Por entre o ser e o dever-ser da criação artística, há quem destrua fronteiras e consagre a sua singularidade, tanto faz o género ou sub-género. Na música com peso sónico, os Blood Incantation, quarteto (ao vivo quinteto) de Denver, são um exemplo dessa eliminação de barreiras. De regresso a Portugal após oito anos volvidos da sua estreia (que o grupo lembrou em palco), agora com a chancela da Amplificasom, a banda norte-americana veio mostrar que a sua popularidade é fruto do seu arrojo.
Formados em 2011, são compostos por Paul Riedl (guitarra, berreiro), Jeff Barrett (baixo), Morris Kolontyrsky (guitarra), Isaac Faulk (bateria) e, para ilustrar ao vivo muitas das texturas sónicas do grupo, John Gamiño nos sintetizadores. Os Blood Incantation, lá pela sua dimensão, são construtores de pontes: entre géneros e entre períodos artísticos; tanto inovam como são guardiões das melhores tradições do metal extremo.
Para aquecer as hostes houve Author & Punisher. O projecto do norte-americano Tristan Shone, que já conta com duas décadas e várias visitas por cá, é uma autêntica mostra de engenharia de garagem: peça central do enredo são as ubíquas máquinas-instrumentos Drone e Dub, controlando a mão direita de Shone o ritmo e a esquerda o que passa por melodia na sua obra. Soando que nem Bane depois de mudar de carreira de vilão de Gotham City para músico de noise e industrial, faz-se acompanhar de Doug Sabolick na guitarra, para ajudar a apresentar Nocturnal Birding, álbum acabado de sair e que foi aqui rijamente martelado.
Numa das mesas que suportam a maquinaria de Author & Punisher pode ler-se, em jeito de homenagem a Woody Guthrie, que estas máquinas matam fascistas. Para além de adeptos de Mussolini e companhia, a entrega de Shone quando manobra alavancas, manípulos e botões cai no goto da plateia, mata todos os receios de que o projecto tenha caído na mediocridade.
Mais do que as parecenças sonoras de uma mescla de Suicide com Nine Inch Nails, a actuação de Author & Punisher serviu para introduzir o tema da idiossincrasia como força motriz criativa, aqui aplicada ao peso auditivo. Do pântano industrial da distopia seguiríamos, dentro de momentos, para outra dimensão.
Um das primeiras provas de que Blood Incantation não são uma banda qualquer é a passagem de Pocket Calculator de Kraftwerk no PA imediatamente antes de começar o concerto (e logo a seguir a um soundcheck de última hora com o grupo encapuzado). Quando se lê o livrinho, perdão, o manual de instruções cósmico que que acompanha Hidden History of the Human Race, por lá consta o nome dos pioneiros de Düsseldorf – e de muitas bandas que estão no cerne da singularidade do grupo.
Tal como os Black Sabbath (RIP Ozzy), Sleep, Neurosis, Sunn O))), Sepultura, Slayer, Voivod, Celtic Frost, Napalm Death, Saint Vitus, Mayhem, Bathory ou Agalloch (e por aí fora, ufa!), os Blood Incantation distinguem-se precisamente pela idiossincrasia no meio do atavismo dos pares do peso: são uma banda que, apesar de ser aparentemente de nicho, transcende-o para almejar uma popularidade abrangente. Poucos soam como eles, a atitude diverge dos demais e abarcam fãs da mais variada proveniência. Note-se que este escriba está bem longe de ser fã de death metal; para além dos argonautas de Denver, só tolera mesmo Bolt Thrower (ah, War Master) e umas quantas de Morbid Angel.
Arranque sem misericórdia pelas 21:47h, Zulu ou, na hora de Blood Incantation, no tempo de abrir o portal com a interpretação na íntegra de Absolute Elsewhere através de The Stargate e seu primeiro espancamento-, andamento, The Stargate [Tablet I]. Ao fim de dois minutos, uma quebra fabulosa que transforma a banda em King Incantation ou coisa que o valha, abrindo uma veia prog que sangra gloriosamente. Está aberto o portal para o cosmos do grupo de Denver, delimitado por obeliscos (com luzes!) que constituem mais uma mise-en-scène típica de grandes bandas de metal (oi, Mayhem), que é naquilo em que os de Denver se tornaram.
Vai daí para uma homenagem involuntária aos polirritmos à Fausto Bordalo Dias (RIP) em The Stargate [Tablet II], novo andamento/devaneio que recupera violentamente o peso, com o pedal duplo de Isaac Faulk a liderar a carga, enquanto Paul Riedl, xamânico das guturais, dá a missa no terceiro e último Tablet: “Above the sands of time, its shadow is cast again / The monolith returns, demanding passage”.
Não vai ser fácil voltar às versões de estúdio depois disto. O que já era um dos melhores álbuns de 2024 ajuda a fazer deste um dos melhores concertos de 2025. E da década.
