Ainda que em teoria parecesse que o segundo dia do Primavera Sound Porto fosse uma espécie de irmão do meio, assim tipo quem está esquecido e sem assunto, na prática foi bastante longe disso. Apesar de ser um festival em que tanto se olha para o presente da música popular como para o seu passado (e para um pouco do seu futuro), neste dia do meio a ida ao passado foi a fundo – em particular aos anos zero que, tal como as décadas da música popular que os precederam, foram díspares até dizer chega.
E, tratando-se de uma sexta-feira 13, não houve azares nenhuns, só mesmo a sorte de poder testemunhar uns quantos concertos memoráveis.
Waxahatchee – palco Porto
Excepção aos aludidos regressos ao passado foi o concerto de Waxahatchee (santinho, piada obrigatória), projecto de Katie Crutchfield. Em menos de uma década, esta passou de cantautora tímida que oscilava entre a tradição folk e country e uma costela mais pop (os bons velhos tempos de Ivy Tripp, de 2015) para efectivamente cantautora de topo – com Saint Cloud (2020) e Tigers Blood (2024) à cabeça, sem esquecer as colaborações com o companheiro Kevin Morby e com Jess Williamson.
Num agradável fim de tarde, a brisa sónica de Crutchfield não perdeu tempo a fazer-se sentir. Uma óptima Evil Spawn e demais contos (que grande melodia, a de Ice Cold) sobre a vida na cabana e no meio das ervas daninhas (literais e figuradas) mereceram a aprovação de uma plateia de palco principal já liberta de mochileiros e repleta do público-tipo de um Primavera Sound, equipado com t-shirts e sacos de pano da fina flor do folk rock, como meio de demarcação de tribo.
As promessas de amor perpétuo de Can’t Do Much são mais uma prova da evolução criativa de Crutchfield, que consegue relatar com mestria as complicações emocionais da vida. Mesmo sem o dueto com MJ Lenderman (encontro marcado com ele em Coura em Agosto), não resultou nada mal Right Back To It, com o baterista Spencer Tweedy (filho de Jeff Tweedy) a manter competentemente o andamento.
Aquela timidez a que nos referimos acima? Desapareceu ao tempo, que Crutchfield já perto do final do concerto largou a guitarra e foi passear a voz para a plataforma que na noite anterior tinha sido de Charli XCX. Não obstante sentirmos a falta do seu material mais antigo, por ora tinha ficado tudo dito.
Um banjo e uma brisa e a vida fica mais fácil.
Los Campesinos! – palco Revolut
A contemporaneidade deste dia de festival ficaria praticamente encerrada após o concerto de Waxahatchee, que a partir daí seria uma viagem até aos anos zero, com maior ou menor volume. Os Los Campesinos!, banda galesa que levantou ondas há mais de década e meia e que já julgávamos desaparecida, apresentavam-se com vitalidade a rodos no palco Revolut.
Na travessia de um deserto de ideias que foi a era do indie do aterro no Reino Unido surgiram bandas como os Los Campesinos! ou os Dananananaykroyd, que foram beber ao noise e ao post-hardcore em vez de tentarem recauchutar mal e porcamente os Strokes e a britpop. Curiosamente, nenhum destes grupos era inglês, tendo (pelo menos) começado a criar longe do epicentro cultural inglês.
Retomado o rasto à banda galesa em 2025, vemos que estão numa cruzada power pop. Suando as estopinhas, foram deixando a pele em palco, nem que seja porque as saudades de cá apertaram; o vocalista, Gareth David Paisey, anunciou que a banda não tocava por cá desde um concerto no dia de recepção ao campista na edição de 2010 de Paredes de Coura.
O sentido de humor fatalista (e os títulos de canções à Titus Andronicus) da banda veio ao de cima antes de We Are Beautiful, We Are Doomed: “esta é do disco que confirmou que nunca seríamos ninguém”. Tocada a todo o gás e com coros partilhados com a primeira linha das grades, afigura-se que os dizeres de Paisey sobre o destino da banda não coincidiram com a verdade material.
Quando os deixámos, estavam a atirar-se a You! Me! Dancing!, outra boa canção do catálogo da banda e aquela que nos chamou a atenção sobre a mesma há demasiados anos.
Na piscina entre palcos e após uma vista de olhos pelo recinto, ressaltava que viria aí enchente para ver Deftones. Legiões de fãs da banda de Sacramento pululavam (ou sentavam-se na relva a pôr a conversa em dia) pelo Parque da Cidade do Porto; fossem zoomers com t-shirts quase novinhas em folha ou veteranos dos tempos de White Pony com t-shirts coçadas, constituíam a clara maioria do mostruário têxtil de devoção a uma banda neste segundo dia de Primavera Sound Porto.
TV on the Radio – palco Vodafone
Até se pode ter mudado de palco, mas ficou-se no ano de 2009 na mesma. Chegados ao palco Vodafone (que, convém não perder de vista, era o antigo palco principal do festival), a enchente para ver TV On The Radio era notória. Ao invés de música, a banda de Brooklyn estava a meio de uma proclamação política sobre a repulsa que o actual estado de coisas nos Estados Unidos lhe provoca.
