A imprevisibilidade e a rejeição de determinismos fazem parte daquilo que entendemos por caos. Ao longo dos últimos cinquenta ou sessenta anos, a música popular Ocidental deu uma quantidade de tombos e dividiu-se numa série quase infindável de experiências e esferas sónicas que raiam o caótico na sua complexidade; não é tarefa fácil saber pegar nesse legado, examiná-lo e a partir daí fazer algo de artisticamente interessante, em particular nesta época de torrentes de informação, de pós-verdade e de inteligência artificial. Os Water From Your Eyes jogam intensamente nesse terreno complexo, criando um caos sónico que é a sua fórmula criativa.

Depois de fazerem a primeira parte de Interpol no Lisboa Ao Vivo em 2023, estreiam-se agora por cá como donos de noite e com inteira justiça, diga-se. Com It’s a Beautiful Place (2025) para apresentar e sem esquecer os óptimos Everyone’s Crushed (2023) e Structure (2021), era intensa a sede de desfazer dúvidas que subsistissem sobre a dinâmica da banda.

Formados em Chicago, os Water From Your Eyes são a soma da vontade e das sinapses criativas de Nate Amos e Rachel Brown, dois dínamos artísticos que têm deitado barreiras sónicas abaixo à martelada, como se quer. Para além de Brown e Amos, Al Nardo (bateria) e Bailey Wollowitz (baixo e guitarra) compõem uma secção de ritmo que transfigura o som da banda, tornando-a, em várias canções, numa entidade quase distinta daquela que conhecemos dos discos.

Rachel Brown encarrega-se da parte cénica da banda e da voz. Traz a si esses primeiros elementos identificáveis do som do grupo e situa-se meio caminho entre toda a tradição experimental underground e a curiosidade livre de preconceitos de fazer pontes com o mundo da pop, ora circulando pelo negrume dos cantos do palco, ora demonstrando um esplendor de peito feito à moda dos vocalistas de nomeada, com uma componente de consciência política assinalável.

Por seu turno, Nate Amos, que no Primavera Sound Porto deste ano se apresentou sob a sua designação a solo This Is Lorelei, é um cabal exemplo de um gajo prolífico da música popular dos nossos dias. Espreitar-lhe o Bandcamp (se ainda não o fizeram, façam-no) é descobrir um autêntico arquivo de exploração sónica, que tanto dá para os lados da country e da folk, como para a experimentação rítmica. Aqui, apresenta-se igualmente solto de quaisquer amarras e a partir da sua guitarra muito terreno sónico foi desbravado sem precisar de perder largos minutos para mostrá-lo – um multum in parvo ligado ao amplificador.

Antes de toda esta descoberta dos descobridores havia uma primeira parte a cargo de Catarina Branco. Com a sala já composta, a cantautora de São Martinho do Porto radicada em Lisboa só precisou de teclas e de humor (o Spotify Wrapped que se cuide) para dar a conhecer as suas crónicas sonoras sobre o mundano. Nem um grupo de estrangeiros ao nosso lado escapou de mexer os ombros ao som de Quando é que se muda a cama?, um lembrete catchy e melodicamente prazeroso de que, nesta época de edredões e lençóis, convém limpar e arejar o material em nome da higiene e de bons sonos.

A caminhar para o fim da sua curta actuação, Catarina dá-nos uma (boa) notícia: vai haver álbum novo para o ano que vem, “se tudo correr bem” (façamos figas). Depois de uma pseudo-picardia com o pessoal das luzes, o fecho deste primeiro acto da noite com Cintalho, homenagem ao falo artificial (“os artifícios são amigos que ajudam à animação”!) e ao prazer advindo da necessidade – depois do pirilau cénico de Grace Jones no NOS Alive há uns anos, a exaltação das virtudes da partilha do cintalho. Parabéns pela vitória e que Catarina Branco nunca fique num poço (criativo).

Depois de uma abertura de noite já a pender para fora da caixa, uma Sadeness (Part I) no PA lembrava-nos que o serão era dos desalinhados sem medo do escárnio alheio. Se uns não tinham medo, outros estavam famintos de canções intrépidas e não podiam estar em melhor sítio para matar essa fome.

Para começar a revelar todo o manancial de caos dos Water From Your Eyes, eis Born 2. É o shoegaze visto pela banda, que certamente terá devorado a discografia dos My Bloody Valentine e dos Slowdive, glosando o género com uma melodia hipnotizante de Amos e Brown discorrendo docemente sobre psicopatias e determinismos. Se dúvidas houvesse sobre o que tínhamos pela frente, ficaram desfeitas logo ao fim de quatro minutos e tal.

Comparando a Barley do Beato com a de estúdio, a perda de arranjos e pormenores da segunda é compensada pelo sangue na guelra da primeira. O diálogo de Nardo com Wollowitz e com os pratos da bateria (em particular o chinês) é notável e Amos mostra na guitarra toda a versatilidade que o tornam numa revelação dos últimos anos, aqui perpassando pelo math rock como se nada fosse enquanto Brown conta as montanhas dos versos da letra com toda a autoridade.

