Sábado de Coura. Último dia desta campanha courense. Tempo de começar a fazer a mala, de gastar os últimos cartuchos e de começar a depressão pós-festival. Não obstante, este quarto dia tinha na sua programação vários dos motivos de interesse da edição deste ano: o regresso de DIIV, o tricampeonato dos históricos Franz Ferdinand, as dores de alma de Sharon Van Etten e os concertos sem tretas de Warmduscher e Gurriers.

Chastity Belt – Palco BacanaPlay

Se se pode chamar a melancolia à colação por estarmos na última jornada courense deste ano, então venha de lá um aquecimento com as Chastity Belt e o seu post-punk arraçado com sadcore. Com efeito, a banda de Seattle confirma que é esta uma das suas linhas de força em músicas como Fear; cabendo aqui os deveres de voz a Lydia Lund, que aqui canta o medo como um leviatão estrangulador.

Com um pouco de pedal do acelerador e uns acordes jangle o quarteto transmitiu a mensagem da superação de Different Now, verdadeira sessão de terapia transmitida por amplificadores e bateria. As dopaminas foram sendo libertadas e só por isso já valeu a pena prestar atenção ao concerto das norte-americanas.

VODAFONE PAREDES DE COURA 2025
_ 13 a 16 de Agosto
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DIIV – Palco Vodafone

Aquecidos os motores, andor para o reencontro com os nova-iorquinos DIIV, arautos do shoegaze e, pelo seu historial, verdadeiros sobreviventes dos abusos das expectativas do hype e de problemas de saúde graves. Não passavam pelas margens do Coura desde 2018 e eram, para nós, um dos destaques do cartaz, até porque, para além de não terem um álbum mau na sua obra, o seu trabalho mais recente, Frog in Boiling Water, foi um dos discos com mais assunto de 2024.

Por aqui mesmo começaram o concerto, via In Amber. Zachary Cole Smith canta-nos, suavemente e sobre uma capa contundente de distorção, uma letra sobre desagregações paralelas: a pessoal e a do mundo. A engolição por uma fantasia da letra daquela canção é uma analogia perfeita ao que se foi deslindado ao longo do concerto.

Nas projecções, as letras passavam em legendas e a sátira ao capitalismo tardio, ao consumismo desenfreado e à omnipresença da Internet e da Inteligência Artificial era constante. A repetição de notícias falsas e de teorias da conspiração num loop de propaganda que, aliados à solidão ideológica organizada (como Hannah Arendt a densificou), são a receita para Soul-net, malha chalupagaze que é metade lamento, metade gozo sobre pessoas que se deixaram dominar por teorias da conspiração que viram na Internet (e lá atrás nas projecções um sítio da Internet da autoria da banda que é uma obra de arte sobre o tema, VISITEM) e que fizeram disso vida, convencidas de que são Cassandras pós-contemporâneas.

O que não era gozo nenhum era a execução das canções: magnífica escultura jangle, a de Under the Sun (extremamente adequada à meteorologia dos últimos dias) e seus arpejos e outro (se há banda que as sabe fazer é mesmo esta) a fazerem levitar pés e almas.

Take Your Time é daquelas faixas que parece que foram feitas para o anfiteatro natural de Coura, em especial quando a banda deixa a composição desenvolver o hipnotismo da repetição sonora. Depois da hipnose, o abraço de Taker; um abraço da lindíssima monstruosa brutalidade das guitarras, que nos envolve e impele os ombros para a frente e para os lados, seguindo fielmente o que sai das cordas de Zachary Cole Smith e de Andrew Bailey. E daí o retorno a Frog in Boiling Water para os cafunés sónicos de Reflected e Somber the Drums, convidativos a fechar o olhos e a deixar o que vai pelo éter tomar conta de nós. 

