Se na vida há que duvidar das pessoas demasiado perfeitas e suas capacidades (geralmente acabam numa derrocada sem fim), há quem tenha dons que as catapultam para lá dos pares. Há quem tenha o dom de cantar os nossos fracassos monumentais e os progressos parciais com uma mestria invulgar, sendo capaz de conjugar o som certo com as palavras certas e daí edificar algo intemporal. MJ Lenderman (iniciais de Mark Jacob e não de Michael Jordan; aqui para os amigos é “Mário Jorge”), cantautor norte-americano com ar de gajo que só quer tocar umas malhas, é uma dessas pessoas.
Relembranos que já no ano passado Lenderman tinha agraciado Coura ao actuar com Wednesday, o bandão de que agora é “só” membro de estúdio. Para os mais atentos em 2024, os singles que tinham já saído de Manning Fireworks indicavam uma evolução admirável na carreira, esta já então profícua (aquele é o seu quinto registo, nos quais se inclui um ao vivo) mas a deixar adivinhar a grandeza que aí viria por parte do já bardo de Asheville, Carolina do Norte.
Lenderman é um dos herdeiros de uma longa linha de autores na música de guitarras norte-americana do último meio século – da country e da folk até ao rock alternativo. Umbilicalmente ligado a Waylon Jennings, Townes Van Zandt e Neil Young (espécie de avós artísticos) e a nomes como os Uncle Tupelo e os saudosos David Berman e Jason Molina (pais artísticos, digamos). Não vale a pena falar em maturidade, que não só é lugar-comum, como acaba por ser irrelevante e porventura insultuoso. Lenderman já tem anos disto e desde o disco homónimo (2019) que demonstra que tem queda para cantautor de excepção – os arranjos de saxofone de Grief são disso exemplo.
A sua voz por vezes assemelha-se à de Molina e o teor das letras quando críptico lembra-nos Berman e Stephen Malkmus e quando expressionista leva-nos para Craig Finn. Sonicamente tudo se ouve ali, desde Superchunk a Pavement, passando por Tom Petty e pelos slacker-mestres J Mascis e Kurt Vile, com um travo aos sons a Sul da Linha Mason-Dixon, em especial os Drive-By Truckers e a pedal steel guitar, pedra angular da country, bem audível em boa parte do seu repertório. Também digna de referência é a influência vinda do Norte da fronteira E.U.A.-Canadá, que também os The Band estão no ADN artístico de Lenderman.
A invulgaridade de Lenderman começa logo na escolha do primeiro lance da partida: uma versão muito peculiar de Dancing in the Club dos This Is Lorelei, óptimo projecto de Nate Amos que ainda há pouco tempo vimos no Primavera Sound Porto. Tendo em conta de que o nosso Mário Jorge é fã de basquetebol e de luta livre, estabeleça-se: game recognizes game.
Que raio se pode dizer de Wristwatch, canção fundamental da sua obra (e do ano passado)? Ficamos quase sem jeito quando os primeiros acordes nos atingem e a pele de galinha se desenvolve. A progressão dos acordes e o timbre da Les Paul de Lenderman são suficientes para nos deixar a todos na maior das devoções – e, bom, até os passos deste nos lembram Neil Young.
E tudo isto sem sequer arrancar um magnífico primeiro refrão: “Well, I got a beach home up in Buffalo/ And a wristwatch that’s a compass and a cell phone/ And a wristwatch that tells me you’re all alone”. Quando se enaltece uma casa de praia onde estas não têm valor e quando um relógio é simultaneamente bússola moral e amorosa estamos em presença de material tragicómico que só gente como Lenderman consegue cantar – e fá-lo com a mesma aparente descontracção com que atira um “how ya doin’?” de saudação ao público.
Quem nos conhece sabe que, não obstante o sentido de humor deste escriba sobre bandas de qualidade, promover artistas a deuses não é mesmo para nós; são gente de carne e osso, com virtudes e defeitos (tantas vezes estas são disfarçadas pelas primeiras até ao dia em que rebenta a bronca ou o talento se esfuma). Todavia, há que dizer isto com frontalidade: quanto mais ouvimos gente como MJ Lenderman (e os Wednesday, já agora), mais nos afastamos da turba abrutalhada que diz que o rock está morto e que falta testosterona na música de guitarras eléctricas actual.
