E pronto, mais um ano, mais um Primavera Sound Porto. Mais um cartaz carregado de assunto (superior ao do ano passado, no nosso modesto entender), mais umas bifanas da Conga para o bucho e mais umas malditas sobreposições a estragarem-nos os planos operacionais.
A chuva (ligeira) e o vento que caíram ao início da tarde de quinta-feira, 12 de Junho, desapareceram e assim se deu início a mais um certame, com um dia forte naquilo que constitui a maioria do ADN do Primavera Sound: o rock alternativo, com alguns momentos pop de arromba. Para assistir a tudo isto, apareceu a horda de hipsters – nativos e estrangeiros – que vêm em romaria até ao Parque da Cidade do Porto, sem esquecer os mochileiros dedicados exclusivamente ao nome mais popular do dia, Charli XCX.
Momma – palco Revolut
Os californianos radicados na Meca destas coisas que é Brooklyn podem, a espaços, parecer que não são assim tão diferentes do resto da maralha recente que tem vindo a levantar material no indie de noventas. No entanto, quando se tem discos como Househould Name (2022) e Welcome to My Blue Sky (2025) e a máquina está oleada pela prática da digressão, a coisa é bem diferente.
Mais do que riffs que ficam (e põem o pé a mexer), a maior força da banda é a dinâmica entre Etta Friedman e Allegra Weingarten, as construtoras de canções do grupo; seja no dueto ritmo-solo nas guitarras ou nas vozes (por vezes oblíquas), está ali a maior parte da identidade do grupo. São alguém que na juventude (mais recôndita) terá descoberto Throwing Muses e Breeders e que foi continuar esse legado, com um cunho obviamente pessoal.
Com maior rasgo do que em estúdio, a banda foi atirando o que tinha a um público que, a avaliar pela cantoria e pelos saltos, sabia bem ao que vinha. Os corações ardentes de I Want You (Fever) e Medicine propalaram a actuação para uma competente demonstração de que sair do estúdio faz bem a muitas bandas de indie rock – e ao seu material.
Mal entrados no recinto e já tínhamos uma das revelações do festival. Nada mau.
Dehd – palco Porto
O actual palco principal – dito “Porto” – está longe de ser um substituto aprazível do antigo, que continua agora como “palco Vodafone”. Para além da sua localização e configuração e porque se trata de um palco principal de um festival desta envergadura, aí concentra o que se pode chamar de cabeças-de-cartaz (ainda que tal seja difícil de determinar neste festival) e respectivos fãs – e seus vícios.
Como é consabido, o Primavera Sound começou a incluir nos seus cartazes nomes grandes da pop, como Rosalía em 2019 e 2023 e Lana Del Rey em 2024. Artistas de qualidade? Sem dúvida. Fãs da mesma estirpe? Nem por isso, que assistir a concertos como o dos norte-americanos Dehd no meio de pessoas que os ignoraram olimpicamente (e que se estavam nas tintas para quem quisesse ver) não é agradável. Nada que uma mudança de sítio não ajudasse, contudo.
Dito isto e na senda do concerto dos Momma, também os Dehd (em mais uma passagem por cá), através do seu indie dadaísta, foram uma revelação do festival. Pouca gente soa como eles e isso joga, obviamente, a seu favor (tal como uma guitarra verde-brat/dobradinha do Sporting).
Ainda que o céu não estivesse propriamente azul, o trio, composto por Emily Kempf (baixo e voz), Jason Balla (guitarra e voz) e Eric McGrady (bateria) esganou a sua Window logo no arranque, servindo o refrão e seu verso de “blue sky” como que uma súplica para que a chuva não aparecesse (e não apareceu!). Diga-se, porém, que aqui o grupo ainda estava em modo de execução mais convencional, podendo-se discernir que a sua matriz sónica anda pelos Young Marble Giants e Beat Happening, com a bateria de McGrady a fazer lembrar Bobby Gillespie nos seus tempos de The Jesus and Mary Chain.
A desconstrução e aceleração de tempos das suas canções deu-se logo em Clear. Jangle em ácidos e com partilha de vozes entre Kempf e Balla, deu outra graça àquilo que em estúdio já é interessante que chegue.
