No tempo da sua génese, na década de oitenta do século passado, o hardcore, para além de ter sido uma vanguarda artística (nos EUA, fundamentalmente), representou, para certos sectores, uma ameaça à sociedade, tanto fazia se se estava no Ocidente ou no Bloco de Leste, que punk era inimigo público. Estava-se nos tempos de Reagan na Casa Branca, da histeria de Tipper Gore com o conteúdo das letras de canções e da representação dos punks como psicopatas em programas sensacionalistas de televisão e em séries e da perseguição policial. 

Depois de passado o esplendor inicial das primeiras vagas e subsequentes dissolução, decadência, reconversão (a de Washington, D.C., foi magnífica) ou miscigenação com o thrash metal das várias cenas pelos Estados Unidos, o género tornou-se parte integrante da paisagem sónica da música popular. As cenas locais que sobreviveram passaram por períodos de agravamento dos sintomas de seita e de ideologia, isto é, da distorção dos valores iniciais ou por infiltrações de extremismos políticos, aguentando-se razoavelmente a qualidade da música (a não ser que estejamos a falar de metalcore, que é outra maneira de escrever lixo).

Chegados a 2025, até a The New Yorker proclama que o hardcore deixou de ser mauzão e passou a fofinho. No ano em que o grande Al Barile (dificilmente se pode ser fã de hardcore sem se ser fã de SS Decontrol) foi para o Paraíso, os Turnstile lançam novo disco e tornam o hardcore ainda mais acessível (ou menos perigoso, por vezes) para muitas franjas de fãs de música de guitarras eléctricas; de resto, New Heart Designs, um EP com BadBadNotGood, e ter Dev Hines e A.G. Cook com eles em estúdio já lhes tinha granjeado fãs fora do mosh pit. Já as velhas guardas que ainda resistem vão tocando e ensinando as prelecções necessárias, ao passo que as novas ou vão seguindo caminhos de marasmo sónico ou vão trilhando caminhos diferentes e mais relevantes, como é o caso da banda de Baltimore.

Desde a estreia por cá em 2015 no RCA, muito andaram os Turnstile. Se nesse ano lançavam (e promoviam) Nonstop Feeling, um disco catchy e herdeiro dos Gorilla Biscuits e Judge, no corrente ano da graça são uma das bandas de letras gordas no cartaz de um festival de música popular alternativa, carregando o estandarte de um género mais afoito a clubes do underground do que a palcos principais. O que é certo é que, por cá, já é o segundo palco principal a que dão um ar da sua jarda, depois de (para este escriba) terem dado o melhor concerto da edição de 2022 de Paredes de Coura.

Todavia, não nos enganemos, o schwerpunkt de Turnstile é o mesmo das bandas de hardcore desde o início dos tempos: agressividade e, de preferência, um refrão orelhudo que forme uma comunhão entre banda e público. A mística assim se vai construindo.

O que nos leva a uma questão: dada a sua popularidade, serão os Turnstile banda para pessoas que não gostam de hardcore, como ainda há poucos anos se dizia que Kamasi Washington era jazz para pessoas que não gostavam de jazz? Difícil de ajuizar, mas a expectativa que pairava antes do concerto era palpável.

Do quarteto que foi campeão em Coura só houve uma alteração de pessoal e outra na composição: saiu Brady Ebert, entrou Meg Mills e Pat McRory passou do ritmo para o solo nas seis cordas e aquela para o ritmo. Salvo esta substituição, ainda lá pontificam Brendan Yates, Franz Lyons e Daniel Fang.

Pouco depois da hora marcada, eis luzes, guitarras, acção. Depois do crescendo inicial, a onda de Never Enough embate contra nós e o público passa-se da cabeça, naquele misto de entusiasmo inicial num concerto (em esteróides) e a qualidade do que ali era interpretado. Impossível ficar indiferente a um refrão como aquele.

Aviar T.L.C. logo à segunda malha é sacanagem da grande. Muito provavelmente a melhor quebra da fase recente da banda, na sua interpretação (tudo, mas tudo no sítio e assim seria até ao fim do concerto) foi declarada guerra ao ar, repetidamente esmurrado pela plateia e bombardeado por Yates na letra (“BOOM! BOOM! BOOM!”), tudo rematado com uns versos que espelham a mensagem de atitude mental positiva (conceito de Napoleon Hill plasmado primeiramente no hardcore pelos Bad Brains): “I want to thank you for letting me see myself, I want to thank you for letting me be myself”. Convenhamos que também dariam uma boa mensagem a um(a) ex pós-divórcio. 

O exame ao material de Never Enough era retomado. I Care passou no crivo após a honestidade de Yates de que esta seria para dançar – uma Boys Don’t Cry ou XTC à moda de curiosos de ouvido do hardcore – e Dull é crossover thrash mas sem passar de uma primeira velocidade de punir o chão ao salto e ao pontapé. 

