Se, já dizia Descartes, a consciência é o facto inegável da nossa existência, então não é ilusão nenhuma. E através da consciência lá vamos explorando o que nos aprouver (mediante limites morais, legais e, bem, financeiros), com atracção pelo que foge à regra, o que neste caso corresponde a música com assunto, venha de quem vier e de onde vier. O caso de estudo desta noite foi o dos Spirit of the Beehive, grupo norte-americano com muito assunto que finalmente se estreou em Portugal, em Lisboa na Galeria Zé dos Bois e no Porto no Radioclube Agramonte.
Em mais um Super Ballet, que já contou com nomes como Alabaster DePlume ou Model/Actriz, o aquário da ZDB assistiu à actuação de uma banda que, não obstante andar nisto desde 2014, tem andado verdadeiramente em brasa há pouco mais de meia década, contando, nesta mesma fase fulgurante, com três álbuns e um EP fascinantes, tendo-se tornado num baluarte do melhor experimentalismo pop que para aí anda, sem rodeios e sem medo de fazer de várias das suas canções um caldeirão de experiências.
A banda de Filadélfia tem por núcleo duro da formação Corey Wichlin (guitarra, samples, sintetizadores, voz), Rivka Ravede (baixo, samples, voz) e Zack Schwartz (sintetizadores, guitarra, voz; ex-Glocca Morra, com sopros à emo do Midwest e tudo), contando ainda com um alicerce fundamental na bateria para expor as suas ideias. São estas em barda e muito apetite provocam aos ouvidos, como se verá.
Mais do que mero aperitivo sonoro foi a abertura da noite, a cargo de SAD, novo projecto de Francisco Couto. Baixista que é comparsa de Maria Reis ao vivo e parte fundamental dos bbb hairdryer, sem esquecer HIFA, registo a solo noutras paisagens, ora de batidões, ora de apanhar carreirinhas nas ondas dos sonhos. Mais se refira que “curiosidade” é palavra de ordem na criação de Couto.
Encarnando SAD, precisou apenas de um baixo, de pedais e de um microfone (e tendo uma cortina de fumo como companheira de palco) para revelar um equilibrismo sónico entre a melodia etérea e uma dose agradável de noise, com certo músculo à Lemmy vertido nas cordas. De uns acordes que lá ao longe lembram Heroin dos Velvet Underground para uma sequência de largos minutos de vénia ao shoegaze em forma de estardalhaço nos acordes, valeu de tudo para fazer da tríade baixo-voz-efeitos mais um capítulo do caminho criativo de Francisco Couto, que com pouco acabou por fazer muito.
“Só tenho mais cinco minutos!”, exclamou. E que belíssimo uso lhes deu ao sacar uma versão e tanto de Torn, grande êxito de Natalie Imbruglia de 1997/98 (ainda que o original seja de Ednaswap), com a qual acabaria por fechar a sua parcela da noite. Embrulha, Natalie.
Falando de fins de noventas e de outros fenómenos culturais de então, recorra-se a uma expressão desse tempo: há que dizer isto com frontalidade que, como já muitas vezes se disse, bandas com a veia criativa dos Spirit of the Beehive não são para colocar na prateleira da fórmula da banalidade. Para além da óbvia criatividade da banda, estamos perante um encontro de escolas de experimentação pop de anteontem e de ontem: dos Beach Boys, dos Talking Heads e dos Spiritualized até aos Animal Collective e aos Women. E tendo o anteontem e o ontem como input fazem o output do presente e do futuro.
Grande golo de pontapé do meio da rua logo ao começo com nail i couldn’t bite, canção que abre Hypnic Jerks, primeiro álbum desta investida impression. Uma brilhante redefinição da jangle pop auxiliada por harmonias de sintetizador e de voz que, assim de surra, nos brinda ainda com uma quebra de city pop/final de um episódio de Culinária na RTP em 1992 que deixaria David Bruno orgulhoso. Toda uma estranheza que se revela memorável.
Como aquelas equipas que pressionam alto e que procuram o golo mal têm a bola, marcam logo outro golaço com uma canção quase gémea da de abertura: mantra is repeated. Numa letra que parece o início de um capítulo de um manual de Psicologia e que repete o verso “he says it’s right on track” como se fosse, bem, um mantra, é libertada uma dose cavalar de dopamina aqui na mioleira pelo diálogo entre guitarras e entre vozes, devidamente acompanhada de um trabalho de bateria escorreito e no ponto.
