No segundo dia da edição de 2025 do NOS Alive fomos brindados com revivalismos – nas guitarras e na electrónica – e por uma fera indomável na pantomina de guitarra em punho. Com menos público do que na noite anterior (efeito provável do cancelamento de Sam Fender, que estava no nosso roteiro de cobertura), esgotadíssima à conta do fenómeno Olivia Rodrigo, ainda assim foi possível testemunhar actuações dignas de memória nesta sexta-feira à noite em Algés.
Durante a primeira “patrulha” pelo recinto, Girl In Red (que vimos no ano passado em Coura), projecto da norueguesa Marie Ulven Ringheim, ia fazendo mexer os presentes através do seu indie aparentado com power pop. Também as suas dúvidas existenciais (“será que as minhas canções são clássicos?”) e auto-flagelações (“sei que vocês também me odeiam porque venho para cá fazer vida de turista”) iam saindo pelo PA do palco NOS.
No que dependia do público (ainda escasso para a dimensão do espaço), o refrão com trava-línguas de we fell in love in october sacou uma ovação tal que ou era já certa quantidade de cerveja a falar ou então a norueguesa tem já um clássico no seu repertório – ou dois, que também i wanna be your girlfriend teve direito a coro geral. A partir daí, não tendo muito mais para dizer, lançou-se ao crowd surf porque só se vive uma vez mas toca-se várias vezes em palcos principais de festival grande.
A romaria, essa, não pára. Filas para isto e para aquilo e grupos de britânicos em despedidas de solteiro (in casu, com camisolas do Newcastle a distinguir o grupo), a chamada stag Party à inglesa ou, para nós, a grand tour dos lads.
The Teskey Brothers – palco Heineken
A banda dos irmãos Josh (guitarrista e vocalista) e Sam (guitarra) Teskey assinou o primeiro capítulo dos revivalismos deste segundo dia de NOS Alive. Emulando nas guitarras John Mayall e na voz Charles Bradley e Wilson Pickett, mostram logo a costela saudosista dos blues e da soul (aqui como a colega de Commonwealth Brooke Combe) que não pretende fazer futuro, mas antes prolongar o passado quando sacam, à primeira música, de uma versão de I Love the Woman de Freddie King. Presentes todos os trejeitos dos blues: escala típica de doze compassos e lamentos da alma vertidos no timbre e na letra.
Nesse registo chegou a primeira música original do alinhamento, Pain and Misery. Josh Teskey esganiçou-se do fundo das goelas, as guitarras carpiram e os arranjos de sopros (no total, um septeto em palco para cumprir com os preceitos da tradição) tiveram todo o acerto exigível. Inovador? Cheio de rasgo? Nem por isso, mas competência em palco não faltou.
Para refutar eventuais críticas de que o septeto de Melbourne só veio tocar baladas seguiu-se Man of the Universe. O manifesto de apatridia do gajo desprendido da letra foi, pelo menos no que respeita à parte instrumental, do agrado de quem enchia a plateia do palco Heineken.
O piloto automático estava configurado e a banda australiana continuou pela estrada que tinha as faixas dos blues e da soul de olho azul. Com o público claramente agradado, é de sublinhar que os australianos receberam maior reconhecimento dos estrangeiros da plateia do que dos da casa, à semelhança do que sucedeu com Nathaniel Rateliff & The Night Sweats no ano passado. Jogar pelo seguro ainda faz sentido.
Justice – palco NOS
[Nota: por limitações impostas pelo artista não foi possível fotografar o concerto]
Um pouco de negrume e umas batidas tramadas por cima nunca fizeram mal nenhum e foi isso mesmo que os Justice (para quem tiver dúvidas quanto à pronúncia do nome: tanto faz se é à francesa ou à inglesa) vieram distribuir ao NOS Alive. A dupla francesa é dos nomes com mais relevo do cartaz e segue uma linha (já com alguns anos) de incluir nomes grandes da electrónica no cartaz, como sucedeu em 2019 com Chemical Brothers.
