O Filho de Mil Homens estreia com uma discrição que contrasta com o alarido em torno d’O Agente Secreto, mas depressa se impõe como um objeto que também merece ser olhado com atenção. Daniel Rezende, mais conhecido pelo trabalho de montagem em Cidade de Deus e hoje realizador em plena maturação, adapta o romance homónimo de Valter Hugo Mãe com uma segurança que dispensa o exibicionismo. Sem discutir a fidelidade ao livro, o que se observa no ecrã é um gesto cinematográfico coerente: um filme que se distancia da lógica acelerada do mercado e encontra força na delicadeza simbólica e na intensidade latente.

A narrativa avança de forma deliberadamente lenta e aposta numa poesia visual que privilegia o espaço e a respiração das cenas. Rezende trabalha a luz como matéria dramática, limita a banda sonora ao essencial e recorre às paisagens do litoral e do interior do Brasil como cenários que moldam diretamente o mundo das personagens. Entre breves narrações em off, diálogos vividos e silêncios prolongados, o enredo estrutura uma reflexão clara sobre vulnerabilidade e filiação afetiva: somos “filhos de mil homens”, porque crescemos atravessados por múltiplas influências e heranças emocionais que se contradizem e acumulam, tanto pelo cuidado como pela falha.

Rodrigo Santoro entrega-se a Crisóstomo com uma serenidade desarmante. Sendo um dos centros emocionais da história, a sua presença devolve a imagem de um sujeito que, depois de anos de solidão, entende com nitidez a importância da companhia. Mais do que o desejo de ser pai, distingue-o a capacidade de reconhecer no outro a mesma humanidade e agir como se o mais lógico fosse amar.
Isaura e Antonino, representados por Rebeca Jamir e Johnny Massaro nas respetivas versões adultas, alargam esse campo emocional, trazendo consigo histórias marcadas por abusos e falsos moralismos, sem ficarem fixos na condição de vítimas. Mais do que uma narrativa idealizada de superação, o filme interessa-se pelas nuances. Quando se juntam a Crisóstomo e ao seu filho adotivo, não formam uma família modelar, mas um núcleo que encontra no convívio a forma de seguir em frente. Esse filho, Camilo, interpretado pelo jovem Miguel Martines, encarna precisamente a hipótese de um futuro em que ainda é possível ensinar empatia, cultivar o cuidado e contrariar a reprodução automática de padrões.

Sempre atenta ao equilíbrio, a trama não foge ao peso da realidade, retratando cenas de violência, rejeição, preconceito, vergonha como situações que ecoam memórias dolorosas para muitos. No entanto, contrapõe-lhes pequenos atos de empatia, evidenciando que a bondade funciona também como forma de resistência. A figura do boneco de trapos que “não importa o que você fizer, sempre vai sorrir de volta” condensa-o bem: não se trata de ingenuidade ou frivolidade, mas da coragem de continuar a ser bom num contexto que convida ao oposto.

Numa época marcada por extremos exacerbados, pelo culto à velocidade e por um individualismo hipertrofiado, uma obra como esta pode ser apressadamente lida como demasiado inocente. Contudo, a sua lucidez reside em reconhecer que a maldade existe, a exclusão marca e, ainda assim, insistir na crença de um laço que nos antecede. O Filho de Mil Homens acredita na ternura e isso não deve ser confundido com um adorno nem uma fantasia consoladora. É quase subversivo e, acima de tudo, necessário.


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