Avançando na setlist e na fita do tempo para o mais recente trabalho de estúdio, chegou-se a YOU’LL HAVE TO LOSE SOMETHING (2024) e I’VE BEEN EVIL. O minimalismo post-punk de estúdio à moda dos Wire dá lugar ao sangue na guelra da crueza dos acordes (que aqui estão em destaque na mistura), que ainda assim resvalam para o onírico, para um fluxo de consciência punk que levantou bem mais movimento na sala do que a típica exploração mais pop de outra autoria.
A elegância e suavidade da pop de LET THE VIRGIN DRIVE (a escola ALL CAPS do saudoso MF DOOM com mais estes seguidores) fez-nos lembrar os Real Estate (dois grandes concertos deles que ali vimos há uns bons anos), os Girls e os Deerhunter; uma torrente de acumulação de ideias que só poderia advir destes tempos de excesso de informação em que só interessa quem a souber filtrar e tornar em algo coerente, seja uma monografia ou uma canção. Quando achamos que o guião alterno vai ser seguido pelo grupo, um sample, um acorde, uma ida aos pedais ou uma melodia no sintetizador servem de lembrete bem audível de que os Spirit of the Beehive escrevem o seu próprio argumento – chamar-lhes “indie” seria um bocado para o redutor.
Mesmo à nossa frente, duas SP-404 Mk.II e um ferrinho pendurado num sintetizador marcam o simbolismo criativo do conjunto e fazem magia, muita magia. Fôssemos comentadeiros de televisão e se nos fosse pedido, como numa rubrica imbecil, para reduzirmos o concerto a dois ou três adjectivos diríamos: agradável, desafiante e original.
Depois de um agradecimento de Ravede pela presença do público nesta sua primeira vez na capital, eis THE SERVER IS IMMERSED, cujas maiúsculas no título são, tal como nas demais canções, inteiramente merecidas. Autêntica banda sonora desta vida por alturas da pandemia, tendo tocado por aqui em loop, é uma duradoura comida de conforto melódica com um crescendo de intensidade magistral que aqui diante de nós é ampliado a uma percentagem bem jeitosa. Wichlin, Ravede e Schwartz revezam-se nas vozes e na instrumentação para nos mostrar a que soa a pós-contemporaneidade.
Vai daí para a canção cujo título remete para um felácio ao Diabo, mas cujo prazer é todo para quem assiste à interpretação de um portento psicadélico. De um mar sónico bravio que larga os samples de estúdio para se tornar numa agressão punk surreal (o ferrinho a servir de sismógrafo da intensidade em palco) e a dar lugar a uma quebra onírica de noise e drones que hipnotiza e que torna um concerto já de si brilhante num clímax pelo éter que, mesmo assim, revela toda uma intensidade contida.
Retorno ao baú para sair de lá um último tesouro da noite, can i receive the contact?, registo aparentemente mais convencional. Por convencionalidade entenda-se um muitíssimo bem conseguido excurso pelo rock dito alternativo escorreito com um fio de ruído para marcar aquela diferença ao vivo e fechar um concerto que consagrou a banda como possuidora de assunto em disco e de se transcender ao vivo, o binómio que consagra os grandes grupos.
Um concerto no qual, trazendo Ferlinghetti à colação, se levantaram miríades de manhãs sónicas. Um firmamento de experimentalismo sem vergonha de nada e que se serve mui competentemente dos instrumentos do ofício – samples, loops, interligação de vozes, tradições pop – para constituir uma obra capaz de figurar no topo da banda sonora desta nova Idade da Ansiedade em que nos enfiaram.
Os origami sónicos dos Spirit of the Beehive ganharam novas dobras que só demonstram que as capacidades e a singularidade da banda vão, grão a grão, torná-la numa referência no que diz respeito ao equilíbrio entre acessibilidade e experimentalismo na música popular ocidental deste tempo. Face ao que precedeu, muito se agradece esta transmissão de valores.
“Were you vibing?”, perguntou-nos Corey Wichlin na banca de merchandise após o concerto. Não há como não vibar durante (e depois!) daquilo, pá.
Tal como a enigmática casa do filme homónimo, cada audição – em disco e ao vivo – de Spirit of the Beehive esconde novos pormenores que não nos deixam parar de visitar aquele sítio em forma de arte, por muito esquisito e imprevisível que pareça. Há sempre beleza e assunto nos cantos sónicos desta “casa”.
É o fascínio da aventura pelo estranho.