A pastilha elástica dos Dehd é obviamente pós-contemporânea (de caramelo salgado com quinoa ou assim, very organic), de tatuagens sarcásticas na cara, num gozo completo às convenções sociais que ainda restem. Mas, fundamentalmente, a banda acrescenta qualquer coisa que se ouça e veja – na parte de ver, pelas projecções saltava algo que mais parecia uns “ditos” das Caldas da Rainha psicadélicos.
Mas será tudo dadaísta e a zombar? Nada disso, que Bad Love é uma canção muito séria sobre amores que correram muito mal. Kempf lança os braços ao ar enquanto canta versos sobre ter o coração cheio de redenção após o desgosto (tema a que Alan Sparhawk também se dedicará daí a nada, noutro palco). Tu queres redenção, a gente quer que tu toques.
Aquilo que podia ter sido uma chatice indie vítima de um hype desmesurado tornou-se em mais uma revelação do Primavera Sound Porto 2025. Assim vale a pena.
This Is Lorelei – palco Revolut
Nate Amos, que no Porto se apresentou sob a sua designação a solo This Is Lorelei, é um cabal exemplo de um gajo prolífico da música popular dos nossos dias. Para além de ser a outra parte dos Water from Your Eyes, espreitar-lhe o Bandcamp (se ainda não o fizeram, façam-no) é descobrir um autêntico arquivo de exploração sónica, que tanto dá para os lados da country e da folk, como para a experimentação rítmica.
Para o que nos interessa, a actuação no Primavera Sound Porto foi um recital de como ir reinventado a country e a Americana, sem concessões a ninguém e sem precisar de grande coisa mais para além de uma guitarra, um baixo, uma bateria, um sampler e uns quantos pedais. Se uma canção como Where’s Your Love Now precisa de seis minutos e tal para respirar convenientemente, então serão seis minutos de melodia e reflexão sobriamente pulsantes. Agradece-se a paciência mútua.
I’m All Fucked Up, ponto alto do concerto, resume bem todas as idiossincrasias de This Is Lorelei nesta fase: humor e evocações sónicas da Americana de antanho enquanto se serve algo novo. Segue uma longa linha de contos humorísticos sobre bebedeiras (e não só) e agruras da vida, como You’re The Reason Our Kids Are Ugly de Conway Twitty e Loretta Lynn ou Carmelita de Warren Zevon, com todas as vicissitudes dos acordes que saem da Les Paul de Nate Amos.
Se em estúdio há canções do projecto que mais parecem que Bob Seger não se reformou, aqui in loco parecem saídas da pena (melhor dizendo, das guitarras) de uns Smashing Pumpkins, como foi o caso de Mouth Man. Guinada sónica mas a letra críptica continua lá: Amos põe-se no lugar de um filho nada dilecto que surripia a drogaria ao pai. Metafóra religiosa ou vida degradante? Você decide.
Tantas vezes servem os concertos para tirar as teimas sobre a qualidade de uma dada banda e o de This Is Lorelei não foi excepção. E, pelos aplausos no fim da actuação, o veredicto é o de que Nate Amos merece carimbo de aprovação por unanimidade.
E, de repente, começava a noite a cair e caía em cima de nós o primeiro choque de horários típico de um Primavera Sound: Alan Sparhawk contra Fontaines D.C.. O primeiro, pela grandeza emocional (e pela aposta sónica arriscada) tem texto próprio, e os segundos têm recordação através de fotografia. Dada a similitude com as passagens dos irlandeses por cá no ano passado, podem sempre recordá-las aqui e aqui.
Charli XCX – palco Porto
Grande representante dos prazeres pop e autora (ou compiladora de colaboração de alto gabarito) de um dos melhores discos do ano passado, brat, a britânica (mas cada vez mais do mundo) veio para partir chão no Porto. À sua espera tinha “a” enchente do festival: um mar verde-fluorescente de mochileiros (muitos deles fardados a rigor, qual exército brat), curiosos, hipsters do contra, famílias que devem ter achado que ali era poiso mais seguro para a prole do que no meio dos roqueiros alternos, entre muitos outros.
