerar um Deus que vai para além da humanidade. Como diz Inoue – citação literalmente baseada na novela literária –, “O Japão é um pântano”, porque absorve toda a sorte de ideologias, transformando-as em si mesmas, e distorcendo-as no processo de fazê-lo.

Em tempos, Scorsese quis ser padre. Embora tenha desistido, a espiritualidade e os dilemas éticos são uma marca sua. À parte de ordens religiosas, Scorsese é um dos melhores mentores que poderíamos ter. É um daqueles que nos faz acreditar no culto do cinema, como uma fonte inesgotável de reflexão da natureza humana.

| Filme visionado em ante-estreia a 6 de Janeiro de 2017


sobre o autor

Rita Torres

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