Reportagem


The Cure

Certezas da vida: morte, impostos e que a obra dos The Cure envelhece magnificamente.

NOS Alive

11/07/2019


Robert Smith e companhia andam nisto, mais formação menos formação, desde 1976. Por cá já passaram cerca de nove vezes entre 1989 e 2019, com vários picos de forma. Com tudo isto, uma certeza: os The Cure foram o nome maior desta edição do NOS Alive e reis do primeiro dia, em óbvio cabeçalato de cartaz, dado serem referência da música popular e de uma data de subculturas e movimentos, do post-punk ao rock dito gótico e ao alternativo e à new wave e a morcegos e etc. e etc..

Sempre na sua onda de Beetlejuice, Eduardo Mãos de Tesoura e poeta romântico (sim, pela liberdade de expressão de emoções, já chega disso dos góticos) britânico, Smith trouxe a sua lendária máquina de negrume por vezes colorido (passe a contradição) a Algés pela segunda vez – a primeira foi em 2012. Veio acompanhado de Simon Gallup, compincha artístico já de larga data e baixista cool até dizer chega, de Roger O’Donnell, histórico teclista, de Jason Cooper (já o baterista com maior tempo de serviço no conjunto) e Reeves Gabrels, ex-guitarrista de Bowie, que substituiu Porl Thompson e cujo nome só é equiparável aos de Frederick Schmulders ou Elvis Grbac.

Para quem marcou presença nos três anteriores concertos da banda de Crawley em Portugal, havia que considerar que seriam três (ou quase) horas de actuação, com duas plenas daquilo que a malta quer mesmo ouvir e uma de chouriço, isto é, de material pós-Wild Mood Swings que pouca ou nenhuma relevância tem, salvo para verdadeiros fanáticos do grupo, daqueles para quem Smith é São Robert. Em vez disso, foram duas horas a rasgar pano preto, iniciadas com uma enorme Shake Dog Shake.

Inserir piadas e mêmes com o Fat Bob a comer a flauta em Burn, canção da banda sonora de The Crow (até os Corvos de São Vicente se riram). À entrada do concerto saltava ao ouvido uma evidência: a qualidade do som, para lá de admirável, contrastando com a experiência de 2012 naquele mesmo palco.

Estamos em 2019, ano em que se assinala a provecta idade de trinta anos de Disintegration, o apogeu criativo dos The Cure e não só um dos melhores discos dos anos oitenta, mas também de sempre. Teria sido preferível uma interpretação na íntegra do álbum, mas Fascination Street logo à segunda encheu as medidas – voz intacta de Smith, aqueles emaranhados de guitarra e a bateria (Jason Cooper poderia ir dali directo para um episódio de Stranger Things, tamanho era o penteado).

The Cure

Mesmo com uma voz como a de Smith, por vezes há que deixar aquela sonoridade inconfundível falar por si e relegar a voz para segundo plano e foi mesmo assim com Push (de The Head on the Door, 1985). Pelo dia 26 de Agosto de 1985 se continuou, com In Between Days, aquele momento em que Smith mostra que também na acústica soube sacar malhas e o público uns “ro-ro-ro-ro” com a melodia.

Bom vento na vela, que se tornou em vendaval com Just Like Heaven. Decerto a canção preferida dos Rádio Macau, que lhe pescaram os acordes com um anzol (rsrsrs) e fizeram eles próprios um malhão, foi de execução irrepreensível, com o público rendido de braços no ar, pessoas às cavalitas (telemóveis opcionais) berrando que alguém é como um sonho e a certeza de que este monumento dos The Cure foi tornado ainda melhor pelos Dinosaur Jr.

From the Edge of the Deep Green Sea (Wish, 1992) garantiu que Smith ainda consegue chegar aos agudos de antigamente e manter as coisas interessantes durante quase oito minutos, prosseguindo para outro hino da banda: Pictures of You. Esta merece uma menção especial; de todos os rendilhados de guitarra (ou baixo de seis cordas) dos The Cure, este é o nosso preferido. No ecrã, uma fã já quase que chorava (não julguem, que não era para menos).