O contraste da distorção agreste das guitarras com a voz etérea e angelical de Cole é o evidente selo de qualidade shoegaze que legitima a banda. Mas não é o único sinal distintivo do assunto dos DIIV: a oscilação emocional, fundada na biografia dos membros da banda (em especial de Cole), é o substrato que dá o pano para as mangas da montanha russa sónica do grupo.

Ainda sobre as projecções, a provocação das alusivas sobre morte aos E.U.A. e ao Ocidente vai para a mesma caixa da mundividência política adolescente (para não dizer ignorante) dos Idles no ano passado. Não sendo o tradicional (e irritante) proselitismo pueril típico de artistas, é um tanto ou quanto indutor de vergonha alheia ver gente cujo estilo de vida seria impossível (salvo se se for um filho do regime) nos países que guincham contra o Ocidente transmitir este género de mensagem sem ser a trollar; este escriba não se opõe a mensagens políticas por parte de bandas, mas pede, com urgência, maior reflexão e fundamentação. O mesmo se diga para quem na plateia aplaudiu este género de coisa.

Quem disse que os DIIV não sabem fazer uma canção desgarrada nunca ouviu Blankenship nem esteve presente em Coura. Com direito a toda a reacção enérgica do público, acordou-nos do sonho lindo quase acabado para um turbilhão que de suave só teve a voz de Cole.

Para o fim da contenda ficou a lembrança de que os DIIV se estrearam nestas lides com uma reinterpretação incrível da escola jangle pop num álbum chamado Oshin. Uma Doused actualizada para a maturidade sonora da banda, na qual o baixista Colin Caulfield mais parecia um animal prestes a rebentar com a sua jaula, fez as despedidas da banda com os correspondentes mosh pit e crowd surf (que este ano não teve movimento entre canções, essa curiosidade courense).

Divergências sobre mensagens políticas à parte, os DIIV não sabem dar maus concertos por cá; a sua visão do sonho e tormenta do shoegaze honra o historial que o género tem em Paredes de Coura, cujo anfiteatro natural parece ter sido feito de propósito para ser ali tocado e apreciado (relembremos o inolvidável concerto dos Slowdive na edição passada). Não foi nenhuma teoria da conspiração, foi mesmo um grande concerto.

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Sharon Van Etten & The Attachment Theory – Palco Vodafone

Nome que há muito queríamos ver em Coura, Sharon Van Etten traz-nos uma autêntica vida nova com os The Attachment Theory, ensemble mais dado às teclas e aos botões do que às guitarras. Longe vão os tempos da introspecção, da guitarra como arma e de gente como Heather Woods Broderick a acompanhá-la em palco.

Se bem que já por alturas de Remind Me Tomorrow os sintetizadores começavam a ser parte integrante do seu som, como bem vimos em Algés em 2019 (com uma interrupção em 2022 com We’ve Been Going About This All Wrong), com The Attachment Theory estamos perante a versão da artista das noites Batcave de Londres dos idos de oitentas, só faltam os morcegos.

Pontificando nesta banda está Devra Hoff, baixista de profícua carreira cuja lista de colaborações é tão longa quanto uma fila na restauração do festival em dia de casa cheia (como este): de Nels Cline a Xiu Xiu, passando por Deerhoof e Mary Halvorson, não haja dúvidas de que um dos talentos de Sharon Van Etten é o de constituir grandes plantéis.

E plantéis de qualidade vivem para fazer perguntas existenciais, como a de Live Forever logo de surra para começar. Os sintetizadores, a bateria e a voz inconfundível de Sharon (que não se coibiu de dar uns passos de dança) abrem a cortina para esta fase tão densa instrumentalmente quanto emocionalmente. Sinal subtil da mudança dos tempos: a saia continua longa, mas agora tem uma racha. Não se metam com ela.

