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Flashback: A Quadrilha Selvagem (The Wild Bunch)
Título Português: A Quadrilha Selvagem | Ano: 1969 | Duração: 145m | Género: Western, acção
País: Estados Unidos | Realizador: Sam Peckinpah | Elenco: William Holden, Ernest Borgnine, Robert Ryan, Warren Oates

Há cem anos, o México desfazia-se numa guerra civil travestida de revolução; a velha ordem de Porfirio Díaz caiu de madura em 1911 e os despojados assim mantidos pelo seu regime pegaram em armas, mobilizando dezenas de facções para a tomada do poder – orozquistas, zapatistas, maderistas, villistas e muitas outras acabadas em “istas”, consoante os interesses e os meios disponíveis. Muitos pequenos caciques acabaram com uma estrela ao ombro e umas armas e homens à disposição, passando de borrachos locales a generales (expressão nossa). E só lá para 1920 é que se resolveu alguma coisa naquele país.

Também há cem anos, o chamado Velho Oeste norte-americano morria de vez. Ainda que muito do que nos é fornecido por meios de comunicação e artísticos seja mitológico, a consolidação de fronteiras e do aparelho de Estado em povoações mais remotas do território dos EUA acabaria por sedentarizar e levar ao crescimento da população do país. Consolidem, filhos, e comprem um Ford modelo T e despachem o cavalo.

O Oeste não era assim tão violento e vocês são todos uns medricas, mas persistia um ponto geográfico complicado: a fronteira com o México – nota: continua tão ou mais complicado do que há um século atrás. Ao longo de todo aquele período, a fiesta foi de arromba, com a incursão de Pancho Villa no Novo México (e a resposta de Pershing, com um jovem Patton a cavalo) e crimes vários, com fugas condizentes, num corropio digno de um panelão de chili. Se no resto do mundo a paz podre do arranjo das potências e suas alianças já se começara a esboroar, no México (onde abundavam as intromissões de estrangeiros) estava já tudo ao rubro.

É neste enquadramento que se situa The Wild Bunch, de Sam Peckinpah, de 1969. Década turbulenta em tudo, até para o cinema norte-americano, incluindo o western. Peckinpah, fazendo as coisas à sua maneira, resolveu continuar a redefinir o género – os heróis de outrora, como Gary Cooper e John Wayne dão agora lugar aos anti-heróis sem grande moral do bando de Pike Bishop (o grande William Holden) e companhia: Dutch Engstrom (o igualmente grande Ernest Borgnine), Angel (Jaime Sánchez, único ainda vivo) e Lyle e Tector Gorch, por Warren Oates e Ben Johnson, respectivamente.

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Este bando de desperados, cada vez mais anacrónico, procura um último grande golpe que leve a uma reforma dourada e digna a Sul do Texas, longe da lei penal dos EUA e dos pecados do passado. Se o tempo e a História apanharam o bando de Bishop, ao menos que seja nos seus próprios termos. Assim vivia o “Wild Bunch”.

Os escorpiões arrasados pelo formigame perfazem uma boa metáfora com o México de então, dando lugar a uma das grandes sequências de abertura da História do cinema.

Rufam os tambores funebremente, prenunciando uma montanha de cadáveres. Disfarçados de soldados do exército dos EUA, Pike e rapaziada chegam a um vilarejo do Texas, cujo bulício se resume a ervas daninhas e a uma manifestação de abstémios religiosos – mise-en-scène clássica dum filme sobre o Velho Oeste, nada de novo aqui. A posse emboscada num terraço e liderada por Deke Thornton (Robert Ryan) completa o quadro.

Um grande plano de Bishop/Holden a proclamar “If they move, kill ‘em!” coloca a segunda velocidade no filme. Começa o assalto, reféns para o canto e os primeiros problemas: os abstémios resolvem marchar pela vila e são detectados os canos das armas do bando de pseudo-justiceiros (justiça privada em pleno século XX numa potência mundial) de Thornton. Mas as coisas já não são como eram: os Colt Peacemaker deram lugar às automáticas Colt 1911 e as Winchester convivem agora com caçadeiras de calibre .12 e espingardas Springfield M1903.

Atira-se o gerente para o meio da rua e, ao primeiro tiro, parece mais um intenso tiroteio dum filme do Velho Oeste – até jorrarem as primeiras gotas de sangue, que obrigaram a uma classificação do filme para maiores de 17 anos, revista nos anos noventa para maiores de 18 anos (!). Inovador na violência, “The Wild Bunch” começaria aqui a mostrar a sua relevância como um dos grandes westerns de sempre – ou mesmo como um dos grandes filmes do cinema norte-americano.

