Partilha com os teus amigos
Trumbo
Título Português: Trumbo | Ano: 2015 | Duração: 124m | Género: Drama, biografia
País: Estados Unidos | Realizador: Jay Roach | Elenco: Bryan Cranston, Diane Lane, Helen Mirren, John Goodman

Dalton Trumbo, o biografado neste Trumbo, de Jay Roach (da trilogia de Austin Powers e Borat, aqui num registo de caça à estatueta), foi um argumentista de sucesso, prolífico na A-List e na série B, adaptando os argumentos de Spartacus de Kubrick e de Exodus de Preminger e conquistando dois Óscares pelo seu trabalho emRoman Holiday e The Brave One, mas por procuração. Por procuração entenda-se as estatuetas terem sido entregues a outros argumentistas, a quem Trumbo doou ou vendeu o argumento, pois estava, na altura, saneado pelos grandes estúdios norte-americanos.

E porquê? Por ser comunista (ou por se considerar como tal); em particular, por ser comunista na altura da Segunda Ameaça Vermelha (Second Red Scare; sucedeu à de 1919/20) e das actividades do senador Joseph McCarthy (coadjuvado por Robert Kennedy, esse símbolo dos democratas) e do congressista J. Parnell Thomas, membro da HUAC – House Un-American Activities Committee ou, se se preferir em português, Comissão de Inquérito do Congresso sobre Actividades Anti-Americanas. Nenhuma profissão estava a salvo dos inquéritos, nem mesmo essa vaca sagrada dos EUA, a indústria cinematográfica de Hollywood.

Dalton Trumbo (Bryan Cranston) no habitat natural

Dalton Trumbo (Bryan Cranston) no habitat natural

Um período vergonhoso, que cobriu de vergonha vários mandatos presidenciais e maiorias no Senado e na Câmara dos Representantes. Não foram os comunistas os únicos perseguidos por órgãos democraticamente eleitos de um país que se dizia o líder do mundo livre: também os homossexuais tiveram direito à sua dose, na Ameaça de Lavanda, o Lavender Scare, que manchou os mandatos de Eisenhower.

Para além de Trumbo, muitos outros membros da indústria cinematográfica norte-americana sofreram com saneamentos e perseguições – no caso dos argumentistas, Trumbo e outros nove seriam designados como os Dez de Hollywood, sendo incluídos numa lista negra informal dos estúdios, que os impediria de trabalhar nas maiores produções, sob pena de boicotes, processos-crime e mais delações. A relação destes com o comunismo não era uniforme: alguns, como Edward Dmytryk (The Caine Mutiny), foram apenas militantes durante alguns anos, ao passo que outros, como John Howard Lawson, respondiam directamente ao controleiro do Partido Comunista dos Estados Unidos da América.

Em suma, uma altura em que os Estados Unidos se comportaram como um Estado de purgas similar ao período estalinista da União Soviética, com diversos atropelos aos direitos fundamentais e às garantias políticas e processuais.

Cronologicamente, o período coberto por Trumbo estende-se desde finais dos anos quarenta até ao começo da década de setenta, com Dalton Trumbo já reabilitado e premiado pela sua carreira – por alturas de Johnny Got His Gun, arrepiante filme anti-guerra baseado na obra homónima de Trumbo, que conta com Timothy Bottoms e Jason Robards no seu elenco. A par de Vem e Vê, de Elem Klimov, Johnny Got His Guné um mui assertivo e chocante documento anti-guerra, produto da criatividade e inteligência emocionais de Trumbo, mostrando, ainda, o seu talento sobre todas as dimensões do filme enquanto obra, não apenas como argumentista.

Também se abordam as relações de Dalton Trumbo com a família, com outros actores e com os restantes membros dos Dez de Hollywood.

Temos, assim, um filme biográfico ou biopic entre mãos.

Os biopics norte-americanos têm, parece-nos, a sua estrutura-tipo e Trumbo dela não se desvia: colocação do biografado no centro da acção, descrição dos momentos-chave da vida ou mesmo de um momento de tal modo marcante que pauta todo o filme e, em boa parte dos casos, algumas liberdades artísticas para tornar a trama mais interessante ou, dizem as más-línguas, mais viável comercialmente – o que prejudica a veracidade e, por conseguinte, a autenticidade de uma obra. Infelizmente,Trumbo padece desta maleita: as sequências sobre Edward G. Robinson (Michael Stuhlbarg) delatar os colegas de arte não são, ao que consta, verdadeiras.