Não se sabendo se queremos viver para sempre ou não, avançou-se para uma óptima reflexão sonora sobre a vida depois da morte com Afterlife, uma daquelas malhas que revela o coração ardente (que é toda a carreira) de Sharon. Sempre se refira que é uma das canções do ano, amplamente (leia-se mal e porcamente num falsete medonho) trauteada por nós sempre que nos calha em shuffle na lista de 2025. Sharon Van Etten Murphy domina o palco e a plateia e, se a ouvisse, Béla Lugosi voltaria dos mortos só para assistir ao concerto.

Voltando ao “antigamente” (falamos de 2019), o vozeirão, os sintetizadores e o cabedal de uma fabulosa versão de um clássico seu como Comeback Kid até deram a entender que quem estava ali era uma tal Siouxsie Van Etten. Hino das confiançudas, foi (então) dos primeiros sinais de que o tabuleiro artístico de Van Etten estava a mudar para o electrónico, que diante de nós atinge a plenitude.

Com a esta nova roupagem se foi percorrendo o disco do corrente ano com a banda homónima, num registo convincente e no qual apostou todas as fichas. A caminhar para o fim, o maior recuo temporal da set list: Every Time the Sun Comes Up. Com uma piscadela de olho à Cyndi Lauper de Time After Time e sem desprimor para a sua fase mais recente, da Fender Jaguar e da voz de Sharon Van Etten saíram acordes e uma letra que são do melhor que já fez. Pouquíssimos retratam a fragilidade emocional como ela.

No entanto, por muito que ela nos queira passar a perna com desgraças, por baixo do negrume do cabedal há uma camada de verde de esperança de que é possível aprender lições de vida que valham a pena, como a de Seventeen. Brilhantíssimo fecho de concerto, uma última carga emocional como só Van Etten sabe fazer enquanto líder incontestada de um conjunto de cantautoras (a par de Marissa Nadler e Angel Olsen, entre outras) que há coisa de uma década se convencionou chamar “gajas da depressão”. A gente pode já não ter dezassete anos, este sítio e aquele podem já ter fechado, há quem também já não ande por aí mas o coração ainda bate e as pernas ainda mexem.

A parte menos boa da actuação? Apesar de já ser previsível depois de se pesquisar os últimos alinhamentos, atenta a qualidade e quantidade de grandes canções na sua obra faltará sempre qualquer coisa; é certo que Give Out é de difícil transposição para um palco desta dimensão, mas uma Serpents ou uma Taking Chances mereciam uma valente consagração no anfiteatro natural do Couraíso, para mais com estas novas abordagens que tem feito.

Para além de um concerto de arromba, Sharon Van Etten venceu ainda “o” Prémio Simpatia deste ano, ganho por larga margem ao dar os parabéns pelo casamento de uma fã presente na pole position da plateia. Não só Van Etten e seus Attachment Theory figuraram nos vencedores da edição, como também confirmaram que a teoria da vinculação da Psicologia também se aplica ao apego que temos pela (sua) música. Sai uma coroa para o palco do canto.

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Warmduscher – Palco BacanaPlay

O quinteto britânico, depois de editar um potente Too Cold To Hold (ao contrário dos finos servidos ali mesmo junto ao palco secundário) no ano passado, tinha naturalmente de vir apresentar o disco e o resto do seu repertório ao Verão português. Quem chegasse àquele palco deparar-se-ia com o domínio cénico de Clams Baker Jr., vocalista norte-americano do grupo que se dedicava a contar os versos sobre forrobodó automóvel de Midnight Dipper, esta de Tainted Lunch. 

A javardice aqui é tipo Viagra Boys mas a puxar para o funk, com linhas de baixo bem gordas combinadas com uma bateria a puxar ao pé maroto no chão. Mas, como banda dada ao caos, mantêm a constante rebaldaria e passam para a variável rock de garagem de Whale City, correspondendo o público com saltos à abrasão das guitarras.

