Depois do cancelamento dos Maruja (anunciado na manhã do próprio dia 14), este segundo dia do Vodafone Paredes de Coura perdeu uma parte muito significativa do seu interesse. No entanto, não ficou completamente despojado de assunto, como veremos.
Após mais um set (o décimo primeiro) do glorioso colectivo no Xapas, este ano com direito a futebolada na pista de dança, era hora de pegar ao serviço. Aquando da nossa entrada no recinto, no palco principal, os brasileiros Terno Rei terminavam a actuação com o seu jangle pop de gosto impecável e, no secundário, teria início daí a pouco uma conexão América do Norte-América do Sul da autoria dos californianos LA LOM.
LA LOM – Palco BacanaPlay
Em jeito de apresentação para os bisbilhoteiros, LA LOM é uma sigla para Los Angeles League Of Musicians, trio composto por Zac Sokolow (guitarra), Jake Faulkner (baixo) e Nicholas Baker (bateria/percussão). Já para os que são mais curiosos de ouvido, o grupo de Los Angeles oscila nas latitudes: entre o surf rock criado ali mesmo no Sul da Califórnia e a cumbia (em especial a chicha, a cumbia à moda peruana), a espaços lembra também os “nossos” Dead Combo (RIP Pedro Gonçalves), que muita história em Coura fizeram.
Não se podendo queixar de falta de público, não tardaram a conquistá-lo (se bem que esta seria uma fenomenal proposta para um after). Uma Danza de LA LOM admiravelmente interpretada foi das primeiras bola a sair do saco, dando lugar a pérolas como Angels Point e Figueroa, que transcenderam o trabalho de estúdio (que já leva um álbum de originais e vários EPs) e revelaram a influência de bandas de chicha como os Los Destellos. Um cancioneiro totalmente instrumental que é uma carta de amor à Los Angeles de ontem (ao mesmo tempo que ajuda a construir a de hoje) e ao vulcão musical sul-americano.
Com conexões culturais a dar com um pau, a música de LA LOM não destoaria num romance de Raymond Chandler ou de John Fante (mais um bocado e virávamos todos Arturos Bandinis courenses), passado num bar fumarento de madeiras e intenções escuras, onde qualquer coisa com gelo cairia que nem ginjas.
Sendo certo que a temperatura estava elevada para os padrões minhotos (também por culpa da banda e da energia que imprimiu à actuação), não nos recordamos de tanta parte de cima de biquini e de tanto tronco nu em exibição no recinto em todas as nossas campanhas courenses. A Califórnia estava mesmo aqui tão perto.
As boas-vindas courenses não se ficaram pelos aplausos efusivos, que a massa de gente não parava quieta, de tal maneira que até um comboio de espectadores irrompeu pela plateia, dando inclusive a volta pela régie, como se a fugir da víbora do logótipo da banda. Não era para menos, que a banda dava o litro e empolgava, com virtuosismo nos solos da National Val-Pro de Sokolow (por vezes a raiar o psicadélico) e o vigor na secção de ritmo de Faulkner e Baker (na qual figuravam uma conga em vez de tarola na bateria e uma alternância entre baixo eléctrico e contrabaixo). Com uma contundência sonora que faria corar de vergonha muita gente do punk, os LA LOM fizeram do concerto uma autêntica e magnífica prenda vinda de Los Angeles para as margens do Coura (não esquecer que voltam cá no Outono).
Voltando a John Fante, pergunte-se ao pó de Coura o que achou do concerto. Mas só quando o bailarico geral o deixar assentar.

LA LOM _ © Hugo Lima | instagram.com/hugolimaphoto | hugolima.com
Perfume Genius – Palco Vodafone
Mike Hadreas, genial cultor da art pop, regressou a Paredes de Coura e trouxe consigo Glory, porventura o seu melhor álbum, editado no presente ano; diga-se que em 2022 aventámos que voltaria, restando apenas saber para que palco. Calhou-lhe aquele que mais merecia, considerando os seus últimos cinco anos de carreira.
It’s a Mirror é uma malha do caraças em toda a sua majestade ao vivo e a cores. Os arranjos (muito de Blake Mills, que há anos que é parceiro artístico fulcral de Hadreas) tornam-na num fantástico cruzamento entre a folk, a country (nem as botas à cowboy ficaram de fora) e a art pop, fazendo-lhes companhia uma letra de reflexão existencial e autobiográfica: “what do I get out of being established? I still run and hide when a man’s at the door.”
O fascínio e o interesse de Mike Hadreas pela dança e pela pantomina não são novidade, que já o seu disco anterior, Ugly Season (de 2022, ainda que mais compilação do que álbum), era um acompanhamento musical para The Sun Still Burns Here, peça de dança em colaboração com Kate Wallich. Se na voz por vezes recorre ao sussurro, na coreografia procura a completa extroversão e a catarse, utilizando uma cadeira simultaneamente como bode expiatório (esperemos que a mesma tenha seguro), apoio na coreografia ou simplesmente para descanso, qual Merce Cunningham courense.
As reflexões sobre a dor, a perda e a identidade transpostas para este disco manifestam-se em cada palavra e em cada passo de dança, com acompanhamento musical que repete sem extravagâncias o vertido em álbum. De regresso à art pop, Slip Away e On the Floor cristalizaram a abordagem de Hadreas de fazer do palco o seu mundo e o seu abrigo – com umas quantas bolas de sabão pelo ar no meio de tanta solenidade extrovertida, passe a contradição.
Wreath foi uma oportuna ida a tempos mais remotos da carreira, aqui os passos fluidos e contundentes dando lugar a uma interpretação mais assertiva e sem meias medidas. Tal como há três anos, o fim veio com Queen, hino que afirma a identidade (e a vitalidade) queer de Hadreas. Mesmo para quem não compartilha a identidade, não deixa de ser uma canção poderosa com uma mensagem condizente, ideal para fechar um concerto que foi uma aposta acertada e mais uma montra da frescura da obra de Perfume Genius. Tanto faz se Hadreas é rei ou rainha, que o seu trono já lá estava no palco.