No que concerne a personagens, os biopics têm (regra geral) por praxis a introdução de personagens compósitas (ainda que se perceba a óptica de economia cinematográfica, esta característica acaba por reduzir a realidade e suas nuances a uma nota de rodapé) e hiperbolizar pessoas, ainda que outras sejam demasiado idiossincráticas para parecerem fictícias; é o caso de Hedda Hopper, interpretada com mestria por Helen Mirren.

Hopper era uma colunista do social do Los Angeles Times, uma espécie de Carlos Castro do seu tempo – ácida, intriguista, maléfica e profundamente conservadora. A sua máquina de escrever fazia e destruía carreiras; uma ex-actriz frustrada, que envergonhava a profissão com a sua agenda destrutiva. Uma vilã perfeita para o herói titular e para os restantes argumentistas saneados.

Hedda Hopper (Helen Mirren) e Dalton Trumbo (Bryan Cranston)

Hedda Hopper (Helen Mirren) e Dalton Trumbo (Bryan Cranston)

Juntamente com John Wayne (protagonizado por David James Elliott), Hopper fez parte da Motion Picture Alliance for the Preservation of American Ideals (Aliança Cinematográfica pela Preservação dos Ideais Norte-Americanos), um aglomerado de actores, argumentistas, produtores e realizadores conservadores e republicanos que ajudou em muito à perseguição e saneamento dos argumentistas comunistas. O filme relembra, num diálogo tenso entre Trumbo e Wayne, que este não combateu na Segunda Guerra Mundial, dando azo a um pretenso complexo de inferioridade do “Duke” – William Manchester, o fuzileiro tornado biógrafo de Churchill, recorda os apupos de que Wayne foi alvo num espectáculo para feridos em combate, algures no Pacífico.

Tecnicamente, Trumbo é um filme que cumpre com distinção: planos dinâmicos, fotografia frenética e um resultado final vistoso e apelativo, polvilhado por imagens de filmes da época – incluindo Spartacus – e fotografias de Trumbo no final, numa homenagem que dignifica o conjunto. O trabalho de caracterização de Cranston e a fotografia, retratando as rugas e demais efeitos do tempo e da vida em Trumbo, são notáveis.

Até aqui, tudo certo com o biopic: elementos do tipo no sítio, personagens mais ou menos cativantes e um enredo histórico servindo de pilares a uma produção histórica cujos pormenores de época são ponto de honra hollywoodesco.

Contudo, os problemas começam precisamente com tudo isto: Trumbo é certinho mas pouco ou nada erudito. O bom trabalho da maioria dos actores e a fotografia e trabalho de câmara contrastam com a fraca qualidade da investigação histórica do argumento (baseado num livro de Bruce Cook), demasiado asséptico de polémica e explorando pouco as contradições de Dalton Trumbo.

Nas sequências em que Trumbo (e outros argumentistas) estiveram presos em Ashland, no Kentucky, após condenação por desrespeito ao Congresso, é explorado o desprezo a que os descamisados que o comunista visa libertar e conferir dignidade votam os intelectuais e artistas. Bons selvagens ou simplesmente ignorantes e obtusos membros da populaça? Também é abordada, antes disso, a esperança num recurso favorável no Supremo Tribunal dos Estados Unidos, que se desvanece com a morte de um Conselheiro progressista – esta sucessão de acontecimentos é atabalhoada e demasiado simplista nas relações causa-efeito.

O filme espelha, com alguma astúcia, as contradições de Dalton Trumbo enquanto comunista: numa conversa à beira do lago com a personagem Arlen Hird (Louis C.K.; um compósito de vários argumentistas comunistas, como Lester Cole ou Albert Maltz), este põe em evidência que Trumbo quer manter o seu estilo de vida burguês, incluindo a sua vasta propriedade, ao passo que Hird pugna pela revolução e destruição da super estrutura social, económica, política e cultural dos Estados Unidos – a abolição do status quo. Trumbo, contudo, não se fica; teoriza inanidades sobre o radical que vive em si poder actuar em simbiose com o homem bem sucedido e rico que é e constituir, a partir daí, uma força de mudança irresistível – lutar com a pureza de Jesus e ganhar com a subtileza do Diabo. É mandado (e bem) calar por Hird.

