O último dia do NOS Alive 2025 foi o mais preenchido dos três e, qua tale, aquele com mais assunto. Numa enchente de público crescente ao longo das horas que antecederam o concerto dos Muse, nome mais popular do dia ainda que não o mais importante no contexto da música popular, honraria que cabe aos Nine Inch Nails, bastante houve para acompanhar, incluindo a maior enchente que já vimos no Coreto e os australianos mais portugueses dos últimos anos.
A paisagem do palco NOS e redondezas era dominada pelo vozeirão de CMAT (iniciais de Ciara Mary-Alice Thompson), cantora irlandesa com uma queda para a folk apopalhada de ontem. Também o seu sentido de humor tomava de assalto a plateia, ao dizer-se “demasiado ruiva para estar neste país, que tem demasiado sol para pessoas ruivas!”.
O revivalismo fez-se por entre os compatriotas The Clancy Brothers e por um timbre de voz que muito lembrava Janis Joplin (e uns agudos de Kate Bush) de inícios de carreira. Qualquer eventual bafio foi posto de lado perante canções como 2 Wrecked 2 Care, fábula musicada de problemas de primeiro mundo que não destoaria num fase (extremamente) pop de Waxahatchee.
Bastaram uns tímidos raios de sol para que os espectadores voltassem aos brindes (essa imortal relação entre portugueses e borlas, a que já fizemos referência), desta feita fazendo fila para se besuntarem preventivamente de creme contra escaldões, mas esta não seria a última relação duradoura a que teríamos direito neste dia.
Luís Severo – palco Coreto
Naquela que foi a maior moldura humana que alguma vez vimos no palco Coreto, Luís Severo, cantautor nacional de excepção, apresentou-se com toda a crueza do formato a solo (diga-se, com toda a justiça, que Severo não precisa de muito para arrebatar), rumo a um concerto e tanto. Estabelecendo que tinha pouco tempo para tocar e ainda menos para falar, lançou-se de surra para Amor e Verdade, quase-hino com uns versos que continuam lamentavelmente actuais sobre a venda de Lisboa por vira-casacas: “Lisboa chora agora, não há filho teu que não te venda”. E não parava gente de chegar, incluindo estrangeiros curiosos que, espera-se, terão aprendido alguma coisa sobre a música portuguesa contemporânea.
Do disco homónimo para Primavera, de O Sol Voltou; com uma letra a lembrar a poesia de Daniel Faria, Severo arrebatou a plateia e relembrou-nos porque é que merece estar no topo dos nossos cantautores. Ainda que despida dos arranjos de estúdio, a quebra de Cedo ou Tarde, um dos seus mais recentes singles, passeou classe e foi um lembrete de que o novo disco já tarda, que com aperitivos destes a fome sonora é muita.
Mais tempo para tocar merecia Luís Severo, mas com o que lhe deram fez muito. Outra coisa dele não seria de se esperar.
Como também em Algés há sobreposições de horários, vimo-nos obrigados a ir para o vizinho palco Heineken registar a estreia (finalmente) em Portugal dos Bright Eyes, banda de Conor Oberst, cantautor norte-americano que, para os conhecedores, dispensa apresentações e que tem direito a texto próprio.
Amyl and the Sniffers – palco Heineken
Já se pode dizer que os australianos têm autorização de residência em Portugal, que desde 2023 que não falham uma passagem festivaleira por cá (ainda no ano passado os vimos no Primavera Sound Porto), para mais tendo Cartoon Darkness (2024) para apresentar. Amy Taylor e cúmplices vieram cá passear os mullets, os riffs e a javardice pós-contemporânea que têm na guelra perante uma plateia muito bem composta.
Continuadores da tradição do rock para camionistas à australiana dos Rose Tattoo e Cold Chisel (falta-lhes outro músculo para serem equiparados aos AC/DC) e do punk dos também compatriotas The Saints, é com galhardia que proclamam que querem é entrar no pub que tem um segurança chato (Security). Pontos extra para o menino dos anos (que teve direito a uns parabéns de todos os presentes), o baterista Bryce Wilson, devidamente equipado com uma camisola do bicampeão nacional.