Perfume Genius
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Por imperativos logísticos faltámos à chamada de Lola Young e da sua Messy, que, pela vox populi, conquistaram a plateia e esta a própria artista, repetindo-se o efeito Couraíso já registado na véspera com Zaho de Sagazan. No palco secundário, o duo inglês Soft Play repetia, desta feita através de bateria e guitarra eléctrica, a rebaldaria que Joey Valence & Brae tinham levado a cabo na noite anterior, até porque o festival até agora estava carecido de uns bons mosh pits (“abram aí o pit, porra!”, exclamavam eles, enquanto ordenavam que o dito se dividisse entre homens e mulheres) – situação que se alteraria nos dias seguintes, avisamos já. Desta festa partiu-se para uma outra, que iria ter lugar no palco principal.

Soft Play
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Portugal. The Man – Palco Vodafone
Se houve momentos enternecedores nesta edição, o regresso dos norte-americanos Portugal.The Man foi um deles. Vimo-los ali mesmo em 2009 na sua estreia por cá (mas não em 2016, data da sua mais recente passagem pelo festival), quando ninguém (segundos os próprios) queria saber deles fora dos Estados Unidos e (muito provavelmente) poucos na plateia sabiam quem eles eram – o mesmo não se podendo dizer desta sua terceira vinda a Coura, na qual até se apresentam equipados à Futebol Clube do Porto, qual grupo de amigos que veio ao festival.
Como lembrete de que este concerto seria de coração, uma mensagem prévia em vídeo nos ecrãs de palco estabeleceu que, para melhor se comemorar a ocasião, o ritmo seria elevado, de modo a ter-se direito ao maior número de canções possível. Afinal de contas, uma banda celebra tocando e não apenas falando.
Todo este tempo passado, os Portugal. The Man são sobreviventes e suficientemente rijos para insistirem naquilo que sabem fazer e não, a música no concerto não se ficou apenas por Unchained Melody no PA antes do começo da actuação. Começou esta com uma execução intensa de Hip Hop Kids, dedo do meio geracional a conflitos de cena musical, daí seguindo para uma incrível versão de Evil Friends, com direito a uma secção de sopros que engrandeceu (leia-se “envergonhou”) a versão original de estúdio. Não restassem dúvidas de que a noite era de triunfo.
Estamos a falar de um grupo que, dentro da escala (por assim dizer) estilística do rock dito alternativo, tanto dá para o psicadelismo como para composições mais escorreitas, logo muito haveria para percorrer. Com a intensidade em altas (e muito fumo em palco, quase a camuflar a banda da multidão que enchia a envolvente do palco principal), uma Atomic Man digna de referência levantou um oceano de braços na plateia.
Para além da sua própria música, a banda enveredou por um pouco de gozo, novamente nos ecrãs: uma menção a esse cântico de apreço nacional intitulado “Esta Merda É Que É Boa” (ao nosso redor, alguém disse: “agora a seguir tocam o hino do Porto!”) levantou um coro e uma data de sorrisos, nem que fosse para toda a gente recuperar um pouco a compostura no meio de um concerto com tanta pedalada. Tempo também houve para recordar expressamente 2009: “obrigado por terem vindo quando estivemos cá com Peaches e Nine Inch Nails, que foi uma maluquice!”
A banda até pode ter as suas origens no Alasca, mas com tanto calor humano é bem cá do burgo. Nada mau reencontro com estes já históricos de Paredes de Coura. Quando quiserem voltar cá estará o anfiteatro natural à espera deles.

Portugal. The Man
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Num dia que, como já dissemos, ficou teoricamente mais fraco com a ausência do nome com mais sumo, nem assim Coura perdeu fulgor. Com reencontros com históricos do festival, pantomina pop de qualidade e uma prenda de Los Angeles se fez um dia proveitoso e que, de certa maneira, serviu de (bom) estágio para a segunda metade desta edição do festival.