Reportagem


The National

Velhos amigos continuam a aturar-se e a abraçar-se

Campo Pequeno

12/12/2019


Não há género musical mais obcecado com a juventude do que o rock. E, dada a sua influência na cultura ocidental (e não só) dos últimos sessenta anos, naturalmente que a obsessão pela juventude (eterna) contaminou sociedade e cultura, numa nova demanda pelo Santo Graal, propulsionada pelo poderio dos amplificadores, dos acordes, das letras, de um rol de substâncias e, claro, do sexo. Se uns aos setenta ainda andam a fazer filhos e a cantar que não estão satisfeitos e que fizeram um pacto com o Diabo, outros vão envelhecendo como uma de Barca Velha ou de Château Pétrus.

Outros já são velhos em novos e outros não envelhecem (parece que o tal pacto faustiano é mesmo realidade). E, por fim, outros que conseguem fazer a ponte e transformar uma canção numa reflexão existencial que permita abanar as ancas e espantar os males. Rock para adultos é com os The National.

A passagem dos Big Thief pelo PA do Campo Pequeno levanta a questão: serão estes hoje em dia o que os The National eram há dez anos? Talvez, ainda que mais prolíficos e crus. Na descrição das agruras e da frieza da vida são mesmo discípulos dilectos de Matt Berninger e companhia, estatuímos.

Velhíssimos amigos e portadores de Visto Gold, voltam a Portugal pouco mais de três meses depois da última visita, em Paredes de Coura. Esperava-se que esta actuação, a 17.ª, com a vantagem de ser em nome próprio, apagasse pechas da de beira Coura. E a 18.ª está já marcada para o Rock in Rio, em Junho próximo.

The National

Dispensou-se primeira parte e logo pelas 20h41 mimetizou-se Paredes de Coura com os primeiros acordes de You Had Your Soul With You. Começo auspicioso? Sim, dado o troar de quem esgotava o recinto. Mais do que uma pérola como Start a War? Nem por sombras, lamentamos. Versão superior à de estúdio, contudo.

Continuou-se por I Am Easy To Find (2019), com Quiet Light. Canção que se desenvolve muitíssimo bem, em dueto de Berninger com Kate Stables (This Is The Kit), assemelhando-se ao que deles esperamos: uma banda sonora da depressão urbana, a espaços pontuada com euforia de grandes refrões, devidamente enquadrada com palavras certeiras da letra.

Na opinião deste escriba, o último grande álbum da banda foi Trouble Will Find Me (2013), o seu último trabalho repleto daquela urgência que os tornou num pilar do rock-alternativo-para-adultos, num marco do indie destas duas últimas décadas. E que bem que soube Don’t Swallow the Cap. Terna, solene, a bateria de Bryan Devendorf estabelece o ritmo do solavanco emocional da letra: viver é arriscar e de vez em quando estamos mesmo sozinhos e desfeitos por fora e por dentro. The National para decantar.

Tal como em Coura se lhe seguiu Bloodbuzz Ohio, apresentada pela primeira vez em nome próprio ali mesmo no Campo Pequeno e no Coliseu do Porto, em 2011. Os seus arranjos de sopros levam tudo aos píncaros, um lembrete de que, naquela noite de Maio de 2011, os piores medos de quem tinha dois dedos de testa neste País estariam para se confirmar e que a bebedeira colectiva de Portugal terminaria abruptamente, ao contrário da bebedeira de vinho de Berninger na letra.

Certo é que os The National foram parte da banda sonora que ajudou a aguentar aqueles penosos anos de 2011-2015, como já dissemos sobre o concerto de Agosto em Coura.

The National

Talvez tenham deixado o copo de vinho metafórico e a angústia e contemplem agora o seu passado e o horizonte com uma criança nos braços. Talvez a letra-mantra de Abel – “MY MIND’S NOT RIGHT, MY MIND’S NOT RIGHT” – já não faça sentido nos The National de 2019. Ou talvez se tenham fartado e prefiram ir ao baú do seu universo buscar outras coisas, nem que seja para refrescar o alinhamento. Talvez já não queiram começar guerras (piada intencional, com saudades desse colosso de canção que é Start a War). Ou não seja nada disto e seja só promover material novo.

