Reportagem


Nick Murphy

O "love" ainda é "mutual"

Coliseu dos Recreios

01/10/2019


Estávamos em 2015 quando o nome Chet Faker, armado apenas de um EP e um primeiro longa duração (Built on Glass), esgotava salas um pouco por todo o lado, sendo que por cá a febre pelo australiano atingiu picos de histerismo na corrida às bilheteiras das duas noites seguidas no Coliseu de Lisboa, ainda assim insuficientes para saciar a fome de um público completamente rendido à voz de mel desse crooner que, mesmo sob o estrelato dos holofotes, parecia capaz de manter um certo mistério, escondido atrás de uma das barbas ruivas mais invejadas, e suspiradas, de sempre. Nessas duas noites apresentou-se com alguma reserva e desconforto em palco, próprios de quem subiu muito alto e muito rápido sem tempo para absorver a dimensão de si mesmo, mas quebrando qualquer distância a cada vez que se sentava aos teclados e a sua voz única nos despia por dentro, camada após camada, muitas emoções já esquecidas, como na arrepiante “I’m Into You”, assim como em seguida era capaz de nos acelerar o pulso numa cintilante pista de dança de “1998” ou de nos trazer uma doce nostalgia, em “Cigarettes and Chocolate”, de momentos que a nossa memória não conseguia sequer identificar. O hype em torno do músico poderia dizer-se exagerado (certamente que o foi), mas ficaria plenamente justificado para quem testemunhou esses momentos.

Entretanto, Chet Faker esgotou-se em si mesmo, como uma fénix incandescente e das suas cinzas surgiu um renovado Nick Murphy, um homem com o objectivo muito concreto de se encontrar a si próprio, em busca de novas direcções artísticas e pessoais, trocando a Melbourne from down under e o estúdio improvisado do seu quarto, pela cosmopolita Nova Iorque e as suas infinitas possibilidades. Após vários teasers, como o EP Missing Link e colaborações esporádicas ao lado de nomes como Flume, Bonobo, Kaytranada ou Marcus Marr que, para além de nos soarem mais electrónicos e parecerem definitivamente deixar o crooner de lado, davam muito poucas outras pistas de quem era afinal Nick Murphy, que tão insistentemente se queria divorciar do seu nome inventado, nos vários comunicados dados. Tivemos de esperar até 2019 para que chegasse por fim Run Fast Sleep Naked, editado em Abril, o primeiro longa duração do australiano em nome próprio, apresentado no Coliseu dos Recreios na passada semana, com muito pouco de Chet – como prometido -, mas com algo de faker – para desilusão nossa.

Run Fast Sleep Naked para além da amálgama confusa de ideias musicais e conceptuais, que revelam a pouca espinha dorsal de um disco que pretendia trazer a lume a verdadeira identidade de Nick Murphy, ao vivo é apenas a prova de que é também desprovido de verdadeira emoção, que nem momentos como a entrada em crescendo poderoso de “Hear It Now” ou o apocalipse pop do fecho de “Sanity” conseguem salvar e justificar. Os momentos de maior júbilo, aos quais o Coliseu praticamente esgotado (embora desta vez uma data tenha sido suficiente) responde com fervor são quando Chet Faker assoma nas gloriosas “Gold”, “1998” e “Talk is Cheap” (que crispou os nervos na expectativa da sua longa entrada), sendo o de maior comoção nos cerca de 5 minutos de honestidade de  “I’m Into You” – sozinho ao piano e eternamente mágica – que só por si valeram as perto de duas horas de concerto – uma prenda rara para o público de que Nick Murphy se diz grato pelo lotta love sempre recebido, a cada vez que aqui regressa.

Nem tudo é “pior” neste “novo” Nick Murphy que agora é capaz de se soltar completamente em palco, numa liberdade e confiança que dá gosto de ver. Percebemos que deixar Chet Faker no passado é muito mais tarefa nossa, do que do australiano que vive agora bastante mais confortável na sua pele. Quantas vezes poderá ainda Nick Murphy se reinventar? Todas as que quiser. Mais vale pelo caminho perder o entusiasmo de alguns fãs, do que perder-se a si próprio, até porque, para já, parece-nos que para a grande maioria o “love” ainda émutual.

Galeria


(Fotos por Hugo Rodrigues)

sobre o autor

Vera Brito

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