A escuridão e o fumo em palco que antecederam a actuação anteviam um valente “bota que tem” de revivalismo da disco e da electrónica francesa de noventas com a estética deste século. Com efeito, o biqueiro inicial de Genesis deve ter dado origem a muito arrepio na espinha; é uma das provas de força dos franceses desde que irromperam com Cross, disco de estreia que demonstrou cabalmente que aqueles eram bem mais do que meros discípulos acríticos dos Daft Punk, de Étienne de Crécy (ainda há uma década por ali passou) e dos Cassius. Numa plateia que por um lado deveria ser maior (dado o estatuto do duo), mas que por outro se manteve num número saudável de pessoas para que a pista não fosse um entupimento pegado, a sucessão deste autêntico primeiro andamento acabou em beleza com uma remistura de Phantom II da autoria de Soulwax.
Em teoria, uns tipos que passam remisturas de outrem do seu próprio material sem vergonha nenhuma e que repetem as suas próprias composições deveriam era ser escorraçados como fraudes, mas aqui na prática tudo encaixa maravilhosamente. Por falar em repetições, a primeira da noite foi a da impressionante Generator, malha do recente Hyperdrama (de 2024, ele próprio um retorno às origens sónicas do grupo) cujo jogo de luzes deixou as cruzes para trás e deitou focos ao céu como que em busca de bombardeiros – quando, na verdade, as bombas estavam ali mesmo, porque eles são nossos amigos (não podia faltar essa).
Por falar em cruzes, parte do assunto da dupla parisiense é a sua proximidade à iconografia do metal – e por vezes ao peso do mesmo. Contudo, em 2025 as cruzes foram para um discreto segundo plano, mas o peso continua lá: o combo Incognito-DVNO manteve a plateia da pista de dança unida no baile furioso.
No material estritamente original, o concerto é o cruzamento do som da Ed Banger com a herança elegante da french touch em todo o seu esplendor. A batida rejuvenescida da disco a impulsionar o movimento de todos os que nos rodeavam, que iam desde conhecedores da coisa até aos freaks, passando por pessoas aparentemente normais que estariam a ter uma quase-epifania.
A dupla, praticamente só iluminada por trás e debruçada sobre o material – analógico e digital – como dois capitães Nemo levando este Nautilus a bons mares, levou a cabo a melhor passagem da noite com o crescendo tenso de Stress, que hoje em dia a única controvérsia que poderá levantar é a de ficar de fora de um alinhamento. Todavia, nem tudo foi nota dez: passar apenas pelos samples de Waters of Nazareth (para este escriba a melhor música dos franceses) não se faz.
Pela segunda vez na noite e para fechar, o verso “do the D-A-N-C-E” ressoa pelo recinto, numa versão supostamente original mas ainda assim já diferente da que andou por muitas colunas e auscultadores em 2007. Mesmo terminado o concerto, quando uma pessoa vestida de cone de trânsito à nossa frente pede mais, é porque a coisa foi digna de registo ou, melhor dizendo, DVNA.
Como já não vamos para novos, havia que descansar qualquer coisa para assimilar a pancada que foi Justice. Após o intervalo e cerca de quinze minutos depois da meia-noite, era a vez da martelada de Anyma, produtor (e nepo baby, dizem as más-línguas) ítalo-americano daquilo a que se pode chamar house progressivo, nem que seja porque boa parte do seu material se desenvolve ao longo de largos minutos e paralelamente a projecções sofisticadas de vídeo.