Tal como os Spirit of the Beehive, os Water From Your Eyes absorvem o input das influências, juntam-lhe o seu talento e sai um output que reflecte o Zeitgeist contemporâneo da música alternativa Ocidental (e não só, que pelo Japão há décadas que assim é): da quantidade descomunal de informação e do conhecimento enciclopédico de bandas e movimentos a que temos acesso sai uma belíssima nova fórmula. Labiríntica e caótica, a obra dos Water From Your Eyes tem resultado em algo que fica – e que se desenvolve lindamente mesmo aqui à nossa frente.

A ofensiva sónica não parou, antes aumentou de intensidade, que a banda muda de orientação sonora mais depressa do que os presidentes da FIFA e da UEFA dão prémios e graxa a ditadores e demais corja. Do neo-kraut de Life Signs para a pop experimental de Nights in Armor distaram meros segundos de intervalo, ainda que a distância criativa e temporal seja de décadas. Na primeira, Brown dispara jogos de palavras e trava-línguas enquanto Amos e Wollowitz esbatem fronteiras rítmicas nas cordas, ao passo que na segunda a bateria de Nardo se entrelaça fenomenalmente com a belíssima linha de baixo de Wollowitz para juntar forças com a melodia de Amos e Brown e perfazer o apogeu da noite (e acreditem que foi difícil escolhê-lo).

Nesta mesma Nights in Armor cabe uma plêiade de ideias que é magnífico desvelar. Ouvimos ali a herança dos LCD Soundsystem e um remate de poucas palavras, repetido até ao fim do sonho: “fight me, I’m on fire”. Só com esta já ficam na História.

No meio de todo este caos sónico, algumas palavras de Brown que, para além de elogiar Catarina Branco e de manifestar o seu cansaço pela degradação e morte a que se assiste pelo mundo (“não quero ficar mais de coração partido”), deixou assente o seguinte: “daqui a umas sete vezes por cá já terei aprendido qualquer coisa de português, que por ora ainda estou a tentar dominar o inglês”.

Em Blood on the Dollar, Amos encarna o seu melhor Slash à porta da capela, mas em vez do azeite rockeiro, temos baladona à moda da banda de Chicago ou, se se preferir, uma revisitação dos Mazzy Star e dos Galaxie 500 para o mundo da pós-verdade. De olhos fechados, Brown faz a récita destes tempos de perigo de desmoronamento de fundações, com um verso fundamental lá pelo meio: “these years make me [us] spin”. E de que maneira.

Logo de seguida, atira: “muito apropriado acabarmos a digressão de um disco com este título numa cidade linda como esta, ao contrário daquela em que começámos, que foi Filadélfia. Vibes bem diferentes!”. Vindo de uma banda que há minutos tocou uma canção chamada It’s a Beautiful Place, muito se agradece a sinceridade, até porque a adrenalina de actuar por vezes tem um combate complicado com o cansaço acumulado da estrada.

Em véspera de feriado do Dia da Imaculada Conceição, os Water From Your Eyes serviram-nos, em jeito de fecho de alinhamento principal, Playing Classics e a sua imaculada compulsão para a dança, aqui com a guitarra irmanada no ritmo com a bateria. A crueza desta interpretação substitui, com vantagem e dada a envolvente da noite, os arranjos psicadélicos de estúdio.

Aqui chegados, poderiam as más-línguas dizer que os Water From Your Eyes não passam de um pastiche de influências advindas do quadro de honra da fixeza? Poderiam, mas estariam redondamente enganadas. A banda sabe o que faz e sabe retransmitir em palco, tendo apenas precisado de Track Five e de pegar nos KLF, nos HEALTH e em meia Madchester (RIP Mani) no encore para uma última pulverização da ordem musical instalada, mediante uma transfiguração da versão de estúdio para uma incrível neurose de acordes cortesia de Nate Amos e de Bailey Wollowitz.

No meio da abordagem nada ortodoxa dos Water From Your Eyes há uma execução para lá de competente; por outras palavras, há um excelente concerto que confirma que ter assunto é com eles. Do abstracto do estúdio partem para o concreto do palco e tanto se ouve o passado como se ouve uma proposta para o futuro da música popular alternativa. É uma gloriosa mistela sónica que tem um substrato musculado onde a linearidade não tem lugar.

Havia para aí um tipo intriguista (um Marques Mendes de Westeros) que dizia que o caos é uma escada, isto é, uma espécie de elevador social. O caos dos Water From Your Eyes é uma fonoteca viva de acordes, letras e ideias que nos faz abanar as certezas em cima desta pilha de absurdidades que é o presente.

E que magnífico é esse caos.

 

 

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