Fossem um carro e os Amyl and the Sniffers seriam um Datsun 510 kitado com um pedal do acelerador lubrificado até dizer chega e numa quinta a fundo. Se Balaclava Lover Boogie é aquilo que a banda concebe como uma canção de amor, os versos de Chewing Gum “I’m the sneaker on the athlete, sometimes my soul’s worn thin” são o desvendar de um manifesto existencial. A total ausência de filtro comanda as hostes, a começar pela língua de fora de Taylor por dá aquela palha.
No entanto, nem só de javardice ou de Foster’s gelada vive o cancioneiro do quarteto de Melbourne. Knifey é um grito (inspirado por femicídios mediáticos na Austrália) com sotaque australiano contra a insegurança e o assédio vivido pelas mulheres, quer venham de um concerto ou queiram dar uma volta no jardim – e a solução é uma faca no bucho dos agressores, que mais vale ser-se julgada por doze do que carregada por seis num caixão. Tudo isto arreigadamente interpretado pela banda, com destaque para Amy Taylor.
Até ao final, os australianos concretizarem a sua conquista do público (e talvez mais uma vinda a Portugal) de Algés e terão deixado boa impressão em mais uns milhares, porque as guitarras ainda continuam a cativar nestes tempos.
Muse – palco NOS
[Nota: por limitações impostas pela banda não foi possível fotografar o concerto]
Um mar de gente para ver o trio inglês confirmava que, se este último dia do festival não estava esgotado, para aí caminhava. Contratação de última hora para substituir os Kings of Leon, é bem possível que a sua vinda tenha resultado em mais bilhetes vendidos do que se os norte-americanos se tivessem mantido no cartaz, dado que a sua popularidade em Portugal é uma relação de sucesso com um quarto de século, desde a estreia no Festival Ilha do Ermal em 2000 (lembram-se dele? Os Nickelback lembram-se, lamentavelmente). Convém ainda lembrar que o trio esgotou o seu dia de NOS Alive há precisamente dez anos (só aí já tinham onze actuações por cá).
Os Muse são sobreviventes da música popular britânica. Aparecidos já depois da britpop, começando a carburar quando o nu metal dominava o espaço mediático (e o rock alternativo passava por mais uma transformação) e consolidando-se durante o auge dos horrores do indie do aterro britânico, hoje em dia são garante de enchente e de execução a raiar o irrepreensível, não obstante o azeite ser difícil de evitar.
Sem demoras, Matthew Bellamy, Chris Wolstenholme (equipado com uma camisola de Diogo Jota) e Dominic Howard começaram a dar alegria ao povo mediante um alinhamento de êxitos e mais êxitos. Falsetes, solos e toda uma gama de guitarras e baixos com mais cordas do que o costume e pads de MIDI, que não nos falte nada. Se o barroquismo rockeiro pagasse imposto, os Muse estariam em apuros com a Autoridade Tributária.
As comparações com os Queen são descabidas e não o são pela falta de bigodes nos Muse. Por muito que a mítica banda esteja no som do trio de Devon, estes desenvolveram, com mais ou menos produto das oliveiras em cima, uma obra própria, com uma certa obsessão por apuro técnico. Se os Queen acompanharam o respectivo tempo quando fugiram do rock e fizeram uma Radio Ga Ga, os Muse preferiram ser forasteiros em relação às tendências e assim se têm mantido.
O uníssono de milhares durante Plug In Baby e Time Is Running Out (faltou Dead Star) é mais uma prova da popularidade esmagadora dos Muse. Os falsetes de Bellamy são a palavra divina e o público bebe avidamente cada acorde, cada solo e cada tentativa que os Muse levaram a cabo de redefinir o rock à sua maneira.
Mais um capítulo de um enlace Portugal-Muse que durará por muitos e bons anos.
Deixámos a rememoração de Charles Bronson e sua harmónica em Once Upon a Time in the West, que serve de introdução de Knights of Cydonia, e fomos verificar se Erol Alkan estava a rebentar com o PA do palco Clubbing (estava) e se os Foster The People conseguiram arrastar muito público para a sua beira no palco Heineken (conseguiram). O que não lograram foi impedir que os Muse roubassem as atenções uma derradeira vez lá do outro lado do recinto quando terminaram o seu concerto com fogo de artifício (o rock a copiar a pop, que Dua Lipa fez exactamente o mesmo no ano passado).