Vai ser difícil voltar à versão de estúdio de Rudolph após a de Coura; seja do incenso que ardia em cima dos amplificadores, dos ares da zona, da inspiração nesta noite em particular ou da Les Paul, está toda a gente da banda determinada a tornar o grande ainda maior. Com Kurt Vile no ADN da composição, Mário Jorge e comparsas elevam o nível da coisa, com aquela referência a Bob Dylan lá pelo meio a certificar o momento como fundamental do concerto.
Com efeito, Lenderman não está sozinho. Destaque para o outro guitarrista, Jon Samuels, que vive o momento como se não houvesse amanhã; responsável por muitos dos melhores acordes e solos do concerto, partilhou com aquele a mensagem de que este não seria um concerto de explosões típicas da rockalhada, mas, ao invés, uma introspecção sobre implosões morais e emocionais de vencidos da vida pontilhada por acordes que deitam até uma montanha abaixo – ou, dito de outro modo, de manejar um imenso fogachal que arde sem se ver (ao contrário do fogo que infelizmente se via pelo País).
Também em Toontown se constatou esta evidência. Novamente, a versão em disco ficou para trás e deu lugar a uma monumental investida de ruído, com o obséquio de Lenderman e Samuels. Em vez de um concerto que poderia ser uma procissão de lugares-comuns e fórmulas (dada a linhagem que Lenderman prossegue e se fosse artisticamente despido de talento e preguiçoso), estamos perante um desfile de personagens tragicómicas e de acordes bem sacados numa execução para lá de exemplar, marcada por um peso sónico que reflecte a importância da noite.
A vivência pós-contemporânea não está fácil e tem muito para nos deixar de joelhos. Para o narrador de On My Knees a vida é para ser passada com os joelhos bem assentes no chão, seja porque as pessoas se passam dos carretos em férias (“‘Cause I know goin’ on vacation
brings the worst out of everyone”) ou porque quando a cabeça não tem juízo o corpo, a sanita e o Senhor é que pagam (“Oh, wherever you find me, you’ll find me on my knees”).
E enfim, She’s Leaving You. Mais uma prova cabal de que Lenderman opera muito acima dos confrades. Uma machadada nos idealismos do amor e na moral dos tipos endinheirados que compram guitarras caras para imitarem pateticamente os Clapton e bluesmen desta vida (mais o carro desportivo para disfarçar a crise de meia-idade), o seu esplendor sai do PA para os ouvidos da plateia e é devolvida pelo que sai das gargantas de quem está em completa êxtase – se não há Karly Hartzman para cantar o refrão, há dezenas ou centenas de presentes para cumprir.
Um refrão cujos versos são uma incursão num labirinto de Minotauro amoroso – “it falls apart / we all got work to do” – e inserido numa letra que é um desastre pegado de um falhado moral, é um ponto alto de tudo o que se viu em Coura nesta edição e em muitas mais. A haver um Ferrari diante de nós são as Les Paul e Telecaster de Lenderman e Samuels.
Para quem é fã de basquetebol (como nós e o artista), uma canção como Hangover Game só engrandece o alinhamento. Lenderman encarna Craig Finn e entrelaça duas sagas de outro MJ, o Jordan: a da celebração do contrato com a Nike e a do jogo cinco da final da NBA de 1997 contra os Utah Jazz. No que de mais próximo tem de uma jarda propriamente dita (a par de uma bem sacada SUV e aqui bem ampliada em relação ao estúdio), Lenderman conta-nos com toda a propriedade que, na verdade, não foram nem uma pizza envenenada nem uma gripe que puseram Jordan de rastos, mas sim uma ressaca. Afundanço para os MVP.
Para quem esteve atento, houve punhos no ar, sorrisos e palmas de admiração por um concerto genial; já para quem não prestou atenção a um grande aglomerado de versos e acordes, o veredicto foi bolçar alarvidades pelas redes sociais que “as canções são todas iguais” e que “parece que não quer tocar”. Voltando ao que interessa, a própria banda reconhece a apoteose: selfies e fotos do público para assinalar que, segundo um dos elementos, esta foi uma das maiores plateias da sua carreira. Toda a atenção foi merecida, que este homem é do Sul, carago.
Não foi pela pizza nem pela gripe, mas foi para concertos como este que fizemos centenas de quilómetros até Coura. Uma salva de palmas para todos os envolvidos.