Dream People

Almost Young
2021 | Edição de Autor | Dream pop, shoegaze

Partilha com os teus amigos

O tempo é o caridoso nevoeiro com que se vela a eternidade para não ofender os nossos olhos, já dizia o saudoso Mestre Agostinho da Silva. O tempo enquanto factor reflecte-se em nós desde o momento em que somos concebidos e mais ainda desde que nascemos e vamos atravessando as várias etapas da vida. Milhentos artistas, escritores, pensadores e bêbados em fim de noite se debruçaram sobre o tempo; em 2021 calhou o tema na rifa dos Dream People, ambicioso quinteto nacional de dream pop e arredores que muito tem crescido nos últimos dois anos, que nos apresentam o seu segundo EP, Almost Young.

Já lhe chamámos um chiaroscuro musical quando lhes pedimos testemunho sobre a sua obra. E agora damos o parecer da casa.

Na pole position está People Think, primeiro single e aquele post-punk dançável que você respeita, fazendo pontes entre Kim Wilde e os Wild Nothing. A secção de ritmo dá matéria para soco no ar enquanto Bernardo Sampaio coordena a equipa do rendilhado guitarreiro e Francisco Taveira sussurra e abre a voz no refrão como se estivesse num baile no liceu de Stranger Things ou do Regresso ao Futuro (de 1985 ou de 2015, com ou sem hoverboards), numa letra que de sonho tem pouco: entre o lamento de uma vida perdida (na qual daria jeito um DeLorean para corrigir erros de percurso) e a constatação da irrelevância de quem se acha superior mas que nunca passou do rés-do-chão no prédio da vida, dá-nos a crer que quem caiu na mediocridade é gente que não pensou muito. Não é provocação a disfarçar ignorância ou estupidez (como muitos que para aí andam), é mesmo reflexão vertida em estrofes e acordes.

Nunca se esqueçam, caros leitores: sem música como deve ser e sem garra e jovialidade a normice está à distância de um sunset numa praia urbana algures. Isso e o casório e dois filhos e meio e o fim do interesse da vossa vida. O pau de selfie e engordar a ver a bola ao domingo enquanto são o que vos resta.

Certo é que os putos não querem saber, atamancam por atalhos e não querem deixar de ser o miúdo que outros outrora foram mas que deixaram de ser através da perda da sua substância. Porque, como já nos disseram: “Sem tempo não se brinca. Se não se brincar nada se cria. E se nada se cria mais vale sermos todos pedras.”. E porque, acrescente-se, continuamos a ser a colectividade pacífica de resignados que se divertem indignados, como escreveu o escritor cujo pseudónimo rima apropriadamente com “borga”.

Uma quebra antes de uma investida final pelo refrão e temos aspirina contra o desprezo por uma vida bem vivida. Existencialismo com perfume indie.

Como banda que amadurece que se preze, há colaboração de vulto logo no videoclip da canção: João Reis Moreira, dançarino e comparsa de Conan Osiris, contorce-se e contrai-se pelas sombras como se tivesse visto toda a gente a atirar-se do Titanique, num trabalho de câmara que remete para os melhores videoclips de Kate Bush ou do Prince de oitentas. Em paralelo com a letra, assemelha-se a alguém possuído pela dúvida de ter ou não desperdiçado a vida.

Selo de qualidade do videoclip de Andreia Pereira da Silva é ter sido semifinalista dos Rome Prisma Independent Film Awards em Fevereiro.

O existencialismo de Almost Young não pára e prossegue com Suburban Lifestyle Dream; de certa maneira, é uma continuação de People Think, com arranjos muito prog e um baixo para trautear – e título levantado de um tweet de Donald Trump. O sonho suburbano é uma montanha e os dias são um vazio e nada mais há para além daquilo para aqueles que são, em si mesmos, vazios por dentro. Tentem não lixar os vossos próprios propósitos, na vossa cabeça ou na rua – aqui os Dream People viram os Acidic People, mesmo.

Para além da musicalidade evidente, a outra parcela do relevo de Almost Young é a de uma banda que se move pelo dream pop não se ficar pela letra choninhas e batidíssima de desejo no meio dos lençóis ou de pseudo-psicadelices. Com o envelhecimento – ou amadurecimento, melhor se diga – descobre-se que muitas das metas e ideais de vida não passam de oásis ou mesmo de pântanos. E, bem assim, que a mediocridade está mais perto do que achamos e que afastá-la é algo que oscila entre o trabalho de Sísifo e a tarefa hercúlea.

Também o amor é uma dessas tarefas, segundo Talking of Love. Propõe-se a banda falar dele em três autênticos movimentos; o primeiro com um chorus malandro à Warpaint a dar aquela toada melódica para abanar ombros e com condizentes tiradas sobre desejo e ideias, o segundo onde pontifica Taveira com uns falsetes que mereciam palco em Las Vegas de sessentas e setentas e o terceiro com aquele solo gostoso para ser assobiado enquanto se abre uma garrafa de vinho para beber em dueto.

Dizem eles que o amor corre pelo meio de flores e pela chuva ao luar – uma balada em que os Dream People mandam o seu momento sensualão “bô tem mel” e mostram que temos aqui malha para uma espécie de interlúdio nos concertos. Não se admirem se com canções destas chegarem à sua fase de calças de cabedal, cocaína e limusinas e mudarem de nome para Hollywood People.

Em I Knew Everything About You, nova balada dream pop – agora novamente regressados ao tema do tempo. Dos que hoje estão connosco e que amanhã já não estão – e que nos deixam na dúvida. Química do quinteto evidente num crescendo, concluindo com um desespero musicado que parece decalcado do de Hank de One From The Heart (obra-prima injustiçada de Coppola), mas desta vez sem o regresso de Frannie, só mesmo o lamento com guitarras.

Se o início de Almost Young foi em quinta velocidade (para um motor de dream pop, vá) com People Think, o fim, com a canção homónima, é em terceira, essa mudança que é misto de força e de velocidade. Retorno aos temas da acomodação, da angústia e do conformismo (“[…] all around us roots were growing down […]”) num quase barítono na voz a ressoar no fundo do copo-oráculo e uma paulatina metamorfose do sonho para o prazeroso ruído shoegaze (chancela de Sampaio) que dá corpo a todos os dilemas e dores de alma da canção.

E assim fica cantado episódio de quando a banda era quase jovem.

É um disco com ternura e reflexão, com dor e ablação – sem entrar na foleirice ou na fórmula medíocre de uns Cigarettes After Sex desta vida, antes ziguezagueando como uma das suas referências, os Radiohead. Para tal contribuem os arranjos de Sampaio e companhia (dreamgaze, a espaços), em bravo acerto que prende o interesse mesmo nas canções mais longas. E Taveira, cuja voz bem evoluiu e amadureceu, sem remoques.

O tempo passou pela banda e fez-lhe bem; parece que verem o tempo ao contrário na sua quase juventude trouxe-nos um disco com outro pulmão em relação a Soft Violence. Menos idealistas, mais assertivos e continuando a expandir o seu som, mantendo, curiosamente, uma linha de sarcasmo (que bem lhes fica, é a tal diferença), de crítica social e de costumes quando não estão na cama metafórica sonhando num vale de chorus.

Bem navegam os Dream People pelo seu caridoso nevoeiro.


sobre o autor

José V. Raposo

Partilha com os teus amigos