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Morrem criminosos e civis indiscriminadamente, que as munições não têm ética nem moral. Se os abstémios não beberam um último copo antes da execução da sua sentença, o problema foi todo deles, que morrem como os outros. Câmaras lentas, grandes planos de espanto e morte e planos gerais fechados na carnificina, em grande técnica cinematográfica, imprópria para gente chata; sim, a morte é um espectáculo, não há heróis (só velhinhas abstémias religiosas transformadas em escudos humanos) e toca a pegar no cavalo mais próximo e ajustar o tiro.

No meio disto tudo, as mesmas crianças que assistiram com deleite à morte dos escorpiões, assistem agora à morte dos adultos com certo entusiasmo, com um grito Wilhelm pelo meio.

Contudo, o plano saiu gorado e o bando desvairado foi enganado, que a prata não passa de fichas de metal sem qualquer valor – ninguna plata, mucho plomo. Pelo caminho, morre mais um membro do grupo. Freddie Sykes (Edmond O’Brien), antigo cúmplice do bando, dá-lhes guarida e parte com eles para outro golpe, que há que ser mais rápido do que as rugas.

O chefe Bishop é peremptório e dá corpo ao tema do filme, o de fim de ciclo, com uma das frases-chave do filme: “We’ve got to start thinking beyond our guns. Those days are closin’ fast”.

Entretanto, descobrimos quem é o “inimigo” Deke Thornton: um antigo camarada de Pike, que acabou preso depois de um deslize deste. A notável interpretação de Robert Ryan traduz-se nas expressões deste: o conflito interior entre cumprir a missão e evitar nova ida para a cadeia e a nostalgia dos tempos passados com o antigo bando, quiçá a vontade de se lhe juntar novamente, expressa a certo momento do filme.

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Agora numa aldeia mexicana, o bando de anti-heróis apercebe-se da situação política no México: massacres de populações sublevadas e desarmadas pelos federales corruptos. O membro mexicano do grupo, Angel, é especialmente sensível, já que é ali a sua casa – é o único elemento com algum sentimento telúrico, que os restantes são saltimbancos sem poiso e, como se verá, sem pátria.

As guitarras e guitarrones despedem-se do bando, que segue para Agua Verde.

Ali, quem mais ordena é o general Mapache, um grotesco tiranete interpretado pelo admirável Emilio Fernández, eminente actor e realizador mexicano, campeão do festival de Cannes em 1946. A sua chegada de automóvel deixa o grupo atónito: que geringonça era aquela, quase inédita para Bishop e comparsas – sinal da viragem dos tempos e da morte do estilo de vida do bando. Sykes e Bishop balbuciam, ainda, qualquer coisa sobre umas coisas com motor que voam e que chegam aos noventa e tal quilómetros à hora. Dois belíssimos pormenores de Peckinpah, que atestam o anacronismo do Velho Oeste e suas vivências.

Por baixo do pseudo-aqueduto de Agua Verde reúne-se o povo à volta do corrupto comandante, ladeado por conselheiros alemães, como Mohr (Fernando Wagner) e pelo resto do seu Estado-Maior: o major Zamorra (Jorge Russek) e o tenente Herrera (Alfonso Arau). A envolvência é de opressão, desespero e de pobreza. E pó, muito pó – não o pó que domina a zona hoje em dia, só mesmo o pó dos pobres, como diria John Steinbeck sobre o Dust Bowl.

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Mapache quer passar por líder duro, mas bondoso e convivente com a populaça. “Que hermosura de caballo, caray!”, exclama, quando a antiga amante de Angel traz um cavalo oferecido ao general. O ódio toma conta dele e elimina, ali mesmo nos braços do general, a traidora do seu povoado. Valeram os conhecimentos de espanhol de Engstrom, que safaram a tenda ao grupo, mas tornaram-no refém de Mapache.

Aqui se vê que a condição humana é (como na generalidade dos filmes de Peckinpah) a de homem lobo do homem; no caso da mulher, é mesmo de objecto ao serviço do homem – menos as velhinhas (não confundir com viejas), que servem de escudo humano e de carpideiras hipócritas (no dizer do general Mapache). O general Huerta, superior de Mapache, quer melhorar as relações com os Estados Unidos, mas também precisa de armamento; vem mesmo a calhar um carregamento de armas num comboio norte-americano para Bishop e companhia pedirem “emprestado”.

