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Phantom Thread
Título Português: Linha Fantasma | Ano: 2017 | Duração: 130m | Género: Drama
País: EUA | Realizador: Paul Thomas Anderson | Elenco: Daniel Day-Lewis, Vicky Krieps, Lesley Manville, Gina McKee

Inherent Vice foi a versão Paul Thomas Anderson de diversão, segundo admissão do próprio. É compreensível que depois de There will be blood e The master, o realizador tenha querido descomprimir e aligeirar o tom, mas acho que poucos chamariam ligeira à adaptação do romance trippy de Thomas Pynchon. Paul Thomas Anderson fez então uma pausa como o cineasta oficial da Califórnia e deu um salto até à Europa, conseguindo corrigir o rumo ao entregar-nos um filme que, não tendo o propósito cómico da sua obra anterior; mais divertido, mais seguro e acima de tudo, um filme retorcido e mostra que para Anderson, tal como Punch-drunk Love já tinha dado a entender, o amor não é apenas um lugar estranho: é também de uma brutal bizarria.

Tudo se desenrola nos anos 50 do século passado, nos meandros de uma fictícia casa de moda londrina liderada por Reynolds Woodcok. Luminária da moda europeia da altura, veste figuras reais e socialites com a mesma desenvoltura, mas a sua falta de aptidões sociais leva-o a gerir a Casa com a sua irmã Cyril, o seu lado prático e basicamente a gestora da vida pessoal de Reynolds. Como qualquer artista, Woodcock necessita de musas, mas a rapidez com que se aborrece das mesmas faz com que estas saltem da sua vida regularmente. Até que aparece Alma (um nome que não deve ser por acaso no contexto do filme e que será mais misterioso para as plateias anglo-saxónicas do que as latinas), uma empregada de um bed and breakfast da zona rural britânica onde o estilista recarrega baterias entre serviços e prende a sua atenção de maneira irresistível. O que se segue é a maneira como Alma, tal como um bolor prazenteiro, vai lentamente infiltrando a vida de Woodcock até um ponto onde o habitualmente controlado, picuinhas e semi-demiurgo costureiro começa a questionar tudo o que sabe acerca de si.

Há um qualquer misticismo no filme que não se prende bem, uma atenção aos pequenos gestos de criar um vestido, uma constante referência a superstições e assombrações, uma permanente atmosfera de fatalismo encomendado que Reynolds vomita em observações de delicioso veneno, que lhe é servido em retorno por Alma com o mesmo requinte. É um pouco como se Anderson, que criou este filme como uma declaração amorosa à esposa depois de algumas noites doente apenas com esta à cabeceira em extremo afecto, quis criar um drama romântico meio vitoriano sob o prisma dos fantasmas. E os fantasmas divertem-se: se a última colaboração entre Daniel Day-Lewis dava a impressão de apocalipse, esta, mesmo com o peso do amor, é mais leve, ligeira, ocasionalmente de rir às gargalhadas. O filme tem um inesperado espírito, seja nas tiradas entre Woodcocks, a irmã e Alma, como nas próprias situações e no jogo a dois entre o casal amaldiçoado, que atinge o seu culminar na melhor cena envolvendo espargos desde American Beauty.

Day-Lewis, que paira sobre o filme nas asas do chamariz mediático que é a sua potencial última aparição num filme, deixa Daniel Plainview para trás. O seu Woodcoks, levemente baseado no estilista espanhol Cristóbal Balenciaga, é tão metódico quanto o pesquisador de minérios, mas mais mimado, petulante e garoto, com mais complexos maternais do que Norman Bates. Não deixando a sua fama ir pelo cano, o actor não podia interpretar um costureiro sem aprender antes a prender cem ou mais botões, mas o principal na sua performance é a maneira como se apaga por completo e deixa esta criança adulta tomar conta do seu corpo em cada impaciência e aborrecimento, cada birra uma dúvida sobre se estamos a ver um actor ou alguém real. Nalguns casos, requer coragem; aqui requer um controlo pleno das palavras e dos actos, de deixar que as emoções tomem conta do corpo em vez de ser ao contrário, de se deixar abismar por aquilo que habitualmente apenas lhe encolhe os ombros.

No entanto, e embora seja sempre justo elogiar Day-Lewis, Vicky Krieps é a desconhecida actriz luxemburguesa que está lá taco a taco, com um mistério que não é mistério: na verdade, idiotas são os espectadores por não se aperceberem ao início de que a sua Alma é o que é sem maquinações. Parte da comédia do filme envolve Krieps e Day-Lewis e as suas trocas de palavras são um jogo de par impressionante que só é possível com dois actores ao mesmo nível. Quando nos apercebemos do verdadeiro propósito da história, tudo é natural apenas porque Krieps já revelou bem aquilo de que Alma é capaz.

Tecnicamente, o filme é impecável: o guarda-roupa, como seria de prever, carrega-se de estilo e bom gosto; a banda sonora de Jonny Greenwood, cruzando jazz e musica de câmara, confirma o guitarrista dos Radiohead como páreo para Trent Reznor na combinação ídolo do rock/músico de cinema, e a direcção de fotografia, atribuída a ninguém, é um mimo. Paul Thomas Anderson, que no início de carreira parecia ser um cruzamento estranho entre o cinema coral de Robert Altman e a fúria estilística de Martin Scorsese, invoca neste filme referências mais europeias, desde Chabrol à nouvelle vague francesa, passando por enquadramentos que o Hitchcock do início de carreira não deitaria fora. No entanto nunca deixa de ser ele mesmo – há planos incríveis vindos de lugares inusitados e embora o Anderson das steadycams apareça pouco, a atracção pelo close-up e a capacidade de construir planos em múltiplas camadas são características do realizador há muito tempo.

Com o evoluir da sua carreira, o realizador passou a procurar as emoções na relação entre a câmara e o actor, não apenas na maneira como filma. Há um certo amadurecimento sim, mas também a procura de um novo estilo. Em toda a perversidade que atravessa o filme, desde a petulância de Reynolds até ao olhar cortante de Alma e às observações de Cyril, a câmara de Anderson é espectador e espírito, cosendo com as linhas do filme um fato que nos assenta desconfortavelmente ao início, mas o qual é difícil despir dias depois de Phantom Thread ter terminado.


sobre o autor

Bruno Ricardo

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