O festão dos WarmAldoDuscher (tínhamos de fazer a piadola) não é propriamente acrítico; Fashion Week, que sacou uns punhos do ar no refrão, é uma crítica jocosa ao vício na moda. Regressados ao plano mais dançável de Disco Peanuts, foram logo de seguida surpreender com Burner, incursão pelo rap que conta, na versão de estúdio, com o lendário Kool Keith – Clams Baker foi aqui um substituto rímico à altura.

O after chegou mais cedo e pagou com juros.

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Os planos de dedicar um texto a um dos concertos deste dia saíram alterados à última da hora graças ao fantástico concerto dos Air. Os franceses, sem precisarem de rebentar com nada (nem sequer com o PA), deram um recital cujo mérito merece umas linhas próprias e, como tal, para aí se remete o relato.

E chegou a hora dos Franz Ferdinand, maior nome deste cartaz e motivo proeminente para este dia ter esgotado, para além de serem dos tais históricos estrangeiros do festival. Já populares em várias gerações, não aparentam ter perdido grande vigor deste a última vez que cá passaram, em 2014. 

Para além desse ano, ainda os apanhámos na sua primeiríssima incursão por Coura, em 2009. O melhor elogio podemos fazer à banda de Alex Kapranos e companhia é que o tempo não passou por eles (para além disso, The Dark of the Matinée continua a ser uma senhora malhona); como se pode ver na fotografia abaixo saltam que se fartam (e põem a saltar, como o incrível cenário de milhares aos saltos com Take Me Out), empolgam, não se esquecem de tocar This Fire (mesmo com a situação dos incêndios no País) e levam mais um prémio de simpatia neste seu tricampeonato em Paredes de Coura.

Como já é tradição, o hino não oficial do festival, All My Friends dos LCD Soundsystem, fechou os concertos do palco principal nesta edição. Uma chuva de serpentinas e de balões gigantes (na qual podemos ou não ter sido cúmplices) caiu sobre a plateia, tendo alguns membros da mesma resolvido experimentar se o que estava dentro dos balões era hélio (não era). A comédia não tem mesmo horas certas.

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Gurriers – Palco BacanaPlay

Os irlandeses, banda com pêlo na venta que ainda em Janeiro passou por cá, são muito mais do que uns Fontaines D.C. ou The Murder Capital dos pobrezinhos. Quando nos livrámos do trânsito humano (menos dois ou três mil bilhetes vendidos e teria sido mais fácil frequentar o festival neste dia) para sair do recinto que impedia que chegássemos atempadamente ao palco secundário, a banda terminava o frenesim de Erasure.

Os Gurriers não estão no topo do cartaz (talvez um dia, a continuarem assim), mas Top of the Bill é uma excelente canção de um disco inteiramente interessante como Come and See. Uma melodia que fica no ouvido (vénia a Ben O’Neill e Mark MacCormack), um vocalista como Dan Hoff e um público com pilhas sem fim deram em festão.

Por seu turno, nas mais ortodoxas No More Photos e Dipping Out dominaram a pulsão noise e um berreiro desgraçado de Hoff na segunda sobre o abandono, pelos amigos, de uma Irlanda que já não quer ser país: “ALL MY FRIENDS ARE DIPPING OUT”. Mesmo de madrugada o rock em Paredes de Coura não morre, pelo menos enquanto houver tempo e set list.

No término, um magnífico piscar de olhos intergeracional (aos Ride, sobretudo), o de Come and See. Continuou a manter o pit aberto, os pés de muita gente no ar e os pescoços em actividade numa malha de indução de pele de galinha à conta da sua melodia e da sua conclusão. Fomos e vimos os Gurriers e com isso fechámos esta edição.

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Depois de um belo encerramento de festival como este (para quem continuou pelo palco secundário, Xinobi era o senhor que se seguia), o epicurismo prosseguiria, às três da manhã, com uma malga de sarrabulho com amigos e companheiros de imprensa (os dois grupos confundem-se). É destas coisas que se faz Coura e é por isto que não é um amor de Verão, mas antes um da maior parte destas vidas.

Até para o ano, Paredes de Coura.

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