Título desnecessário tendo em conta o movimento na rotunda do palco Vodafone (àquela hora com mais trânsito do que a rotunda da Anémona), Keep It Moving foi uma jóia trazida do fundo do baú dos Turnstile (de Step 2 Rhythm, de 2013), de quando andavam a soar a Deftones. O melhor não foi sequer a execução, mas sim a recepção por parte do público, que tinha a lição bem estudada para além dos êxitos.

A açorda de gambas do almoço ali ao lado em Matosinhos (sigam-nos para mais dicas gastronómicas) ainda dava combustível para nos mexermos no meio da turbulência das cercanias do pit, muito estimulado por Franz Lyons, baixista e hypeman não-oficial da banda. Vêem-se pessoas com farpela de brat no meio do molho (sinais dos tempos e dos públicos) e o inefável crowd surf, aqui plenamente justificado e democrático.

Com Real Thing (de Time & Space) aportou-se novamente ao material mais antigo de Turnstile. A versão de estúdio já era uma das suas melhores canções, mas coitada desta ao pé do que nos foi servida no Parque da Cidade. O ataque em pinça das guitarras de McRory e Mills e um Yates mais dado à melodia do que à gritaria foram a mais pura das verdades sónicas.

Continuando pelas vetustas do seu cancioneiro, uma versão fabulosa de Drop (canção que já há dez anos piscava o olho a um rumo diferente da rapidez e dos três acordes) deu num vira à moda de Baltimore. O ritmo pouco ortodoxo nas lides do hardcore é uma das grandes forças dos Turnstile – a falta de vergonha criativa faz-lhes bem.

Regresso ao passado recente com um parzorro de malhonas de Glow On, Underwater Boi e Holiday, não fôssemos esquecer a excelência daquele álbum. Uns minutos de introdução só com o público a entoar a primeira antes da estridência (fabulosa) do pedal de chorus e do braço trémulo da guitarra de McRory antes da jarda que a segunda, um clássico da banda, promete e cumpre com distinção e louvor.

Também em oposição a muito do género, os Turnstile não enveredam, salvo uma observação ou outra, por considerações políticas. O seu fulcro é o da reflexão e crescimento pessoal e interpessoal e do espaço de cada um nesta vida (com Glow On e Never Enough à cabeça). A mais recente canção magna da banda, Look Out For Me, é mais um exemplo desse caminho.

Se a letra versa sobre um poço de indecisão, no que concerne à instrumentação a banda sabe muito bem o que quer e para onde vai: punk directo ao assunto com uma avalanche de melodia desventrado abruptamente para um pouco de EDM enquanto o palco fica escuro e a banda faz um interlúdio. Cá em baixo, o triatlo do pit deu lugar à pista de dança; para a perfeição só faltou Maestro Harrell aparecer para interpretar a cena de The Wire samplada nesta “outro” instrumental. 

O resfolegar terminou com mais outro crescendo (começa a ser especialidade destes tipos), o de Mystery. Ao contrário do que reza a letra, não havia nenhuma arma apontada à cabeça de Yates, mas este não deixa de rodopiar à Baryshnikov de Baltimore, de usar o apoio do microfone como batuta e de se coordenar (?) com os companheiros no caos vigente em palco, que prosseguiu com Blackout, que é sempre aquele estoiro impressionante de deixar a massa humana com bicho-carpinteiro.

Gostamos de pensar que uma canção como Seein’ Stars tocada ali no Porto é uma espécie de Reininhocore, porque em tudo soa a um dos melhores períodos dos GNR. Se há coisa em que os Turnstile são mesmo especialistas é em fazer-nos ver estrelas de várias maneiras.

O biqueiro final para fazer a plateia voar que nem pássaros foi com Birds. Uma senhora malha que encerrou a reunião comunitária, formalmente fechada com os abraços (literais, mais uma vez) de Yates ao público. Também com isto uma banda se faz grande, que no hardcore temos de ser uma só voz, já diziam os X-Acto.

Sobre a questão que colocámos no quinto parágrafo, a resposta continua difícil. Contudo, já no fim da contenda passaram por nós pessoas com camisolas de Bold, banda histórica que também figura no ADN dos Turnstile; respirem de alívio os cépticos, que eles ainda são do ‘core. E têm eles estatuto para serem a banda preferida de alguém? Sem dúvida.

Longe de ruminações sobre capitalismo tardio e sustentabilidade de festivais (se fosse só pelos números de público neste concerto estaria a coisa assegurada por muitos anos) ou de cacofonia histérica política juvenil típica de tanto do hardcore, objectivamente aquilo a que se assistiu foi uma banda na sua plenitude, auxiliada por um público sabedor. Que cá voltem em nome próprio, de preferência numa sala de dimensão média.

O mau? Apenas ter desaparecido o efeito novidade de finalmente apanharmos Turnstile ao vivo, algo que era inevitável após Coura. O bom? A confirmação de que estes gajos são uma das melhores bandas que para aí anda. O óptimo? A êxtase da alma cheia depois de um grandíssimo concerto.

A Turnstile Love Connection é amor que arde no pit.

Fotos por Hugo Rodrigues
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