O after do acerto não é no Europa, mas em saunas improvisadas e regado a tequila e vinho, com viejas a monte. Perante a indignação de Angel em relação à operação, que pergunta ao líder se também compraria armas para matar a sua própria família, Bishop retorque que dez mil dólares em ouro cortam muitos laços familiares, contradizendo o seu próprio código moral. Pragmatismo de anti-herói. Anti-herói que se preze tem um lado bom e assim é: um dos cunhetes será desviado para Angel, em troca da parte deste no ouro.

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Não fosse a posse de Thornton estar a bordo e o golpe do comboio teria sido perfeito, com uma fuga tranquila; confusão e tiroteio entre a patética escolta militar e o pessoal de Thornton, que acaba atirado ao rio por uma ponte sabotada pelos anti-heróis de Bishop. Aqui começam os problemas com Mapache, incólume que nem um Kilgore perante a carga da cavalaria e morteiros villistas.

Um recontro com o tenente Herrera e suas indisciplinadas tropas ilustra a tensão e desconfiança crescentes – de tal modo que a entrega do material roubado é efectuada em modo peddy-paper, ainda que uma metralhadora seja dada de presente a el general pelos gringos. E Angel? É traído pela antiga sogra e correctamente acusado de furto e deixado à mercê de Mapache e da chacota do povão, que o resto do grupo está a ser acossado por Thornton e seus sequazes, que conseguem ferir Freddie Sykes, que desaparece, capturado por índios.

De volta a Agua Verde, que está em festa com os brinquedos novos do general, que aproveita para arrastar e linchar Angel. Não lhe serve de nada, aparentemente, o regresso dos companheiros, que vão beber e retemperar-se com muchachas, menos Engstrom.

Porém, tudo aquilo não passou de uma pausa na violência, que os membros sobreviventes recarregam as armas, e os tambores do início do filme regressam para marcar a cadência da procissão de morte que se seguirá.

Mapache atraiçoa Angel e o grupo de Bishop e degola-o, dando o sinal para a mortandade geral. Planos furiosos numa falsa partida, com ambos os lados sem saber o que fazer por longos segundos. O Colt de Bishop ganha à Luger do conselheiro alemão e não há volta a dar: é festival de pólvora, sangue, pó e morte por todos os cantos da praça de Agua Verde. E o povo no meio, apático.

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A visceralidade da violência de Peckinpah é ainda hoje avassaladora, roçando a psicose aguda. Nem a prostituta que atinge Bishop está a salvo, recebendo insultos e um tiro certeiro de resposta. Violência hipnótica, dionisíaca e anestesiante para os norte-americanos de sessentas, saturados da guerra do Vietname a entrar-lhes pelas salas adentro, a cores, através da televisão.

Que nem abutres, o bando de Thornton dirige-se para Agua Verde; aí recolhe os cadáveres para receber a recompensa. A população ora e benze-se e os abutres (com pernas e com penas) aterram sobre o buffet.

Thornton, presciente, fica-se pelo povoado e assiste à debandada da população, agora sem chefe nem guarda nem rumo. Ouve-se, ao longe, o massacre do seu antigo bando – os cadáveres do bando de Bishop só lhes trouxeram a morte às mãos dos revolucionários, em justiça poética de pistoleiros. Assim reencontramos Sykes, que se juntou aos revolucionários de Don José (Chano Urueta) e faz o convite ao outro velho bandoleiro para a enésima cavalgada rumo ao desconhecido, que se danem as rugas e as articulações enferrujadas. Morte a Sul do Rio Grande é melhor do que prisão ou existência inglória a Norte numa pátria que nada lhes diz. Parece-nos, pois, que o México podia ser para velhos. Já não é como era, mas dá para o gasto, como diz Sykes.

Enquanto filme cimeiro de Peckinpah e da renovação do cinema norte-americano de sessentas, estamos perante uma obra seminal: metafórica, violenta, brutal e sem quartel, sem heróis, cheia de vencidos e da qual ninguém sai incólume. O Rio Grande, ao contrário do Estige, é um rio da morte – morte física, mas também de vidas e pecados.

A fronteira continua tão ou mais violenta do que em 1913. Ainda não se calaram nem as armas nem a “La Golondrina”, banda sonora dos mexicanos que fogem da miséria e da violência. Nisso, o grande filme de Peckinpah ainda não terminou.


sobre o autor

José V. Raposo

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