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King Kong
Título Português: King Kong | Ano: 2005 | Duração: 187m | Género: Aventura, Acção, Drama
País: EUA, Nova Zelândia | Realizador: Peter Jackson | Elenco: Naomi Watts, Jack Black, Adrien Brody

O King Kong original, realizado em 1933 por Merian C. Cooper e Ernest Schoedsack, é um filme emblemático da sétima arte. Mesmo com as suas ingenuidades a nível de caracterização das personagens e mesmo que os efeitos especiais pareçam arcaicos quando confrontados com a tecnologia digital do século XXI, está filmado com um apuro estético que já não se vê actualmente no cinema de acção e aventuras. Nada de travellings ascendentes e descendentes, nada de malabarismos com a câmara nem frenesim na montagem. A maior parte dos planos são fixos, longos, com uma composição rigorosa nos enquadramentos e é precisamente por isso que as imagens se tornam tão icónicas. Uma sequência com cortes sucessivos e travellings por tudo e por nada, como se tem feito no cinema de acção das duas últimas décadas, pode provocar uma expectativa momentânea, mas raramente nos fica na memória pelo seu sentido estético.

O King Kong de Peter Jackson tem quase o dobro do tempo do original e, apesar de ser fiel à história do clássico dos anos 30, e de lhe prestar até homenagem nalguns enquadramentos e no design dos créditos, aprofunda as situações e a caracterização das personagens. Retira-lhe as ingenuidades (que podem parecer encantadoras para um filme dos anos 30, mas que se fossem repetidas em 2005 ficariam embaraçosas), mas não de maneira a parecer estar a ironizar com o espírito de inocência do filme original.

O início, com imagens da Grande Depressão que os EUA viviam nos anos 30, acompanhadas pela canção On the Top of the World, faz rima com o final do filme, no qual o gorila gigante aparece sentado no Empire State Building. É verdade que, para sublimar a grandiosidade dos cenários naturais da ilha onde Kong era rei (uma espécie de mundo perdido), Jackson insiste nos travellings ascendentes, mas depois a câmara demonstra fluidez nos seus movimentos e está longe de ser apenas decorativa.

Um aspecto que quase passa despercebido no início do filme, mas que à medida que a narrativa avança vai fazendo cada vez mais sentido, é a referência ao livro Coração das Trevas de Joseph Conrad (que inspirou Apocalipse Now). Tal como uma das personagens diz sobre essa obra literária (“não é um romance de aventuras”), também King Kong não é apenas um filme de aventuras. Sendo uma variação de A Bela e o Monstro, é acima de tudo uma história de amor e obsessão, não só da parte do gorila pela personagem de Naomi Watts, mas também do próprio cineasta Carl Denham (interpretado por Jack Black), que sacrifica tudo, até a própria segurança, em nome da sua “visão” artística. E se é verdade que, nas mãos erradas, a história de King Kong poderia parecer ridícula, nas mãos de um verdadeiro cineasta, ela chega a tornar-se arrebatadora, precisamente pela impossibilidade e fatalismo da relação entre as suas figuras centrais. E este é um dos aspectos em que Jackson ultrapassa a versão original, que não explorava de forma tão aprofundada o fascínio de King Kong por aquela figura humana. Também por isso, pela cumplicidade que se cria entre o gorila e Naomi Watts, há muito menos gritaria nesta versão.

O original era conhecido por ter a actriz (Fay Wray) que mais gritos dava numa película, mas a versão de Jackson quase dispensa esse aparato. Primeiro, porque os gritos de uma mulher perante um ser monstruoso já não despertam o sentimento de terror que despertavam nos anos 30, quando o próprio cinema ainda estava a descobrir as possibilidades dos efeitos sonoros na tela. E depois porque, de facto, esta personagem feminina já não se sente tão ameaçada pelo gorila. Sente, sim, afecto. Talvez esse afecto seja algo que nem ela própria saiba definir, mas ele está lá e não se esconde. Também aqui as coisas poderiam ter descambado para o ridículo, mas Naomi Watts consegue tornar credível o que a sua personagem sente e ultrapassa os limites do ecrã. Outra boa interpretação é a de Jack Black, um actor normalmente associado a comédias e a personagens sarcásticas, mas que aqui se revela exemplar na figura do realizador obcecado.

Apesar do respeito que demonstra pela versão original, Peter Jackson conseguiu apropriar-se de um tema que claramente o fascina e dar-lhe a sua própria visão. O seu filme pode ser um remake, mas é também uma obra onde reflecte a sua identidade como cineasta. Algo que muito raramente se vê num blockbuster de Hollywood.


sobre o autor

Luís António Coelho

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