Diz-se por aí que a classe não se compra; por “classe” entenda-se ter certa dignidade, elevação e elegância no agir e no dizer. Nisto da música popular, há quem crie com elegância quase como quem respira. Os Air, duo francês consagrado, são prova disso e nesta sua estreia por Paredes de Coura voaram (e fizeram voar) pelo meio de uma tempestade perfeita de elegância e substância.

Em nossa humilde contextualização, a banda, composta por Jean-Benoît Dunckel e Nicolas Godin, foi, a par dos Stereolab, das que tornou os sintetizadores novamente atractivos na década de noventa, ajudando a desfazer o preconceito que havia contra estes depois da ressaca dos anos oitenta. A sofisticação sónica logo a partir de Moon Safari era evidente – mais ainda ao vivo, como se verá.

Quando os Air despontaram com o referido álbum (em 1998), estávamos a caminhar para fins da década de noventa. O tempo no éter ocidental que começou com a ascensão do grunge e viu crescer a britpop, o trip hop, o eurodance e a breakbeat (para além dos desalinhados, como os Pavement, os Fugazi e os Stereolab, e os que continuavam orgulhosamente no underground) pedia qualquer coisa refrescantemente nova ou que, pelo menos, recuperasse e desse seguimento ao que de bom estivesse na gaveta. Daí saiu uma genuína receita electrónica pop downtempo, virada para o psicadelismo e o sonho nos arranjos e com polimento chic na apresentação.

De uma tradição electrónica francesa que começou com Jean-Jacques Perrey e que foi encorpada por Jean-Michel Jarre nasceram, enquanto súmula, os Air por um lado, e, por outro, os Daft Punk (mais dançáveis mas não menos interessantes). Aliás, Perrey colaborou com a dupla em Remember, canção constante de Moon Safari (e do alinhamento do concerto) – mais um motivo para o estatuto de obra-prima do disco.

Com a formação aumentada para digressões com a inclusão do baterista Louis Delorme (vital para os acontecimentos), a causa do grupo era, para além de proporcionar um espectáculo digno de memória, o de preservar o seu legado de décadas.

Enquanto uns olhos cénicos nos fitavam, uns impecavelmente equipados de branco Air tomaram conta do palco e, com toda a classe, começaram a desfiar La Femme d’Argent, canção que também abre Moon Safari. Como noutros memoráveis momentos de Coura ao longo dos anos, poderíamos gastar um texto inteiro só para descrever a grandeza do episódio, daqueles em que a tempestade (mais sobre isto lá para a frente) perfeita se forma e a História se faz.

O trilho percorrido entre ritmo e melodia da canção dita que o primeiro seja uma base segura a puxar ao movimento e a segunda toda uma demonstração das ideias dos Air. Com uma quebra que deixa o espectador a pedir mais, eles não se fazem rogados e servem-nos uma descolagem na qual nem sequer notamos que o trem já foi recolhido. Aqui vamos nós para um vol à voile sonique.

Mal refeito dos últimos sete minutos, o público foi imediatamente e prazerosamente flagelado por Sexy Boy. Não tardando em erguer copos e telemóveis (até para saudar o macaco de peluche que é mascote da faixa), correspondeu à contundência da execução de uma canção sobre ídolos mal rasées, bien habillées (como os próprios Air) e com um dos refrães mais contagiantes dos últimos trinta anos.

Depois da boa turbulência dos DIIV ali mesmo umas horas antes, eis o voo elegante dos Air. E, como Mk.gee na véspera, é também uma singela mas maravilhosa montra para todos os geeks de instrumentos musicais: daqui da plateia vêem-se um Korg MS-20 FS (muita magia saiu dali logo na primeira malha), um Fender Rhodes e um Minimoog.