Arlen Hird (Louis C.K.)

Arlen Hird (Louis C.K.)

O filme carece de mais pormenores como este, que ilustrem as contradições de Dalton Trumbo; um argumento melhor pesquisado teria dado a Bryan Cranston uma estatueta na certa, visto que estamos perante um actor suficientemente talentoso para vingar na comédia e no drama, num papel de prestígio e rodeado de pares de alto coturno.

De acordo com a pesquisa que efectuámos, Dalton Trumbo não era apenas o benévolo e altruísta argumentista que foi injustamente saneado da indústria cinematográfica de primeira linha – tinha o seu lado irascível, odioso e persecutório. Apologista dos excessos dos regimes de Moscovo e Piongueiangue (e completamente absolutório dos seus crimes e alianças com outras ditaduras), encheu-se de contradições que, como já se mencionou, não são devidamente exploradas pelo filme, perdendo-se riqueza de personagem; nada disto é culpa de Cranston, que a trabalhou até ao limite.

Mais ainda, o seu afamado sentido de humor é relegado para segundo plano; os truques de magia que fazia para amigos e família teriam dado outra textura à personagem. Porém, a maior omissão de Trumbo (tendo em conta de que se trata de uma produção de grande envergadura), é a ausência de referências ao período em que viveu no México, suficientemente rico para dele se fazer um filme. Aí conviveu com Brecht, Buñuel, Kahlo e Rivera, mas sempre escrevendo na banheira, com o seu uísque e boquilha!

Por outro lado, o período em que escreveu, a título de pseudónimo, para o estúdio dos irmãos King (por John Goodman e Stephen Root, em bom registo cómico) aparece-nos como a segunda parte do filme, aquela em que começa a nova vida de Trumbo como argumentista maldito em busca de sobrevivência e matéria-prima para a mitologia do homem e da interpretação de Cranston. Tudo com o apoio da mulher, Cleo (Diane Lane), num papel genérico de familiar do retratado – outro elemento dos biopics.

Os irmãos King (John Goodman e Stephen Root)

Os irmãos King (John Goodman e Stephen Root)

Se o filme é um produto acabado superficial que não é exactamente memorável (salvo a interpretação de Bryan Cranston, entre outras), tem o mérito de ser um ponto de partida para a reflexão sobre os direitos fundamentais e a hipocrisia das democracias liberais assentes, supostamente, num Estado de Direito democrático. Aqui já se ultrapassa a mera discussão cinéfila, passando-se para o papel da liberdade de expressão, a percepção dos outros e a história da subversão.

No plano do Direito Constitucional (e Processual Penal), dá-nos algum combustível para reflexões sobre a proibição da auto-incriminação e do escopo do Quinto Aditamento da Constituição dos Estados Unidos – ao tempo, não havia registos de condenações por militância comunista, não se violando, assim a proibição constitucional. As condenações dos Dez de Hollywood serviriam esse propósito, protegendo todos aqueles que alegassem a protecção do Quinto Aditamento.

Enquanto isto, células do KGB e do GRU com ou sem comunicações directas com o Partido Comunista dos EUA mantinham-se em actividade, bem longe de Hollywood, nas sombras, protegidas da histeria política e artística (nem Robin dos Bosques escapou, que deixou de roubar os ricos na maioria dos filmes subsequentes, dizem os historiadores) da época e com os artistas saneados a sobreviverem abaixo do limiar da dignidade.

Bryan Cranston é a principal razão para se ver Trumbo: actor calejado que finalmente tem direito a comandar as lides da interpretação, plasmando os trejeitos de Trumbo à boa maneira do “Método” e fazendo render um argumento que lhe poderia (e devia) ter dado muito mais – incluindo o papel de uma carreira e uma estatueta, que esta luta foi muito mais importante do que pancadaria contra ursos no meio da neve.


sobre o autor

José V. Raposo

Partilha com os teus amigos