Perante aquilo a que assiste por aí, não é o sonho uma constante da vida, mas sim o pesadelo. A brutalidade destes tempos andava a pedir bandas que a sintetizasse em conformidade sónica (como o hardcore tão bem plasmou no seu som os anos Reagan nos E.U.A.). Mais incisivos no retrato do grotesco do que muita banda de metal extremo, os Chat Pile são uma dessas bandas. Após vários EPs e dois álbuns candidatos a disco do ano dos respectivos anos, finalmente deram um ar da sua (des)graça em solo nacional, estreando-se por cá no Primavera Sound Porto.
Na noite anterior, tocaram os “pais” artísticos da banda, os The Jesus Lizard. Desde o caos em palco até à ferocidade sónica, os Chat Pile são discípulos fiéis daqueles veteraníssimos do noise rock. E retratistas certeiros do aterro a que chamamos planeta Terra e do poço de desespero a que chamamos vida.
Compostos por Randy “Raygun Busch” Heyer (berreiro e comentário cinematográfico), Griffin “Luther Manhole” Sansone (guitarra) e os irmãos Austin “Stin” Tackett (baixo) and Aaron “Cap’n Ron” Tackett (bateria), todos usando pseudónimos, os Chat Pile são uma banda sem complexos. Se, como já se disse, são herdeiros de The Jesus Lizard (e Scratch Acid), também carregam consigo o legado sónico de maiorais como os Godflesh, Pop. 1280, Skullflower, Big Black e Shellac, adicionando-lhes a depressão e psicose dos Black Flag, em especial dos anos Cadena e Rollins.
Mas não se ficam por aqui. Manhole não tem peias em afirmar que é fã de nu metal (faz parte da geração que o teve como primeira referência musical, de resto); com efeito, as explosões em várias das canções da banda remetem para o que de melhor uns Korn ou Slipknot têm, aquela descarga prazerosa de alguns segundos que tanto entusiasma na adolescência como na idade adulta. A partir daí é a banda a trabalhar a agressividade da música pesadona em seu favor (e nosso, como se verá) e contra os nossos ouvidos (ainda mais do que nos demais, este foi concerto para tampões).
Desengane-se, porém, quem ache que o quarteto não tem sentido de humor. Algumas horas antes e em entrevista a bons amigos e confrades, confessaram que a sua música do dia era Mambo No. 5 de Lou Bega e assumiram que Return of the Mack de Mark Morrison (sabiam que nasceu na Alemanha?) é um single do caraças num álbum manhoso. Como se descobrirá no concerto, são também uns cinéfilos trolls.
No seu contexto, a banda de Oklahoma não poderia ser outra coisa que não uma arma de destruição maciça sónica. Num estado riquíssimo em matérias-primas mas desigual na distribuição de riqueza, passaram os primeiros anos de vida a descobrirem música nos parques de autocaravanas que serviam de casa aos amigos e, dada a localização geográfica da área, viram-se arredados de tudo o que fosse vanguarda artística, sendo salvos da exclusão pela televisão e pela Internet.
Falando em matérias-primas, o próprio nome do grupo reflecte a catástrofe: “chat” é calão para resíduo poluente resultante da exploração mineira e “pile” é um amontoado desse resíduo, como as camadas de peso em cima de quem ouve e vê a banda. Para além destes resíduos, há ainda toda uma indústria de vigarice de televangelistas e de vendedores de banha da cobra (por vezes confundem-se) que exploram a ingenuidade e necessidade de quem existe na vasta planície desoladora do Oklahoma, que por vezes parece um estado maldito (nem o texano Hank Hill pode com aquilo). De um lado a cruz e do outro lado a fábrica como bússolas de vida – não admira que haja muita raiva para destilar.
Em 1969 (curioso número), Iggy Pop e os Stooges punham-se de quatro a berrar que queriam ser os nossos cães. Em 2024, os Chat Pile proclamam em estúdio, via I Am Dog Now, que somos efectivamente cães: manipulados, extorquidos, humilhados, agrilhoados (incluindo a “trelinha” amorosa) ou viciados em qualquer coisa que nos pilhe a alma.
Já em 2025 repetem a mensagem à nossa frente, num primeiro golpe profundo, direitinho à jugular. Num mundo de extrovertidos e onde uma boa primeira impressão é fundamental para que ganhemos a confiança dos outros, se formos os Chat Pile avançarmos para o que virá a ser um dos concertos do festival (e do ano); já se formos um vigarista da televisão do Oklahoma como Don Lapre, a personagem central de Tropical Beaches, Inc., um sorriso e uma boa dose de aldrabice garantem-nos a engorda da conta bancária. E a morte macabra quando formos encurralados.
Na antevisão advertimos para a necessidade de fazer alongamentos antes deste concerto. Ao fim destas duas canções e da devastação daí resultante havia já quem estivesse meio dorido. O pit estava furioso e as vestes (literalmente) rasgadas, mas a banda nem um pingo de suor verteu. Quem sabe, sabe.
Raygun Busch, em vez de ser um trombudo armado em macho sem pingo de sentido de humor, apresenta-se só de calções; não como um Henry Rollins da Picheleira ou um Tarzan do quinto esquerdo, mas como um cinéfilo de voz grave que por acaso faz uma perninha num bandão.
Em praticamente todos os intervalos entre canções, nos quais o público aproveitava para recuperar o fôlego, Busch comentava sobre filmes rodados – total ou parcialmente – em Portugal. Deu o seu parecer sobre The House of the Spirits (o Alentejo e Lisboa fizeram de Chile), no qual incluiu o mérito das interpretações de Jeremy Irons e Meryl Streep, mas acertou ao lado quando disse que Indiana Jones and the Last Crusade “é um bocado mau” (falamos de um gajo que horas antes andava de boné da Criterion na cabeça e cujo gosto é abrangente). Retorquimos nós: é o melhor filme da série, pá.
