Reportagem


Vodafone Paredes de Coura

Resumo do 3º dia

Praia Fluvial do Taboão

17/08/2018


© Hugo Lima

Entre a introspecção de Lucy Dacus, a hipnose tuaregue de Imarhan, o politicamente correcto Kevin Morby, a freakalhice boa dos DIIV, o furacão Trail of Dead, o realismo dos Slowdive, o grime de Skepta ou o acontecimento extra-musical das Pussy Riot

 

Em mais um dia de calor courense (sem chuva à vista, felizmente), marcaram o início do dia a introspecção de Lucy Dacus e as suas letras de chonice passivo-agressiva que tocam no negrume de muitas relações interpessoais. A cantautora de Norfolk, Virgínia, que conta já com dois álbuns de originais editados pela Matador, deu conta do recado, ao conferir um peso ainda maior ao vivo às suas canções pensadas e que bem serviriam de banda sonora a um filme de John Hughes. Mais: tinha Deus Adolfo Luxúria Canibal a assistir ao seu concerto, abençoando-lhe a estreia em solo nacional.

Canções como Pillar of Truth (que fez questão de dedicar à avó, até porque esta é a base da composição) mostram que Lucy Dacus poderia ser a bússola moral de um filme do saudoso realizador: frágil, mas com capacidade de ir buscar força sabe-se lá onde. Se em Coura as canções soam mais pesadas e despidas dos arranjos de estúdio, certo é que não perdem gravitas. Sentem-se o coração e a alma latejantes de Dacus nos diálogos com amantes imaginários: veja-se a belíssima Nonbeliever.

Em cartazes que têm sido um desfile de cantautores e bandas que sabem mostrar emoção sem perder (totalmente) a cabeça, Lucy Dacus concluiu um concerto bem conseguido com Night Shift, canção cujo crescendo é uma mostra das fragilidades das almas, mas também da bondade da personagem. Não se preocupem com ela, que ela é fixe e faz o turno da noite pelos vossos pecados. Mas é capaz de ficar desiludida depois de vos dar uns beijos e provar a vossa saliva, ficam já avisados.

Ainda Lucy Dacus tocava os últimos acordes, já se ouvia algo bem diferente no palco secundário. Os argelinos Imarhan movem-se num universo semelhante ao dos Tinariwen ou de Bombino, que passou por Coura há uns anitos. É blues psicadélico do deserto, muito marcado pelas guitarras tuaregues. Ora faz dançar de forma desenfreada com as acelerações rítmicas, ora, de forma hipnótica, abanamos apenas ligeiramente a anca nos temas mais calmos. Em nome da diversidade, uma das já clássicas e bem-vindas propostas de world music a que o festival já nos habituou.

Kevin Morby tinha prometido trazer uma camisola do Futebol Clube do Porto. Por isso, muitos adeptos dos dragões equiparam-se a rigor para receber o ex-Woods. Em vão: Morby veio à civil e terá cedido ao politicamente correcto, afirmando que gosta do país todo, que Portugal é um dos maiores sítios do Mundo e blá, blá, blá.

Dois danos depois, Coura voltou a receber a folk americana de Morby, bem tocada e cantada, em que se destaca a entrega e o impulso rítmico dado pelo baterista. Há uma ou outro tema contemplativo (género slow Americana) mais chatinho, compensados com o fulgor pop de temas como I Have Been to the Mountain, com o devido acompanhamento de trompete. Mais conhecido que em 2016, o músico norte-americano voltou a cumprir a missão para um simpático final de tarde nas margens do Coura. Agradável, mas longe de ser memorável.

Os DIIV são um caso bicudo: o disco de estreia, Oshin (Captured Tracks, 2012) catapultou-os para um estatuto para o qual não estavam habituados e as máquinas de criar hype trataram de quase destruir a banda: cavalaria, namoricos com cantoras famosas, detenções e todo um conjunto de polémicas que em nada abonaram a banda e, francamente, a tornaram num grupo mais digno de chacota do que outra coisa. Zachary Cole Smith, emaciado vocalista, guitarrista e líder da banda, conseguiu aguentar o navio – mas a muito custo.