Já sem Gerard Smith (RIP) e Dave Sitek (esse mago da produção indie de há década e tal, agora retirado de digressões), Tunde Adebimpe, Kyp Malone, Jaleel Bunton e companhia asseguraram que o legado da banda não cairia pela lama. Finda a bojarda política, brindaram os presentes com outra, desta feita sónica: Wolf Like Me.
Desengane-se quem ligar demasiado ao aspecto grisalho de Adebimpe e Malone, que pujança não faltou na execução de uma das canções de rock dito alternativo deste século. Como reza a letra lá para o fim: uivaremos para sempre.
Também a obra mais recente (note-se que o último disco da banda, Seeds, já tem onze anos) não ficou mal em acta, que Could You manteve os seus arranjos de estúdio e o substrato de reinvenção dos Byrds praticamente intactos. Idem, idem, aspas, aspas para Happy Idiot.
Por falar em felicidade, o baterista, Jahphet Landis, levou que contar do Porto. Nascido neste mesmo dia 13 de Junho, teve direito a uns parabéns (em português) arrancados ao público por Adebimpe. Se bem que, diga-se, teria tido direito a uma parabenização à mesma por manter o nível dos TV on the Radio ao vivo.
Retorno aos clássicos da banda no fecho, com Staring at the Sun. A tensão do art rock rematou um concerto no qual, não obstante ausências de peso como Sitek, não faltou competência. O curso que descobriu o indie em 2007 rejubilou.
Beach House – palco Vodafone
A banda de dream pop contemporânea preferida dos alternos destes tempos (ou, melhor dizendo, dos que têm saudades dos “noughties”) voltou ao Primavera Sound; Alex Scally e Victoria Legrand já ali tinham actuado em 2012 (numa tenda esgotada que nos obrigou a ir ver uns grandes Wolves In The Throne Room) e em 2016 no palco principal e deu o concerto número dezassete por cá. De resto, esse facto foi sublinhado por Scally, que relembrou, lá para o meio, a estreia da banda no Porto no Passos Manuel em 2008.
Para quem escreve estas linhas, a grande dúvida seria sobre se o material do grupo composto por Scally e Victoria Legrand (com James Barone na bateria) continuaria a adaptar-se mal aos palcos maiores ou se haveria melhorias nesse item. Se Lazuli assenta bem num palco da dimensão do Vodafone, Silver Soul fica muito aquém – perde-se a nuance e, à conta (ou não) da mistura e qualidade de som, a voz de Legrand fica a perder, abafada pela bateria e pelos graves.
Por seu turno, Wildflower aguentou-se relativamente bem. E o que é certo é que o público foi dando o seu assentimento, mesmo mal vendo a banda, que mesmo sendo sombra visual não é sombra sónica.
Também Myth sofre com a transposição para os palcos grandes. Demasiado bombástica e a afogar a voz de Legrand (vá lá que Scally aparece favorecido na mistura), faz-nos suspirar pelos tempos em que os víamos em palcos mais pequenos, quando o subtil crescendo da faixa se fazia notar sem mácula.
E, bem, já cá faltava o clichê tremendo em que Space Song se tornou. Não obstante, resultou na maior ovação (e sessão de filmagens) de um concerto que já ia quase no fim.
Ligeiramente melhores do que noutras vezes recentes que os vimos, os Beach House continuam a sofrer com a adaptação aos palcos principais. Não que a sua música não os mereça, mas o paradoxo de terem qualidade para grandes palcos mas estes serem prejudiciais à interpretação da sua obra ao vivo estraga-lhes o legado.
Ainda não foi desta que voltámos a ver um concerto seu do calibre dos de antigamente, infelizmente.
Da dream pop passar-se-ia, logo ali ao lado no palco Super Bock, para o concerto de uma banda cuja música (?) poderia ser a banda sonora de um pesadelo. Falamos dos Chat Pile, quarteto do Oklahoma que faz da brutalidade incomensurável do mundo e da vida a sua mensagem e cujo concerto, por ter sido dos melhores do festival, é inteiramente merecedor de texto próprio, pelo que para aí se remete.
Deftones – palco Vodafone
[Nota: por restrições impostas pelos representantes da banda não foi possível obter registo fotográfico do seu concerto.]
Eis que chegou o ponto máximo da viagem nostálgica que este dia de Primavera Sound Porto representou. Se com Los Campesinos!, TV on the Radio e Beach House andámos pela segunda metade dos “noughties”, com os Deftones o recuo dar-se-ia até à primeira metade da década – ou mesmo até finais dos anos noventa, que já aí a banda californiana era relevante. E assim continua, que a enchente para (re)ver Chino Moreno, Abe Cunningham, Frank Delgado e companhia (RIP Chi Cheng e falta marcada a Stephen Carpenter, agora mais dado a chalupices) era de monta.