Findo o lado A do álbum, alguém na plateia mostra o vinil e Riedl pede que o conviva vire literalmente o disco para que a banda possa avançar para o lado B. Na execução do material da segunda parte de Absolute Elsewhere pontifica The Message [Tablet II]. Para além de toda a descarga e riffalhada, é, também, o mais longo excurso pelos progressismos sónicos da noite, mantendo-nos em área de ar muito rarefeito – uma evocação de outros tempos com uma roupagem contemporânea que só se pode classificar como Magma Incantation.
Remate de Absolute Elsewhere com The Message [Tablet III] e os seus mais de dez minutos de guinadas rítmicas, mensagens de libertação da canga carnal e de perdas pelo meio das sombras do tempo e quebras incríveis nas quais os sintetizadores lideram a carga. Tudo com correspondência na plateia com cornos e pessoas no ar, headbanging a monte e, pelo meio, um intrépido desenhador a retratar a contenda.
Finda a mostra do mais recente trabalho da banda de Denver, regresso ao passado através de uma selecção (demasiado pequena) de balázios prévios, com The Giza Power Plant à cabeça que, segundo Riedl anunciou, foi a “sexta canção que alguma vez compusemos”. Monstruosa malha de Hidden History of the Human Race, esse monumento metaleiro fundamental dos últimos dez anos (e que deu origem a muita même Inzane), para nós representou o momento em que o death metal se tornou plenamente admirável.
Não sabemos se dormir numa pirâmide dá direito à imortalidade, mas o que acabou de acontecer à nossa frente foi uma das melhores jardas que jamais (ou)vimos: a banda é incansável (será dos obeliscos?), os riffs tortuosos e lancinantes, os sintetizadores lançam as texturas necessárias e a secção de ritmo só pode andar a fazer batota porque não é deste mundo.
Reitera-se: os Blood Incantation não são uma banda qualquer. São bem mais do que uma banda de death metal e derivados “normal” e bem mais do que metal para hipsters. Parecendo que só andam pelo death metal, percorrem vários territórios e não destoariam mesmo nada num Out.Fest.
Falamos de uma banda de metal a quem deu na telha fazer um disco de ambient, Timewave Zero (2022), apropriadamente editado durante a pandemia; ora, se tudo estava de pernas para o ar, nada como fazer o mesmo artisticamente. Não há fronteiras neste portal dos Blood Incantation, que é muito mais do que mera opção estilística, é um universo com dois corpos celestes principais: o riff e o esbatimento de fronteiras criativas.
Com efeito, se as teclas e a secção de ritmo compõem gloriosamente o ramalhete com uma atmosfera lúgubre e combustível para dar cabo de pescoços, nas guitarras Riedl e Kolontyrsky complementam-se formidavelmente num envolvimento sónico que nem o esmagamento do “abraço” de uma jibóia. O que noutros soa a formulaico (quando não foleiro e gasto), neles soa para lá de bem.
De quebras à bruta trava-se a fundo para inversões de marcha de prog rock – Riedl larga as guturais e até soa a um David Gilmour com menos trinta anos. Se tudo está maravilhosamente concatenado em estúdio, ao vivo é vigorosamente executado; a banda é ainda mais pesada sonicamente in loco e provoca-nos um sorriso de admiração. Não é marketing, é realidade: nestes tempos que correm, os Blood Incantation são uma das melhores bandas não apenas de metal, mas também do planeta.
Em tempos conturbados e de flagelação da ordem estabelecida e da segurança daí resultante, uma banda sonora destas faz sentido. No entanto, não estamos a fugir da Terra rumo a Marte como sucede em The Martian Chronicles de Bradbury; numa notável The Vth Tablet (Of Enûma Eliš), oriunda do EP de estreia, Interdimensional Extinction, estamos, isso sim, na dimensão dos Blood Incantation, onde o peso e o psicadelismo se encontram e na qual estamos bem no meio do Big Bang.
Como tem sido a regra nesta digressão, uma Obliquity of the Ecliptic com tudo no sítio (mais o tal puxanço extra ao vivo) fechou aquilo que foi mais do que um concerto de música pesada: foi assistir a uma fabulosa proposta de redefinição daquilo a que o metal mais interessante se propõe ser meio século depois das primeiras aventuras. Assim se fechou o portal dos Blood Incantation.
Voltámos a Outubro de 2025 e às cercanias do Parque das Nações. Mal refeitos da queda abrupta do portal, Wind of Change dos Scorpions no PA e um público que, mesmo sabendo que o concerto já era, não desarmou e berrou o hino da banda alemã – e ninguém escorregou no azeite. Nada como uma banda de música pesada (e respectivos fãs) que leva a sua arte a sério mas que não se leva muito a sério.
No diário de bordo ficou registado que se acabou de se testemunhar um concerto fenomenal: uma demonstração de força criativa cabal e uma execução tremenda, merecedora de todos os adjectivos, palavrões e mãos à cabeça.
Atravessámos um portal de infinitas possibilidades e sobrevivemos para contar a sua glória.

