Há coisa de meio milénio, Martinho Lutero contestou, através das suas 95 Teses, a venda de indulgências por parte da Igreja Católica, isto é, a absolvição/atenuação de penitências dos pecadores mediante o pagamento de uma “taxa” (em óbvio benefício de outros interesses que não os da Fé). Atento o endeusamento que se fez a tantas figuras do rock, naturalmente que a formação de supergrupos tenha passado, ao longo dos anos, das boas intenções artísticas para uma autêntica venda de indulgências conducentes à consagração dos egos das bandas e da conformação dos fiéis como “verdadeiros fãs”. Terá sido sempre assim? Nem por isso. E ainda haverá lugar para supergrupos hoje em dia? Há, pois, como os The Hard Quartet magistralmente demonstraram no Capitólio, refutando o balofo conceito em vigor.
Tantas e tantas vezes são os supergrupos uma desilusão egocêntrica pegada e sem piléria nenhuma ou, pelo menos, uma montanha que pariu um rato; algo que no papel promete muito mas que acaba por ser uma banhada de quem já não tem grande coisa para dizer. Exemplos? Falando só de propostas relativamente recentes: Audioslave, Velvet Revolver ou Them Crooked Vultures. Muita parra, muito ego, muito marketing e pouca uva (ou má uva, mesmo).
Não, não se trata de snobismo, que mesmo no melhor pano do underground caiu a nódoa. Os Minuteflag, miscigenação dos Black Flag com os Minutemen, goraram expectativas de quem tinha esperanças no EP homónimo, editado pela SST em 1986. Água com açúcar a mais no bong de Greg Ginn, D. Boon (RIP) e companhia.
O entusiasmo com que se encara a reunião sob o mesmo nome de vários nomes grandes desaba que nem um castelo de cartas quando o produto final nos é apresentado. Se, todavia, muitos fãs acérrimos (e acríticos) aplaudirão, outros tantos ficarão desiludidos e o resultado final será uma mancha no historial dos envolvidos. Nem todos podem ser os Cream (que muito pouco duraram mas muita coisa boa deixaram).
Tantas vezes tido como instrumento para receita fácil e de petulância de quem se recusa a encarar a sua própria irrelevância, o supergrupo raras vezes resultou em algo verdadeiramente digno de memória. Excepções? Poder-se-á dizer que, entre outros, os aludidos Cream, os Crosby, Stills & Nash (com ou sem Neil Young à mistura), os The Highwaymen e, mais recentemente, as Boygenius pontificam num amontoado de experiências falhadas. Longe da maior ou menor informalidade dos ensembles de jazz (que muito contribuíram para o seu desenvolvimento, como as várias formações do quinteto de Miles Davis) e dos supergrupos de música electrónica (vide os Moderat), o supergrupo de rock, salvo alguns bons exemplos, não acrescentou o que deveria ter acrescentado ao género.
E, bom, se falamos de supergrupos, naturalmente que estamos também a passar em revista a carreira dos seus membros e da influência que exercem sobre a obra dos demais. Estabeleça-se já que os quatro membros de The Hard Quartet estão no genoma do rock dito alternativo dos últimos trinta anos, do mais ortodoxo até ao mais exploratório, do trabalho instrumental de relevo até à melhor escrita de canções.
Emmett Kelly, rei e senhor de The Cairo Gang (e colaborador frequente de Will Oldham/Bonnie “Prince” Billy, contribuindo para muita da melhor obra deste) é um trovador e tanto, oscilando entre o experimentalismo e a redescoberta da elegância da pop com guitarras. Matt Sweeney, entre ser membro dos Skunk e dos grandes Chavez e colaborar com Bonnie “Prince” Billy, tem tido sete ou oito ofícios na carreira (e um outro supergrupo, os Zwan). Por sua vez, Jim White é um baterista do melhor que estes tempos já ouviram, com uma lista de colaborações que daria para vários terabytes. E, claro, Stephen Malkmus, o gajo dos Pavement, dos Silver Jews e dos Jicks que uma data de tipos armados em carapaus de corrida indie tentaram imitar mas que nunca igualaram (mal conseguiram adivinhar-lhe as afinações da guitarra, quanto mais).
Expectativas para The Hard Quartet? A puxar para elevadas desde que se ouviu o disco homónimo no ano passado e incomparavelmente altas desde que a sua passagem por cá foi confirmada. A coisa ou iria ou racharia.
