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L’ apparition
Título Português: A Aparição | Ano: 2018 | Duração: 127m | Género: Drama
País: França | Realizador: Xavier Giannoli | Elenco: Vincent Lindon, Galatéa Bellugi, Patrick d'Assumçao, Anatole Taubman

O título do filme de Xavier Giannoli encerra o mistério que a narrativa investiga, a aparição celestial da Virgem Maria a uma rapariga de 18 anos – assim ela afirma. Em L’ apparition, Vincent Lindon interpreta Jacques Mayano, um jornalista habituado a territórios inóspitos (recentemente regressado da Síria, onde perdeu um amigo próximo) que é convocado pelo Vaticano para encabeçar um inquérito canónico à veracidade das visões de Anna (Galatéa Bellugi), uma jovem noviça convertida em atracção turística de uma pequena vila no sudoeste de França, sob a suposta protecção do franciscano Borrodine (Patrick d’Assumçao) e o agenciamento de Anton Meyer (Anatole Taubman), um padre com demasiado talento para a monetização da fé. Confrontada com as solicitações dos milhares de peregrinos que afluem ao local das alegadas aparições, a resistência emocional de Anna é posta à prova, ao mesmo tempo que o pragmatismo e imparcialidade de Vincent são abalados pela dúvida. A grande questão permanece, contudo: Estará Anna a dizer a verdade? Durante mais de duas horas, queremos acreditar.

A natureza vagamente agnóstica de Jacques suaviza-se aos poucos no contacto com Anna, uma espécie de santa que absorve o sofrimento dos outros – e também o dele. As angústias das personagens, discretamente sublinhadas pela partitura de Arvo Pärt e pelas imagens poéticas captadas pela câmara de Giannoli, vão sendo desenvolvidas ao longo dos capítulos, primeiro do ponto de vista de Jacques (que investiga o passado dela, reconstrói os seus passos, identifica pessoas significativas), depois do ponto de vista de Anna (o peso da sua responsabilidade, os sacrifícios profundos da sua abnegação). Das inseguranças que ambos disfarçam e de uma necessidade consolo e refúgio forma-se um vínculo estranho entre inquiridor e inquirida.

Vincent Lindon, um dos rostos maiores do cinema francês, é incrível no papel de um homem atormentado cujo cepticismo vai quebrando perante a possibilidade de conforto espiritual.

O argumentista e realizador, que esteve em Lisboa para a antestreia do filme na Festa do Cinema Francês, admitiu que a “necessidade de acreditar” tem estado presente em vários dos seus trabalhos. Talvez esse impulso explique, no argumento, a improbabilidade da contratação de um repórter de guerra pelo Vaticano, estivesse a Santa Sé disposta a aplicar o espírito científico aos enigmas da fé. Talvez por isso L’ apparition se desenrole como uma investigação policial da qual vai emergindo um drama teológico: o filme explora com critério os meandros do Vaticano, as técnicas de análise de sudários, relíquias e milagres, o sentido comercial de alguns sacerdotes e as posições da Igreja face aos seus profetas, mostrando progressivamente a irrelevância das evidências face à força de uma crença profunda.

Os actores são aos grandes veículos dessa transição. Vincent Lindon, um dos rostos maiores do cinema francês, é incrível no papel de um homem atormentado cujo cepticismo vai quebrando perante a possibilidade de conforto espiritual; mas a grande surpresa é mesmo a jovem Galatéa Bellugi, que parece ter sido talhada para a personagem de Anna (Giannoli diz que ela é um “dom do céu”). É no contraste da dureza aparente de Lindon e da doçura de Bellugi que a história se transcende e se desloca do questionamento da verdade para o domínio do inexplicável.

Ainda que o percurso compassivo das personagens se dissipe na prontidão do epílogo (que acaba por dar um rumo ao que poderia ter ficado por dizer), L’ apparition não oferece respostas directas, preferindo um diálogo respeitoso entre razão e espiritualidade sintetizado no destino da personagem de Jacques – que, de alguma forma, abraça uma ideia que racionalmente não tem como provar ao perceber o seu poder emocional: Porque “a fé é uma decisão livre e esclarecida”. A grande força do filme está, por isso, no que não é mostrado. A ideia de Deus é mais central e poderosa do que a falsidade eventual da vidente, alegórica do temor do Grande Engano.


sobre o autor

Edite Queiroz

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