Passados alguns anos desde a última passagem por cá e ao contrário do que se escreveu por aí, não nos pareceu que os DIIV estivessem em péssima forma; pelo contrário e salvo um desafinanço ou outro, Smith e companhia denotaram que o músculo de tocar ao vivo está hipertrofiado e que a execução das canções foi sem grande mácula. Por entre um radical chic na farpela que, dado o conteúdo das canções e o estilo da banda, lhes fica algo blasé e converseta de palco com piadolas sobre a Super Bock (“se se chamasse Hyper Bock venderia ainda mais!!!”), a banda acabou por convencer e afastar algumas dúvidas que acima de si pairavam: Dopamine, de Is the Is Are (Captured Tracks, 2016), resultou de belo efeito.

Remataram com um momento hilariante na sua ironia: uma das melhores canções da sua estreia, Doused, serviu de banda sonora a um anúncio da ZON (hoje parte da NOS), concorrente directa da Vodafone, patrocinadora do festival – Smith, com fina ironia e humor, limitou-se a apresentar a sua canção como “Vodafone”. Não sendo dos melhores, foi um concerto bem melhor do que o esperado por parte da banda do Harry Potter de Brooklyn.

Os …And You Will Know Us By The Trail Of Dead voltaram a pisar palcos de Paredes de Coura (e nacionais, diga-se) sete anos depois da última passagem por cá. Num concerto de tal maneira fantástico, remete-se para texto próprio, que o quarteto de Austin bem o merece.

Os Slowdive não estão em palco para enganar ninguém. Tudo na música e nada nas palavras e nos floreados. Costuma ser assim no shoegaze, era assim na primeira vida da banda britânica, nos anos 90, e volta a sê-lo neste regresso. A essência está nas guitarras e na forma como é doseado o ruído e a melodia para nos transportar para um mundo paralelo.

Num concerto em crescendo, os melhores momentos estão na recordação do velhinho Souvlaki, como no riff viciante de Souvlaki Space Station ou no mais catchy When The Sun Hits, mas não só. Neste rergresso, os Slowdive conseguiram a proeza de construir um dos grandes temas do ano passado, uma arrepiante canção melancólica chamada Sugar to the Pill. E, claro, só podiam fechar com a grande versão de Golden Hair (Syd Barrett), com o falsete misterioso de Rachel Goswell a abrir caminho para a imparável progressão pós-rock das guitarras. Os Slowdive cumpriram. Não esperávamos deles outra coisa.

Skepta, vindo dos subúrbios de Londres para o mundo (e por cá regressado), manifestou a eficácia dos avisos da Protecção Civil relativos aos incêndios florestais (até partilhou a mensagem que recebeu da entidade no Instagram) e desfilou batidas e contos sobre as tropelias da vida na chavolândia que é o Reino Unido dos últimos vinte anos. Não havendo por lá os incêndios que por cá temos, houve histórias de roubos e de alcatrão molhado pela chuva e por sangue.

Se em 1977 os punks tinham uma maneira bastante estúpida (e atentatória contra a saúde pública) de mostrar agrado sobre o que viam em palco – cuspir para cima dos artistas, o gobbing, em 2018 parece que os fãs portugueses de Skepta demonstram o seu afecto atirando pilhas e lanternas para cima do grimer/activista britânico, que logo avisou que a brincadeira poderia sair cara – o que levou a minutos de paragem, com aviso de membro da organização para pararem com os arremessos ou o concerto acabava ali. Virou-se o público para pancadaria no mosh pit, enquanto Skepta rimava em No Security (uma óptima música no meio de certa monotonia), com DJ Maximum a garantir uns baixos que faziam tremer até a zona de imprensa.

Um mergulho em Pure Water e em mais algum material de Konnichiwa chegou para que os empoeirados (menos do que em anos anteriores) membros do público berrassem o nome do artista, que serviu a dose de grime em cerca de uma hora de concerto – mais confusão, menos confusão.

O palco After Hours ficaria depois marcado por um dos acontecimentos da edição deste ano, a estreia em Portugal das russas Pussy Riot, cuja análise pode ser vista à parte.

Textos de João Torgal e José V. Raposo


sobre o autor

Joao Torgal

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