Antes deles, honras de abertura de noite (à hora certa, viva a pontualidade escocesa) para Dragged Up, quarteto de Glasgow. Com High On Ripple, longa duração do ano passado (e um single novíssimo, Blake’s Tape) para mostrar, não se fizeram rogados e foram dando conta de que têm os Sonic Youth, os Stereolab (bem patente no referido single) e as Raincoats nos seus genes. Toda uma escola sónica de décadas devidamente plasmada em canções que bem aqueceram a sala para o que aí viria.
O indie escorreito dos Dragged Up foi suficiente para convencer quem teve a clarividência de marcar presença no Capitólio. Uma banda fixolas daria lugar aos legisladores da fixeza.
Se há uns anos o palco do Capitólio configurou uma sala de estar onde os Yo La Tengo nos receberam para rebentarem com a escala, desta vez estávamos perante uma assembleia para deliberar sobre esta coisa dos supergrupos. Um hemiciclo de veteranos estava reunido no palco para nos convencer a aprovar uma moção de confiança sobre aquele assunto.
Devagar se começou a ir ao longe com Thug Dynasty. Descontraídos mas confiançudos, os membros do quarteto dos duros começavam a construir os seus argumentos: ao contrário de um regime autoritário, estamos em presença de um conjunto democrático, com o equilíbrio de poderes criativos e sónicos no sítio e com toda a liberdade do mundo na execução. A única marca distintiva é mesmo a toada que cada membro imprime a certas canções, como é o caso de Heel Highway, reminiscente dos Pavement de Brighten the Corners e de melodias que Kelly e Sweeney imprimiram às suas colaborações com Will Oldham.
Our Hometown Boy é uma demonstração de força de reinvenção do jangle. A voz e as sensibilidades pop experimentais de Kelly esculpem aqui uma belíssima filigrana de cordas sobre a “cama” rítmica de White e Malkmus (aqui no baixo, com todo o à-vontade de quem pesca acordes a dormir enquanto a concorrência nem com três cafés em cima). Com muito pouco a provar, interpretam o seu material relaxadíssimos e, como qualquer um que domine a sua arte ou ciência, fazem o difícil parecer fácil.
Por falar em pescaria, Malkmus tinha um boné com os dizeres “Malkmus Fly Fishing Outfitters” e, estando nós no país em que a sardinha é titular de órgão de soberania gastronómica, lançou-nos um absurdo típico seu, falando em “sardinhas no rio”. Parte da piada do concerto era estar em proximidade com figuras enigmáticas libertas das grilhetas dos seus grupos emblemáticos e assistir a algo diferente daquilo a que deles estamos habituados. Mas há algo que nunca muda: os saltos para trás ao pé-coxinho de Malkmus quando espalha magia na guitarra.
Então e a dureza à moda deste quarteto? Viria logo a seguir com Earth Hater e Renegade. Riffs do aço a piscar o olho ao material dos Chavez e aos Jicks (e a uns Dinosaur Jr.) entrecortados na primeira com uma pop coral de sessentas e na segunda com displicência noise; ambas representam tudo aquilo que se quer num supergrupo: uma junção consistente de idiossincrasias criativas, sejam um riff cheio de fuzz ou um verso que é produto de muita ginástica de palavras ao longo dos anos.
Também assim foi com Killed By Death. Tal como na canção homónima de Motörhead, há humor, há absurdez e há morte. Tudo contado por um Sweeney e um Kelly irrepreensíveis (a country e a folk são terrenos que ambos tornaram férteis, de resto) enquanto Malkmus e White fornecem o ímpeto rítmico. Não havia aqui amarras nem pressão e a moção de confiança nos supergrupos caminhava para a aprovação.
Mais uma troca de instrumentos (“obrigado por me terem vindo ver a tocar baixo!”, atirou Sweeney) e partida para um aceno vigoroso aos Pavement com Hey. Malkmus em modo voz de veludo (“hey, I would like to surrender to your confusion”, como que um encontro malkmusiano com os Velvet Underground de I’ll Be Your Mirror) e a distribuir acordes alquímicos cuja progressão nos deu um valente arrepio na espinha, em especial quando em duelo com os acordes de Kelly. Quando 2025 soa brilhantemente a 1994 rendemo-nos incondicionalmente a esta incrível confusão.
