Then They Flew

On the Shortness of Life
2023 | Edição de Autor | Post-rock

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O fim de um interregno é sempre de louvar – sejam o de 1383-1385 ou o de campeonatos em futebol masculino sénior do Sporting. Melhor ainda se for o término de um hiato sem álbuns de uma banda como Then They Flew, colectivo de topo do post-rock português.

A banda lisboeta está de volta com On the Shortness of Life, segundo registo e sucessor de Stable as the Earth Stops Spinning, bem-aventurado disco de estreia datado de 2015 e que ao vivo excelsamente resultou. Mantêm-se na formação Bernardo Sampaio (que entretanto editou como Hibernardo e com Blænd e Dream People) e Marcos Janela, adicionando-se uma dupla de guitarristas (Gonçalo Paiva e Ricardo Almeida) e João Nuno Barros na bateria.

Disco homónimo do ensaio de Séneca, não se afigura ser um álbum conceptual, mas certo é que, como dizia o sábio, se se aproveitar bem a vida ela não é assim tão curta e a dádiva da Natureza não tão pequena quanto se pensa. Bem assim, um segundo álbum de qualidade é um antídoto aos vícios da inexperiência, pedindo emprestado o ditame de Cícero sobre o envelhecimento.

Nas primícias do álbum aparece-nos um Séneca do post-rock que se apresenta como nosso amigo – Think of Me as a Friend – e que veio matar saudades de Then They Flew. Altos e baixos de praxe num paulatino desenvolvimento de textura filigrânica já domada pela banda no antecessor e aqui com peso e autoridade que põem logo o pescoço a mexer. Quase oito minutos que decretam que a banda cresceu e não foi por contar agora com mais um guitarrista – é mesmo do que vai pelo éter.

Todavia, nem todas as canções de On the Shortness of Life têm de ser longas para demonstrarem o seu impacto. Nos seus cinco minutos e vinte segundos, Exigent é a menor canção do álbum, mas a sua maior (head)banger.

Mergulhando nos rigores rítmicos do math rock, não redunda num tédio que por vezes é pecha do estilo, mas antes mostra um sangue na guelra que deixaria o padre Albini orgulhoso, pregando-se ainda o Evangelho dos Unwound (RIP Vern Rumsey). Uma quebra antes de vagalhão final e temos malhão.

Ao contrário de Franz Reichelt, a vertigem de Reichelt’s Terminal Velocity não leva a que alguém se estampe no chão. Se Exigent é uma contracção circular, Reichelt’s… é um desabrochar em fluxo de consciência post-rock. O desfile de ideias sucede-se, com a bateria de João Nuno Barros na vanguarda e o trio de guitarristas como a (paradoxal) artilharia que rebenta com os mamelucos e eis a revelação de que os Then They Flew não perderam nada nos anos de pousio – nós é que perdemos.

Percorrida a primeira metade de On the Shortness of Life, afigura-se: i) dinâmica e entrosamento naturalmente diferentes do passado; ii) as mudanças de formação não retiraram vigor à banda, bem pelo contrário; iii) depois da vontade em mostrar afirmação e distinção em Stable as the Earth Stops Spinning, o grupo tem agora outro fôlego e dita a sua lei em cada composição, dane-se quem não quiser ouvir e compreender.

Já na segunda metade do registo, The Extra Ordinary Life of Mrs. H é a faixa mais convencional do trabalho e relembra-nos que este é um disco de post-rock – e nacional, logo uma aproximação a bandas adjacentes, como os Catacombe, Riding Pânico ou Juseph. O som expansivo do disco não se perde e a canção tem uma beleza de jam para ir apreciando aos poucos, em particular o trabalho de Sampaio, Paiva e Almeida.

O Samuel Úria até pode nunca ter sido do prog rock, mas os Then They Flew têm-no no ADN, sem no entanto caírem num lagar ou no estulto barroquismo de tanto do género. A monumentalidade das composições (realçada por mistura competente) não remete para o progressivo mais estafado, antes para o mais aventureiro e de bom gosto, sempre com o substrato post-rock.

É nestes amanhãs que não cantam, mas que tocam post-rock (e mais qualquer coisa) que se situa The Edge of Tomorrow, que bem pode servir de banda sonora de reflexão sobre o andamento da vida, de preferência num túnel enevoado.

Psilocibina auditiva no remate do álbum em Study Death Always. Até se pode tratar da morte do álbum (por assim dizer), mas não da sua manifestação criativa; ouvem-se ecos de Igor Wakhévitch e a (brilhante) segunda metade da canção é um estudo de resistência de materiais às ondas de choque rítmicas. Um digno fecho, como Séneca pretendia da morte.

On the Shortness of Life é não só um álbum que cumpre com os cânones do post-rock, mas também a obra de uma banda que já faz parte do cânone nacional do estilo. Se a música popular tivesse uma Encyclopédie, os Then They Flew seriam Diderots cá da terra. Um regresso que se louva.

Se, como Séneca deixou assente, é necessária uma vida inteira para saber morrer, não é precisa uma vida inteira para fazer um distinto disco de post-rock, dizemos nós.


sobre o autor

José V. Raposo

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