Este último, pequenino mas trabalhador, foi a base do som gordo do “baixo” de Kelly Watch the Stars, magistralmente manipulado por Godin. Aliado às texturas de bateria (aqui reforçadas em relação ao álbum) e às projecções de Pong que passavam lá atrás, construiu mais um monumental capítulo do concerto, que ao fim de poucas canções já ia com uma mão numa taça de campeão do festival.

A execução que os Air levam a cabo do seu cancioneiro é, salvo quando a bateria de Delorme intervém com mais veemência, fidelíssima às versões de estúdio. No palco de Dunckel e Godin não há cá hipertrofias sonoras, nem sessões de jam impromptu, é como se estivéssemos a ver não um disco a rodar no gira-discos, mas algo inacreditável numa das melhores salas que existem e com um sistema de som excepcional. Não é hipérbole, é mesmo um privilégio e uma sorte apanhar uma banda num momento de forma destes ou, tendo em conta os anos que os Air já levam disto, de mostrar que quem sabe nunca esquece e que o seu legado continua incólume e, fundamentalmente, intemporal.

Ainda assim, houve tempo para um pouco de ultrapassagem das versões de disco. Umas belíssimas Talisman (que arranjos, caramba) e Venus (recuperada de outro grande disco da dupla, Talkie Walkie), também elas musculadas pela bateria e esta pelas aveludadas vozes, contribuíram para a genialidade da noite. Não eram apenas os Kool & The Gang que tinham uma Summer madness, que a maluqueira contida de Air também nos eleva. Senhoras e senhores, estamos a flutuar à vertical de Coura.

Se é um facto que a qualidade de som nos concertos se manteve constante ao longo dos quatro dias de festival, no concerto dos franceses foi insuperável. Todos os pormenores, todos os arranjos, toda a agregação sónica dos Air chegou até nós com limpidez, nisto se constatando que também neste item a banda e sua equipa primam pela elegância e, sobretudo, pela competência.

Ora, lá mais para cima falávamos nós numa tempestade perfeita. O concerto, até aqui, foi efectivamente isso; contudo, após quase lhe marcarmos falta durante todo o festival, eis que durante Highschool Lover caíram uns pingos de chuva em Coura. Não sabemos se eram lágrimas lá de cima por não ter havido Playground Love (mas temos a certeza que de lá sorriam David Axelrod e Pekka Pohjola, que estão no ADN dos Air), mas foi uma bênção tardia – aquela que faltava ao concerto.

A mise-en-scène de fumo e luzes cortantes, como se o mundo de Tron estivesse a destruir-se ou se alguém da Nouvelle Vague tivesse pegado nisto para um filme de horror, não podia ter feito melhor ponte com o psicadelismo instrumental de Dirty Trip. Dunckel e Godin, com ar professoral, servem-nos uma deliciosa versão da malha, qual pièce montée sónica.

Don’t Be Light (de 10 000 Hz Legend) foi-se buscar o remate da actuação. Já acima se fez alusão aos Spiritualized, mas aqui quase que parecia que Jason Pierce acompanhava os franceses. Uma última dose cavalar das melodias dos synths de Dunckel, do baixo de Godin e do vigor da bateria de Delorme. E uma vénia (sem esquecer os agradecimentos bilíngues ao longo da noite), que este está entregue aos anais.

Havia quem batesse palmas, quem deitasse as mãos à cabeça e quem fizesse vénias. Não era caso para menos, dado que, sem recurso a ruído nem a grandiloquências, os Air deram um concerto do caraças, juntando-se à já longa galeria de grandes actuações no Couraíso. Especulou-se, ao longo dos anos, se o nome da banda não será, na verdade, uma sigla: Amour, Imagination, Rêve. Mesmo se assim não for, aquelas três palavras podiam poupar uma data de outras para descrever o que se acabou de testemunhar.

Se a Terra é o Planeta Azul, durante o concerto dos Air Paredes de Coura foi o Planeta Verde. Senhoras e senhores, acabámos de aterrar de um magnífico concerto.

Partilha com os teus amigos