Gaita, seja em estúdio ou ao vivo, poderíamos ouvir aqueles primeiros dois minutos e meio em loop, seguidos do último minuto e meio. A abordagem de Cooper na bateria não destoa da estabilidade de Boris Williams (Boris, o bom) e o resultado é um momento de diamante (negro, claro) da noite. High era apropriada para o que se sentia: um magnífico concerto a acontecer ali à nossa frente.

Ao nosso lado, um britânico de meia-idade de chapéu da EDP fitava-nos, tentando perceber se nos conhecia, lançando um “you don’t look like a bloke with glasses, mate!”; retorquimos apontando para um outro bloke de óculos, ao que o interpelante respondeu, com alegria, que “oooh you found me son, mate. Thanks!”. Serviço público Arte-Factos: a ajudar bêbados a reencontrarem-se com as famílias.

Tal como há trinta anos no saudoso antigo Estádio de Alvalade, Disintegration continuava na ordem de trabalhos: uma Lovesong que honrou o trabalho de estúdio. Numa noite destas a apropriada A Night Like This, portento janglesco que se safou bem sem o saxofone de estúdio. O chouriço ficou mesmo todo lá em Crawley, estava visto.

The Cure

Ora bem, os The Cure não começaram em 1985 ou coisa que o valha, mas sim em 1976; não se recuou tanto no tempo, bastou ir a 1980 buscar aquele som esparso de Play For Today (de Seventeen Seconds). Smith e Gallup bem poderiam ter escrito The Forest ali na mata do Jamor, que teve direito à tradicional luz verde (#ondaverde) e ao maior afastamento das versões de estúdio.

Permaneceu-se no período com Primary (Faith, 1981), em seguida uma dispensável 39 e por fim o sangue escorrendo pelas paredes do palácio (como diria William Blake) dos The Cure, numa esmagadora One Hundred Years (Pornography, 1982) – com o regresso “daqueles” agudos. Até interessa se morrermos todos, mas valeu a pena se tivermos visto um showzaço de bola destes.

Acabou o alinhamento principal, o público queria mais e essas coisas todas. E teve-as, que o encore (único, de sete gloriosas canções) foi só malhões. As aranhas da banda não são de desleixo nem abandono, mas sim as de Lullaby, uma das grandes melodias que saíram da pena de Smith, tal como uma das enormes linhas de baixo de Gallup.

De aranhas para The Caterpillar. O “tu-tu-ru-ru” (só assobiávamos) do público provava que a execução e a inclusão na setlist foram acertadas. Sendo o concerto um passeio por quarenta anos, The Walk (ah, os sintetizadores) figurou brilhantemente, garantida por um O’Donnell guardião do legado da banda.

Já era sexta-feira e toca de ir anunciar ao Mundo, em Friday I’m in Love, que se está apaixonadinho (e o público igualmente apanhadinho) e que só este dia interessa. Em Close To Me, aquele momento em que Smith deambula pelo palco ora como uma criança, com gestos ternurentos, ora como um Percy Bysshe Shelley numa ode – não ao vento do Oeste, mas à nossa Nortada. Ou então eram só saudades da sua Mary Poole e lá vai um abraço metafórico.

Why Can’t I Be You? Não sabemos, mas saiu bem. Ok, talvez porque não temos dinheiro para tanto fixador e maquilhagem (nem talento). Os rapazes não choram? Só mesmo quando sabem que Boys Don’t Cry fecha a noite, em plena comunhão (mais uma) entre banda e público – os do palco ainda a sabem tocar e os cá de baixo ainda a sabem cant-, gritar. Noite ganha.

Um dos concertos do festival e uma aposta ganha da organização. Nota de apreço para o ébrio espanhol ao nosso lado que se lembrava de nos dar luz quando escrevíamos. Só sabemos que era de Barcelona e esta foi a sua segunda vinda ao NOS Alive. Em boa hora o fez.

Galeria


(Fotos por Hugo Rodrigues)

sobre o autor

José V. Raposo

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