Nine Inch Nails – palco NOS
[Nota: por limitações impostas pela banda não foi possível fotografar o concerto]
Os (para nós) verdadeiros cabeças-de-cartaz deste terceiro dia de festival contaram com uma plateia menos cheia de gente do que os Muse, mas com uma percentagem de fiéis melómanos superior; basicamente, substituiu-se uma data de gente com uma t-shirt com um logótipo de banda emblemático por outra data de gente igualmente ataviada.
Durante muito tempo banda unipessoal de Reznor (salvo necessidades de pessoal para o palco), os Nine Inch Nails continuam a ser a personificação sónica deste. Se a entrada de Atticus Ross e a estabilização da formação ajudaram a consolidar a banda, quando se fala deles fala-se de Trent Reznor e da carta branca que tem de cada vez que grava ou que entra em palco. Também em Algés assim foi.
Liderando uma banda de culto e qualidade que atrai público de ouvidos diversos, Reznor não se comporta em palco como uma vedeta macambúzia e não aparenta, de todo, ter feito sessenta anos este ano, que tipos com metade da idade dele ficariam de rastos com as exigências de um concerto como este. Artisticamente, teve ainda o mérito de (sobretudo nos primeiros registos), sendo a banda discípula dilecta de Nitzer Ebb, Throbbing Gristle e Ministry, tornar a porrada sónica industrial acessível sem a tornar num abastardamento.
Como arranque, Somewhat Damaged soou como um primeiro golpe profundo e uma premonição de que a máquina Nine Inch Nails não tem ferrugem. A fidelidade ao estúdio de Wish ficou-se pelos 95%, que a distopia apocalíptica do videoclip deu lugar a mais peso e a um daqueles momentos em que se sabe que o arraial vai ser de arromba. A voz de Reznor mantém-se inalterada e a actual composição do grupo concretiza um poderio imparável.
Envolta em sombras e fumo qual mito sebastiaNINista, a banda não nos dá tréguas neste impressionante quarteto de abertura: depois de uma arrebatadora Mr. Self Destruct veio uma March of the Pigs de fazer corar a de estúdio em toda a sua agressiva plenitude e levantou (ainda mais) a plateia mais central. Para respirar um pouco houve Piggy (alguém que dê leitão ao Reznor, que vemos aqui um padrão), que é sempre um momento de acalmia no meio desta tormenta.
A ajudar ao monólito sonoro estão não só o mago Atticus Ross, mas também uma secção de ritmo inexcedível como a de Alessandro Cortini e Ilan Rubin, este uma casa das máquinas sem piedade e pedra angular em tudo o que se passa diante de nós.
Reznor é uma figura de proa da música popular ocidental dos últimos trinta anos (na conversa com a plateia diz que só escreve canções quando está chateado, para ver se melhora da neura), que ninguém fique com dúvidas desse facto. A sua dinâmica tanto o levou a compor canções como Closer (fidelíssima ao estúdio) e, ainda nessa fase da carreira, a criar bandas sonoras que engrandeceram ainda mais a obra de que fazem parte, como fez em Quake, videojogo que marcou uma época.
Estar no meio da fumarada, das sombras e da violência auditiva do concerto ajudou a transformá-lo num túnel metafórico como os daquele jogo. O assalto aos sentidos prosseguiu com Reptile, aqui sem a lama da edição de 1994 de Woodstock e mais rockeira do que a imortalizada em The Downward Espiral (mas continuando a soar ao futuro), valendo-se do entrosamento formidável entre Reznor e Ross – passe o chavão, se há gajo que consegue criar paisagens sónicas dignas desse nome é mesmo este.
A lealdade às versões de estúdio sofreu novo abalo com as interpretações de Copy of A (Stereolab mas com cabedal a mais) e The Perfect Drug (composta para Lost Highway do saudoso David Lynch). Envolvimento de guitarras de Reznor e Robin Finck, Rubin a assegurar o sprint rítmico e, no caso desta última, sério candidato a momento de todo o festival, que coisas destas (extremamente dançáveis ou não passassem doze anos de certo set neste festival) são mesmo a droga perfeita.