Gaita, Chino, que começar com Be Quiet And Drive (Far Away) é batota das grandes. Ninguém diria que o gajo que temos vigorosamente aos pulos no palco mesmo à nossa frente está nos cinquentas. Dois mil e poucos foi mesmo ontem e não há duas décadas, que nada se perdeu (tirando a abominável farpela da altura) e pouco se transformou – os Deftones são comida de conforto sónica.
O momento é mesmo digno de memória: diante de nós, as dezenas de ecrãs de telemóvel com o ícone vermelho de gravação e a quantidade de gente aos saltos registam e gozam a ocasião a seu gosto. E quem andou a pesquisar alinhamentos sabia bem que logo a seguir os Deftones torceriam a faca (não haveria Knife Prty no alinhamento, porém) com mais um estoiro: My Own Summer (Shove It).
O que já tem peso em estúdio ganha aqui mais uma tonelada ou duas. E Chino Moreno e Abe Cunningham perdem uns quantos quilos no suadouro exaltado da execução, numa qualidade de som (de onde estávamos, pelo menos) irrepreensível. O Sol enfiou-se mesmo num buraco com medo deste apocalipse sónico.
As versões ao vivo não ganharam apenas mais peso. Diamond Eyes, do álbum homónimo (o primeiro sem o saudoso baixista Chi Cheng) é aqui francamente superior em relação ao registo de estúdio; não se perde nada da melodia da voz de Moreno e arranjos dispensáveis dão lugar à agressividade das guitarras, mais consentânea com o que freneticamente ali se vive.
Em jeito de recado de como o sacana do tempo voa, White Pony chegou por estes dias ao quarto de século de idade. Para comemorar a ocasião, a banda puxou da cinematográfica Feiticeira (ali uns laivos de Misery) e do seu riff infeccioso e de uma magnífica Digital Bath.
Retome-se uma espécie de polémica sobre os Deftones: são ou não uma banda de nu metal? A resposta é, para este escriba, negativa. Não só já existiam e desenvolviam um som próprio antes de o nu metal se tornar um fenómeno, como a única similitude entre o seu material e uns Korn ou Limp Bizkit é mesmo a dos refrães pesadões. O riff (e finalmente Moreno pegou na guitarra) e os falsetes de Digital Bath (ou a influência dos Smiths e dos The Cure em Sextape) estão mais próximos de algo avant-garde do que de Fred Durst a berrar que quer partir coisas.
Já no respeitante ao efeito da nostalgia e estando nós num dia de festival que é mesmo um olhar sobre o passado, pouco ou nada sentimos nesse sentido (se bem que para muitos a ocasião tenha sido de regresso a períodos em que foram felizes). Com efeito, quer no “estágio”, quer no próprio concerto, a nossa única revisitação mental do passado foi a comparação com interpretações e alinhamentos de concertos de antanho da banda. Tanto nos fez se ouvíamos Street Carp a caminho das aulas em 2001 ou se ouvimos Minerva pela A1 acima dois dias antes do concerto – mais ou menos mudanças pessoais, os Deftones são uma banda intemporal na nossa fita do tempo.
Falando-se em mudança, ontem como hoje os samples fantasmagóricos de Change (In the House of Flies) levantam plateias, tendo a do Parque da Cidade do Porto emprestado a sua voz à de Chino Moreno. E se White Pony envelheceu magistralmente, também Ohms (o álbum mais recente da banda) e a sua Genesis (Abe Cunningham é SEMPRE aquela máquina) são uma prova do duradouro assunto dos Deftones – mais ainda se servirem para fechar a set list principal.
Ainda sobre o facto de os Deftones não deverem ser considerados um grupo de nu metal, Minerva, que abriu o encore, terá sido a primeira canção de shoegaze que alguma vez ouvimos. Mais Hum do que Slowdive, é peça fulcral no catálogo da banda e ao vivo resultou numa beleza épica.
Para acabar, o recuo até 7 Words (de Adrenaline, de 1995). À beira de se tornar trintona, é do tempo em que o grupo ainda estava indeciso entre ser uns novos Faith No More ou, dado o conteúdo político da música, uns discípulos de Rage Against The Machine. Mesmo com todo o músculo que aqui se viu (coitada da versão de estúdio), felizmente que a banda incorporou no seu som o que tinha de incorporar e seguiu um caminho diferente daquelas influências.
Terminada a contenda, nos ecrãs figurava o nome da banda e a data do concerto (em bom rigor, já era dia catorze de Junho). O Chino e a sua rapaziada sabiam bem que a data mereceu ser assinalada.
Passe o chavão, o tempo pouco passou pelos Deftones e, aquele que passou, passou muitíssimo bem.
Salvo a latente irregularidade sónica dos Beach House, o dia foi de boas surpresas. Os Los Campesinos! e os TV on the Radio ainda mexem bastante bem, Waxahatchee continua um valor seguro e em crescendo, a magistralidade dos Deftones está intacta e os Chat Pile são já uma das melhores bandas do planeta.
E ainda havia mais um dia de certame, com muito, mas muito interesse.