Reportagem


Efrim Manuel Menuck

Um ruído crescente, sequencial e predador

Galeria Zé dos Bois

02/07/2018


Ladeado pelo​ saudoso André Mendes,​ famigerado​ líder da Amplificasom, editora portuense que o trouxe esta noite até nós,​ e na noite anterior ao Passos Manuel, na Invicta,​ e pelo companheiro de estrada durante esta tour, o norte-americano ​Kevin Doria, membro fundador dos barulhentos Growing, ​Efrim Manuel Menuck entra ​lentamente ​pelo pátio exterior​ da Zé dos Bois com a ​postura descomprometida e o passo descompassado de quem jantou bem e há pouco tempo​. ​O duo de estrangeiros desprende-se do promotor e senta-se uns metros ao meu lado, ​suspirando alto e ​puxando de mortalhas e tabaco de enrolar.

Quem ​olha assim, sob a débil luz dos candeeiros, para aquela figura desgrenhada, de roupa suja e rota e barba competindo no comprimento e rudeza com o cabelo, de olhos gentis e pensativos, não imagina no imediato que carrega consigo o legado histórico associado a uma das maiores bandas de sempre. Afinal, os Godpeed You! Black Emperor, para além de ostentarem um dos melhores nomes do meio, redefiniram em génese todo um género musical. No entanto, ali à mão de semear, a sua imponência passa completamente despercebida ao olho despido.

Não me vejo no mínimo direito de sequer lhe dirigir a palavra. Gostava de pelo menos lhe pedir uma selfie, eu que sou um jovem pedinte das redes sociais, mas temo pela sua natureza anarquista e o repúdio pela sociedade de consumo que o tornaram ínfame e fazem, afinal, parte da sua música. Oiço-o apenas rir-se baixinho de uma piada e queixar-se do cansaço, enquanto me levanto para pedir um fino no balcão e ocupar um canto confortável da sala, à espera que suba ao palco.

Em cinco minutos, o canadiano sucede em encher o aquário da ZDB de um ruído crescente, sequencial e predador. O ar condicionado está a funcionar apenas alguns passos atrás de nós, e no entanto, sentimos o ar ficar gradualmente mais rarefeito, sufocante. A tensão aumenta rapidamente e arrepia-nos a pele com cada camada de ruído sintético adicionada cuidadosamente ao loop; os primeiros samples, bases fantasmagóricas apoiadas em murmúrios gregorianos, entrelaçados na voz furtiva e lamentosa de Emuck, amaldiçoando o mundo lá fora, e fundindo-se na industrialidade pesada, a espaços aguda o suficiente para se equiparar à queda de mísseis, como se de uma premonição do apocalipse se tratasse, e ele o nosso profeta da desgraça.

Trata-se da faixa de abertura do novo álbum, mas podia ser também uma sinopse do cinismo inerente à personagem. Ao longo da sua carreira, e mesmo da sua vida, vemos em Emuck uma repulsa em relação ao estado do mundo, desde o político e social ao ambiental, e que inevitavelmente se faz transbordar para a sua música. A premissa de um fim de mundo anunciado e provocado pela completa falta de consciência e compaixão humanas, não temido mas antes desejado, num esforço para voltar a começar do zero, são espectros curiosamente transmissíveis e reconhecíveis nas paredes poeirentas que desenha nas suas composições, seja a solo ou acompanhado de banda. Sozinho, no entanto, não assume uma postura de revolta e de luta, mas sim de lamúria pessimista. Um agoiro inevitável.

​Um sentimento que se faz prolongar através de uma pulsação incessante, que nos agarra pelo coração​, embalada por samples de guitarra sinistras e envolventes, como maresias que nos puxam de e para os drones. É um sufoco emocional, carregado de um tormento auto-imposto quase palpável — uma inquietação existencial de decifre difícil e ao mesmo tempo praticamente palpável, que implode e desagua no vazio vibratório e reverberante de Hart_Kashoggi. Sabemos de antemão, da apresentação do álbum, que esta faixa se assume como a linha meridiana do mesmo — o breve relacionamento amoroso entre uma famosa apresentadora de televisão norte-americana e um socialite árabe com ligações familiares ao tráfico de armas, que sobreviveu na memória de Emuck ao longo das décadas como o resto de uma pastilha elástica sob a mesa de um qualquer colégio, e que emerge aqui como na sua consciência, um farol de luminosidade e calmia no meio do caos, o amor como o seu símbolo, sobrevivendo e despoletando até nas condições mais adversas e improváveis.

E o vazio é quebrado sobre esta premissa, explodindo em ritmo acelerado ao longo de A Lamb in the Land of Payday Loans, possivelmente o ponto mais interessante até aqui e curiosamente aquele que nos aproxima mais das raízes do rock progressivo do autor. Cinco minutos de guitarras poderosas e abertas que nos fazem suar, apoiadas na caixa rítmica constante e apontadas ao épico como armas. Ouvimos sirenes urgentes sob a voz do autor, gritada a plenos pulmões rumo a uma fuga sem destino, ele o condutor e nós os passageiros, para longe dos predadores do sistema e de todos os sistemas.

Após a tempestade, advém a calmia. Assistimos com expectativa à queda do ritmo, ao despir das presunções, ao abraçar do microfone. Por momentos a poeira parece submergir, e conseguimos distinguir no palco as duas brilhantes orbes que são os seus olhos reflectir o brilho das luzes da sala. Ganhamos, ao longo do quarto de hora que se segue, a nítida imagem de um Emuck só e contemplativo, desenhando os seus pensamentos e transtornos na espiral de drones que volta a equilibrar, estes muito menos violentos, confortáveis, abraçando a sala numa espécie de terapia de grupo, num choro colectivo e catártico. “I learned when I was very small how to breathe through pain; and I never did breathe normal again.” E o canadiano reflecte sob a voz delicodoce sobre o amor, e a família, sobre a sua própria infância, e a infância daqueles que virão substituí-lo — de forma mais proeminente, ainda que indirecta, contempla a beleza e pureza dos mais novos, e o mundo que deixará ao seu próprio filho e à sua geração, entre a esperança e o desespero.

Galeria


(Fotos por Ricardo Almeida)

sobre o autor

Sergio Neves

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