Como “complemento” e mercê do momento político dos EUA (“gosto muito disto por aqui e ainda nos mudaremos para cá”, lançou; Cortini já cá vive, de resto), uma grande versão de I’m Afraid of Americans, de David Bowie. E, para não nos esquecermos de que a banda é mesmo colaboradora de alto gabarito, dois últimos golpes: Burn (da banda sonora de Natural Born Killers) e The Hand That Feeds.
O pódio e menções honrosas desta edição estavam já praticamente decididos e os Nine Inch Nails, o nome para nós mais apelativo (até porque quem escreve estas linhas não os via desde 2009, num concerto igualmente fenomenal em Paredes de Coura), alcançaram exactamente o que era esperado deles: uma medalha.
Não temos medo de norte-americanos e não precisamos de qualquer droga, só temos medo é de Nine Inch Nails nunca mais cá venham.
Não, não desdenhamos de Hurt (para além do gosto pela versão original dos Nine Inch Nails, este escriba agradece ser fã de country a gente como Johnny Cash), mas a curiosidade em ver Future Islands (e de evitar a falta de lugar dentro da tenda do palco Heineken) obrigou-nos a uma derradeira piscina recinto fora para ver a banda de Samuel T. Herring e companhia a hipnotizarem a plateia e pô-la dançar.
Future Islands – palco Heineken
À chegada ao destino, deparamo-nos com um palco Heineken a abarrotar para ver os Future Islands, quarteto de Baltimore que, pelo que se via, já tinha a plateia na mão. A terminar aquela que para nós continua a ser a sua melhor canção, A Dream of You and Me, todas as vicissitudes da banda estavam lá: synth-pop floral a apelar à dança e um vocalista distinto na pessoa de Samuel T. Herring.
Mesmo já se estando em horário de after, a música dos Future Islands não é apenas de festa desgarrada. Uma belíssima interpretação de Light House, tema de Singles (disco que levou a banda a tudo o que é canto, muito por isto) sobre pensamentos suicidas, deu um toque de sobriedade à actuação (se há letra que Herring sente, é esta).
Com todo o vigor de um tribuno que nos tenta convencer da legitimidade das suas ideias, Herring canta, berra, grunhe, contrai os braços como quem está a puxar ferro imaginário, corre e salta pelo palco de uma ponta à outra e fita o público com olhar cortante de quem se prepara para avançar sobre nós.
A introspecção continua a ser tema recorrente no repertório da banda, que Give Me the Ghost Back (de People Who Aren’t There Anymore, lançado no ano passado) é outra incursão por inquietações existenciais (“esta é sobre coisas que me tiram o sono”). O mesmo se diga de Ran, durante a qual Herring, conjugado com um jogo de luzes que mais parecia o de um interrogatório policial, quis encarnar Conor Oberst umas horas antes e nele se viam todas as dores da existência. Se o som da banda é redondo (por vezes demasiado, que o baixo à Peter Hook e a batida à OMD são evidentes), que não se duvide da sua entrega em palco.
Deixar a cartada de Seasons (Waiting on You) para o fim seria sempre bem jogado quer o concerto corresse bem ou mal, mas a dita canção caiu muito bem e demonstrou que o grupo de Baltimore não perdeu fôlego nos onze anos desde que Singles saiu. Momento triunfal.
Diz-se dos Future Islands que quando se ouviu uma canção deles já se ouviu todas. De certa maneira assim é, mas quando se tem um vocalista que é a personificação da expressão “suadouro exaltado” (proferida precisamente sobre um concerto deles por cá há uma década) já dá para um mui decente after. Sobriamente cumpridores, anunciaram que se avizinha um período de inactividade e que daí a poucos concertos iriam para o descanso. Foram eles e fomos nós, que assim fechámos o festival.
No cômputo geral, o balanço da edição é positivo. Voltámos a ver Nine Inch Nails e St. Vincent muitos anos depois da última vez, testemunhámos a notável estreia de Bright Eyes por cá, conferimos que vêm aí coisas boas de Luís Severo, confirmámos que os Justice continuam em altas e que a pop de nomes como Benson Boone e Olivia Rodrigo move multidões e mantém um festival dito grande vivo, relevante e vai ajudando à sua sustentabilidade financeira (em particular num evento que tem a quantidade de público estrangeiro que tem) – dois dias de lotação esgotada têm muito valor, mas o futuro trará desafios.
Algés continua com graça. Até para o ano, Alive.