Houve, ainda, menção especial de On Her Majesty’s Secret Service, um James Bond de 1969 protagonizado por George Lazenby e cujo fim é tudo menos de um Bond (não vamos spoilar). Busch pede justiça para o filme e aproveita para elogiar as paisagens que o filme tão bem destacou.
Não sendo novidade (a maioria da música pesada é isto mesmo, salvo umas canções sobre batalhas épicas), o pessimismo antropológico da banda é específico a muito do que se passa na terra natal. A melodia (?) cortante de Slaughterhouse é o cenário ideal para concatenar episódios à la Entroncamento que só acontecem numa terra esquecida por Deus (já por quem diz que O representa, ou não se chamasse o primeiro álbum God’s Country…) como o Oklahoma: a decapitação dolosa de uma trabalhadora num matadouro na localidade de Moore.
Os espasmos, saltos, corridas e espancamentos de bateria que temos diante de nós são a banda a tomar as dores do mundo, que, como diria Emil Cioran, o Inferno é uma actualidade. Um calvário sónico incrível, acentuado em malhões inacreditáveis como Why e Tape. A primeira, sobre o problema da falta de habitação (transversal a Portugal e aos E.U.A.), foi executada como um camião de dezoito rodas direitinho às nossas ventas, ao passo que a segunda envolveu-nos num thriller no qual não deveríamos ter aberto aquela porta (ou aquele vídeo imbecil nessa droga cibernética chamada Tik Tok).
Por falar em acidentes de viação, não poderia faltar a referência a Fast X, filme da série Fast & Furious que teve umas sequências filmadas por cá. Busch manifestou o seu gosto pela película enquanto se punha com uma diatribe sobre Vin Diesel e John Cena. Mais uma patada atómica dos Chat Pile na história do cinema, portanto.
Com os versos “it must’ve been a dream I was having, it must’ve been all inside of my head” começa The New World, a aterradora confirmação de que somos carne para picar, fungível e com um preço (em princípio baixo). Para este escriba, é a melhor rajada de Chat Pile, seja no refrão-bomba-de-hidrogénio ou na letra esmagadora sobre o peso da existência.
As gloriosas quebras de estúdio são aqui ampliadas a mil por cento e a riffalhada de Luther Manhole, conjugada com a química da secção de ritmo parente entre si na linha colateral, resulta numa devastação a que o pit dá boa réplica. Catarse, catarse, catarse.
Aqui há uns anos afirmámos que, se fosse vivo e fosse membro de uma banda, Diógenes faria parte dos Le Savy Fav, dada a completa iconoclastia do grupo. Perante um retrato de um pântano de mundo decadente e entrópico são os Chat Pile a banda de Emil Cioran.
Afinal de contas, aquilo que a banda do Oklahoma faz são breviários de decomposição com os amplificadores no volume onze. Se para o filósofo romeno o futuro aguardava para nos imolar, nesta memorável actuação cada canção e cada comentário serviram para nos ferver o sangue.
A única expectativa que se tinha antes da actuação do quarteto norte-americano era a de que esta seria mais uma para a categoria de “jardas históricas”. Em tudo o resto subverteram as expectativas que tínhamos deles. Mesmo tratando-se de um concerto sui generis num festival (elogiado pela banda, que disse que “no Oklahoma não há festivais destes, só mesmo o Gathering of the Juggalos“) que conta com patrocínios de entidades antitéticas ao underground, uma ensaboadela destas dificilmente seria possível sem este paradoxo, visto que, muito provavelmente, a banda não tem fãs suficientes neste rectângulo para justificar uma vinda em nome próprio (de onde nos encontrávamos, pelo menos metade do público era estrangeiro).
Funny Man é o math rock visto por quem leva tudo a eito. O ser gingão para os quatro de Oklahoma é saltitar num palco que aparenta estar armadilhado. Cap’n Ron dá-nos a melhor versão do seu ódio contra os pratos da bateria que, em tandem com o baixo do irmão (continuador de “Fieldy” Arvizu dos Korn), lideram todo o conjunto até novo rebentamento.
Para fechar a sessão de brutalidade, uma Dallas Beltway à medida de um público pós-contemporâneo e exposto aos perigos da pós-verdade. Busch elenca as malfeitorias reais e imaginárias de gente já morta por dentro como as personagens de The Hollow Men de T.S. Eliot, enquanto a banda nos chocalha os ossos uma última vez, contorcendo linhas de baixo e riffs de guitarra enquanto a bateria marcha por cima de nós sem piedade. Acabávamos de assistir àquele que, muito provavelmente, foi o concerto do festival.
Dali foi só dar umas dezenas de passos para o lado direito para ver os Deftones fecharem cabalmente a noite. Todavia, se estes tiveram o volume, os Chat Pile tiveram a intensidade. Não houve pai (nem um batalhão inteiro) para eles. Será que, finda a última nota, acordámos de um pesadelo? Voltámos a outro, isso sim.
Somos a confirmação da anomia social de Durkheim, os inquilinos na jaula de ferro de Weber ou hamsters bípedes correndo na roda até nos cansarmos de vez. Num mundo que mais parece uma versão contemporânea de uma pintura de Bosch mas, que olhando mais de perto, não passa de mais um cartaz publicitário de agiotas (legitimados pelas “autoridades de supervisão”) prontos para nos sugarem tudo, haja uma banda sonora de quem diga as verdadeiras verdades.
Arre.