Um antigo presidente da República proclamou (e bem) que havia vida para além do défice; já os The Hard Quartet decretam, alto e bom som (excelente trabalho do técnico de som), que há mais vida para além das suas bandas do passado. Tal como na circulação de bola no Futebol Total de Michels, Neeskens, Cruijff, Rep e companhia, a melodia troca magnificamente de mãos entre Kelly, Malkmus e Sweeney. Nunca nos esqueçamos de que estamos perante três enormes escritores de canções, cujas abordagens (não nos cansamos de referir) resultam não numa cacofonia petulante, mas em canções que ultrapassam as versões de estúdio e se agigantam ao ponto de uma dupla constatação: a de que o disco é mesmo um grande registo e a de que o saber-fazer do quarteto multiplica a qualidade daquele em palco.
Não nos esqueçamos, porém, de Jim White e consagremos que é um dos grandes bateristas do nosso tempo. Longe de ser apenas um fornecedor de ritmo e mesmo sendo a sua abordagem aqui mais convencional do que noutros registos (como em Xylouris White ou com Marisa Anderson), daquela pega tradicional de baquetas saem uma marcação de tempo e uma elegância que propulsionam o conjunto para patamares de seriedade e qualidade muito para além da brincadeira de rapaziada calejada.
Nada do que se ouve está datado, bem pelo contrário. A frescura do material é evidente, como sucedeu num dos pontos altos da noite, Action for Military Boys. Uma canção cuja variedade melódica e rítmica (ai aquela quebra ali pela metade) quase que a torna num medley e que é, quiçá, a maior demonstração do democrático poderio criativo da banda. Para uma ofensiva sónica destas não há trincheira nem drone que nos valham.
Uma valente fuzzada a puxar para o psych como a de Chrome Mess encerrou uma hora e dez minutos de alinhamento principal. Todavia, não obstante a excepcionalidade do concerto, restava uma certa sensação de que havia algo mais a dizer por parte dos The Hard Quartet (isto de andar a bisbilhotar set lists de noites anteriores tem destas coisas). E, bem assim, ao fim de trinta segundos de desaparição lá para o fundo do palco só para trollar a plateia, lá voltou o quarteto.
Sendo certo de que estávamos perante mestres, uma homenagem a um outro cairia sempre bem. Assim foi com Advice to the Graduate, canção dos Silver Jews quase análoga à Balada da Despedida do fado coimbrão, mas bem mais incisiva nos conselhos de vida. Banda do saudoso David Berman com a qual Malkmus colaborou largamente (bem como Bob Nastanovich e Steve West), só este momento valeu o bilhete e a deslocação.
Na solenidade enérgica (só com gajos destes é que um paradoxo como este é possível) do dueto de Kelly e Malkmus passou-se em revista o animus artístico de David Berman (de fazer estremecer a alma uma estrofe como “sleep on your back and ash in your shoes, and always use the old sense of the words, your third drink will lead you astray, wandering down the backstreets of the world”), com direito a um coro comunitário e a perfazer um fecho de noite em forma de volta olímpica de vitória. Não se esqueçam de morrer no vosso último dia de vida.
Conclusões? O conceito de supergrupo saiu com confiança renovada (e a refutação de que aqueles não são quase todos uma fraude), o legado dos quatro elementos reforçado e o concerto obteve entrada directa nas melhores actuações por cá deste ano. Finda a coisa, banda e público em amena cavaqueira no Parque Mayer, cada qual de peito cheio à sua maneira. Os sorrisos (e as toalhas de chá com o logótipo da banda) que se leva para casa não têm preço.
Livre da pressão das respectivas bandas (sobretudo Malkmus), o quarteto dos duros deu um concerto excepcional. Libertos de amarras no seu âmago como se fossem estóicos (Epicteto bater-lhes-ia palmas e compraria o vinil), redefiniram a credibilidade do supergrupo e elevaram a fasquia – e deixaram expectativas para um eventual segundo álbum. Qual é o perigo a que nos referimos no subtítulo? O de que quem se seguir aos The Hard Quartet não ter andamento para eles e ficar-se pela banalidade.
Eles não tinham nada a provar e nós ficámos a ganhar. Moção de confiança aprovada.