A actual diva da martelada não se fez rogada e, com um brat já puído de fundo (a intensidade é tanta que a matéria não aguentou a pressão de um ano e tal de batidas), correu sozinha para o palco e desatou a espalhar magia com uma remistura de 365 da autoria de Shy Girl. De seguida, o balázio calibre 3.60 para lançar a confusão e os generosos glúteos de Charli XCX dando ordens para que a formação do seu exército se colocasse em ordem unida de dança (por assim dizer). Carne toda no assador, que só se vive uma vez mas dança-se uma data delas.
Grandioso momento foi Von Dutch. BPM no ponto e uma letra circular não deixaram que o enorme mar verde ficasse parado, vigorosamente iluminado por focos de luz que mais pareciam saídos das anti-aéreas do Blitz de 1940/41. Ficámos com genuína pena do pobre chão que teve de levar com os furiosos pés de dança do público, a sério que ficámos.
Quando abandonámos (com certa mágoa) o concerto, o palco Porto estava em brasa depois de uma Club Classics e suas referências a maiorais como A.G. Cook (um dos tais colaboradores de alto gabarito de brat) e Mike Skinner, este um parente na linha colateral daquilo que Charli XCX tem apresentado na sua carreira. Mais tarde, chegámos a ouvir, do lado lado do recinto, I Love It, música de Icona Pop à qual emprestou a voz e que a lançou definitivamente para uma carreira fulgurante como a que tem edificado e que serviu de fecho de concerto.
Do que se viu, foi mesmo uma brat late spring.
High Vis – palco Super Bock
Como já se diz há uns anos, a música de guitarras eléctricas oriunda do Reino Unido, depois de vários anos de depressão (mediocridades como Razorlight ou The Kooks ainda nos causam maus arrepios na espinha), atravessa um período brilhante. Tudo isto mercê de bandas como os black MIDI (agora desaparecidos, mas continuados pelos membros a solo), os Black Country, New Road, os Shame, e, claro, os High Vis, banda de Londres que ora se apresenta à nossa frente, ao vivo e a cores.
À conta de colisões de horário não vimos todo o concerto da banda inglesa, mas chegámos a tempo de uma Feeling Bless, de Guided Tour (de 2024 e produzido por Jonah Falco dos Fucked Up), hino da ennui pós-Brexit com uma linha de baixo gigante. Banda com aura de lads (tal como os Shame), não lhes falta acidez num duplo sentido: na situação que se vive num Reino Unido desiludido com o Brexit e em parte das influências da banda, que remontam aos tempos da Manchester da acid house misturada com as guitarras dos Happy Mondays (Graham Sayle por vezes soa a um Shaun Ryder em boa forma).
Por falar em boa forma, dificilmente voltaremos a ouvir a Fever Dream de estúdio depois de termos levado com a versão ao vivo. Os Inspiral Carpets e os Chameleons tiveram um filho assim para o encorpado que nos enfiou uma cabeçada no Parque da Cidade do Porto. Que maravilha, senhores e senhoras.
A presente situação do Reino Unido (e deste mundo) não poderia deixar de dar azo a comentários por parte de Graham Sayle. Relembrou, em particular, que o Serviço Nacional de Saúde britânico (o N.H.S.) lhe salvou a vida – a ele e a muita gente – e, vai daí, partiu a banda para o niilismo de uma belíssima The Bastard Inside, esta reveladora da veia hardcore de vários dos membros da banda, sem, no entanto, precisarem de acelerar o tempo, que o que interessava era a mensagem na veia.
Dada a qualidade do que se acabou de testemunhar e o legado que bandas como os High Vis têm de honrar, não haja dúvidas de que estes lads on tour cumpriram. Mais tempo houvesse e ainda mais dariam.
As sobreposições de horário do Primavera Sound Porto faziam, de seguida, mais uma grande vítima. Tivemos de prescindir de uns passos de dança em Caribou para ir testemunhar um momento histórico: a vinda dos The Jesus Lizard. Concerto que já era mítico mal a banda norte-americana tinha sido confirmada no festival, vai ter óbvias honras de texto próprio.
Para os mais rijos, havia ainda DJ Playero na zona Cupra Pulse. Para nós, a primeira jornada estava encerrada.