O resultado foi o de transformar o palco principal numa espécie de “beach party” versão 2025 na qual o chão tremia. Eish ke fdp de festa, a curtir Anyma no meio do recinto tudo descalço e so de calçoes, e no fim ja umas 7 da manha foi tudo mandar um mergulho ahaha foi brutal msm! Noites de Algés sao as melhores crl. [quem sabe, sabe; if you know, you know]
St. Vincent – palco Heineken
Pelo seu percurso, Annie Clark é uma das grandes. Através de St. Vincent, o seu veículo artístico, já percorreu várias fases criativas, colaborou com nomes como David Byrne e aterrou (com estrondo, como se verá adiante) agora em Algés para mostrar All Born Screaming, disco do ano passado, sem esquecer material fundamental da sua carreira.
Nada irresponsável começar com uma versão arrebatadoramente darkwave de Reckless, faixa do aludido mais recente álbum. Esta já não é a Annie Clark de outrora; já não é a mui promissora cantautora tímida e de voz trémula dos tempos de Actor. Esta Annie Clark tem uma voz de comando e o regimento de Algés forma à sua frente.
Não sendo obviamente comandante de ficar na retaguarda, mas antes de estar na vanguarda de arma em punho, pega na Ernie Ball (modelo criado por e para si) e regressa à obra-prima de álbum que é Masseduction e à sua Fear the Future. Primeira incursão na carreira pelos caminhos que não deram primazia à guitarra, aqui é uma monstruosidade (com o precioso contributo de Josh Falkner na guitarra e de Robert Ellis no baixo) e, tal como Broken Man logo a seguir, é mais pesada sonora e emocionalmente do que muito metal, a fazer lembrar os melhores momentos de uma Chelsea Wolfe. Cheios de St. Vincent, não tememos o que aí virá.
Ali do Clubbing vem ruído que ameaça a qualidade de vida aqui neste palco? St. Vincent e comparsas lidam com isso pegando numa Los Ageless que abafou as batidas invasoras e arranjou uma pista de dança impromptu. Já que se estava com o gás todo nesta madrugada, Clark lembra que é uma e tal da manhã e pergunta se a distinta plateia já mandou as drogas todas para se manter acordada – e para as partilharem consigo, já agora, até porque havia uma Dilettante para interpretar.
Liberta de grilhetas, vai fazendo do concerto um conjunto de metamorfoses: de auspícios de outra estirpe na interpretação até a uma presença de palco que por vezes assume contornos de comédia de improviso, nem Clark nem a competentíssima banda perdem o foco. Em Pay Your Way in Pain, junta pantomina e art pop com uma classe como não se via naquele palco desde que Grace Jones ali passeou o seu Evangelho em 2019.
Flea marca o momento no qual concluímos que o material de All Born Screaming resulta admiravelmente ao vivo, não há que temer um declínio artístico do projecto. Perfeitamente entrosados, Clark, Falkner e Ellis levam a execução da canção para o quadro de honra de momentos desta edição da romaria de Algés.
Numa versão magistral de New York, Clark tortura um segurança ao colocar-se às suas cavalitas e junta-se ao público para contrastar com a solidão da letra – “New York isn’t the same without you, love” – num momento pop com um cunho que só ela sabe dar. Mais um ponto alto do concerto e do festival.
Por fim, All Born Screaming. Última transformação sónica (num concerto que foi isso mesmo, uma transfiguração em palco em relação ao estúdio) da noite, num sóbrio dream pop daquele último memorando sobre a importância de ser Annie Clark, devidamente correspondido pela plateia com uma derradeira e enorme saudação naquela que, feitas as contas dos dois primeiros dias, foi a melhor actuação do festival.
Esta fase de St. Vincent de não querer saber de limites e de fazer o que lhe der na veneta faz-lhe imensamente bem. E com isso fez história nesta edição do festival.
St. Vincent deu-nos a chave de ouro com que fechámos este segundo dia do NOS Alive. De revivalismos mais evidentes do que outros se fez um dia que a princípio parecia desequilibrado e a pender para o matador de vibes (os batidões de Anyma não foram mais poderosos do que a pantomina explosiva de St. Vincent), mas as actuações de Justice e St. Vincent fizeram a remontada de que se precisava. Siga para um terceiro e último dia que se adivinhava preenchido.