Não são banda cor-de-rosa, mas são banda de e do coração: I Need My Girl cantada solene e devotadamente. É verdade: odiar é muito bom, mas precisamos amiúde dos The National como quem precisa de uma boa miúda, que nos conheça como conhecemos a banda e que nos restaure a alma como eles o fazem nestes momentos altíssimos do seu catálogo. E que nos faça sentir grandes e não “smaller and smaller” (onde é que essas mentes já vão, ordinários?).

Se é para adormecer mágoas, então This is The Last Time tem Tylenol e cerveja, canta placidamente Matt Berninger. Impaciente no coda final, a Jenny continua a saber que ele não mais esperará por ela, mas deixou-nos um término instrumental belo, que se arrastou por um minuto ou dois.

Bom, como ainda antes do concerto tinham estado a falar com astronautas, é mesmo certo que recorreram ao seu universo, trazendo à órbita do Campo Pequeno a memorável Looking for Astronauts, dedicada a Jessica Meir, astronauta em serviço na Estação Espacial Internacional. Uma interpretação magnífica, consentânea com a toada da setlist, mas sempre com aquele refrão à The National.

Nota negativa apenas e só para os espectadores que encolheram os braços, desconhecendo a malha. Temos pena, normies, mas estes já cá andam há muitos, problema vosso se não a conheciam – desfrutassem da canção e da raridade que é apanhá-la ao vivo.

The National

Amigos elogiam amigos: “vocês combinaram essas palmas antes do concerto ou quê? Vocês sabem bater palmas, lá na América é que só batem palmas a estúpidos, tipo presidentes e assim.”. E o bom do público lá ia retribuindo a cada investida de Berninger pelas grades com afagos, elogios, cartazes para a colecção deste (incluindo um dizendo “All the wine”; bom saber que há quem se lembre da canção) e uma ovação gigante quando decidiu carregar multidão adentro e empoleirar-se no balcão de um dos bares. Apostamos que não foi contemplado pelo #pagafinos.

Graceless é um mimo; aqueles tempos de bateria em paralelo com o nosso ritmo cardíaco, a tensão melódica do duo de guitarras que atira todos para confins emocionais – um feito ao alcance de poucas bandas. Limites da personalidade e do poder destrutivo do pensamento? Ponha-se Berninger no divã. E I Am Easy To Find, facilmente a pior em Coura, resultou bem aqui. Que grande batota, este concerto.

Tal como em 2011, terminou o alinhamento principal com Fake Empire. Há onze anos que vimos os The National ao vivo, desde a Aula Magna até duas vezes de Campo Pequeno, passando pelo Sudoeste e por Coura e este é sempre um momento de antologia, um coro que enche as medidas a quem queira saber o que é o culto por esta banda em Portugal. Por outras palavras: sem mácula.

Encore todo ele de estalo. Pink RabbitsAbout Today Terrible Love com tudo no sítio e, obviamente, Mr. November. Da nossa parte, somos as gajas da claque que carregam os The National nessa monumental canção, com esse gigantesco verso. Foi o muletazo desta boa festa brava.

Não há volta a dar, os órgãos com poder legislativo deste País não legislaram a tempo no sentido de o proibir e, pela enésima vez, um concerto de The National foi encerrado com Vanderlyle Crybaby Geeks, balada acústica cantada a 90% pelo público, embevecido pela comunhão com a banda.

Que diabo, encaremos o momento como um fecho em êxtase de um concerto bem arrancado, como umas Janeiras antes do tempo. O Deus Menino está para nascer e tivemos direito a uma prenda adiantada de velhos amigos. De amigos que não se confundem com estranhos.

“Obrigado por gostarem de nós há tanto tempo”, disse a dada altura Matt Berninger. Podíamos ter sido nós a dizê-lo, compincha.

Galeria


(Fotos por Hugo Rodrigues)

sobre o autor

José V. Raposo

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