Reportagem


A Place To Bury Strangers + Numb.er

O noise não tem rentrée.

RCA Club

01/09/2018


© Ebru Yildiz

O Verão já vai caminhando para o fim, os dias vão ficando mais curtos, a época de festivais relevantes vai fechando as contas e, como quem não quer a coisa e meio sem dar tempo para os melómanos descansarem, aparecem uns concertos que merecem destaque, como foi o caso da visita dos A Place To Bury Strangers ao bairro de Alvalade que, como sabemos, é o melhor de Lisboa. O trio de noisegaze de Brooklyn (agora com nova baterista, Lia Simone Braswell, antiga membro dos Le Butcherettes) veio cá apresentar Pinned (Dead Oceans, 2018) a Lisboa (RCA) e ao Porto (Hard Club), acompanhado dos “los angelinos” Numb.er, pares da mesma escola shoegaziana.

E foi este quinteto, ainda antes das 22h00, que animou o povo já presente no RCA – servindo a actuação de apresentação do seu primeiro álbum, Goodbye (Numb.er Publishing Designee, 2018). Uma banda competente, com ar de malta lá do escritório que faz uns jams (um dos guitarristas era a cara chapada de Todd Louiso, Dick em High Fidelity), cujo kraut-de-braço-dado-com-Bauhaus-e-Alien-Sex-Fiend, não tendo grande chama nem engenho, deu para entreter – não obstante a banda soar bastante mais interessante em estúdio do que ao vivo.

Em 2018, há algumas situações desfavoráveis a uma pessoa ou a um objecto, de entre as quais:

i) Ser treinado por um asno como o actual treinador do Sporting;

ii) Ser mulher em The Handmaid’s Tale;

iii) Ser garrafa de água nas mãos de Sousa Cintra (ontem e hoje);

iv) Ser guitarra eléctrica num concerto dos A Place To Bury Strangers;

v) Ser par de ouvidos e de olhos num concerto desta banda.

O rig dos A Place To Bury Strangers mais parece uma estação sismográfica do que um backline. Em boa hora assim é, que poucas bandas há que despejem tanta pancada quanto eles. Num tema recorrente na música popular, que é o de bandas que tanto voltam ao passado que se tornam formulaicas e apodrecem rapidamente, afigura-se que a banda de Oliver Ackermann (alquimista do noise e artífice de pedais na sua Death By Audio) se tornou, ao longo dos anos, numa reencarnação ainda mais potente dos The Jesus & Mary Chain – que também nos vieram ensurdecer (e de que maneira) este ano.

Ficámos que nem samorins quando levámos com bombardas pela primeira vez. Por entre tanta mudança brusca de ritmo e perante tanto poder – uma comparação possível será a de fazer um Grande Prémio do Mónaco à pendura com Ayrton Senna nos bons velhos tempos dos turbos na Fórmula 1. A violência sónica e visual forma os seus próprios corpos que nos espancam e tornam a atirar para a plateia. Ackermann e restante banda contorcem-se, mutilam os instrumentos – logo à primeira canção – e espancam os suportes de microfone.

O conceito de power trio assenta que nem uma luva nos A Place To Bury Strangers; já assentava há dez anos e também há cinco anos, aquando da primeira vez que os vimos, no Centro Cultural do Cartaxo. Sucede que agora, em 2018, é um trio completo: Ackermann domina o palco, nele serpenteando e arqueando o corpo, mas devidamente acompanhado dos espasmos de Lunadon e da voz e bateria de Braswell.

A mescla de noise e de pseudo-melodias que Ackermann arranca às mártires Fender e que se juntam harmoniosamente (!) ao ruído produzido por Lunadon e Lia Braswell ainda remetem, curiosamente, para uma Journey in Satchidananda e seu diálogo entre Alice Coltrane e Pharaoh Sanders. De um vulcão no meio da plebe brotou um improviso à moda de Cabaret Voltaire (ou de Pharmakon, para quem gosta de batidas que soam a tufões), com o trio a partilhar o suor com todos.

É por isto que os A Place To Bury Strangers são das melhores bandas que se pode apanhar por aí num palco. Passe os chavões (já suados de tanto uso), a entrega e intensidade são constantes e são um completo desdenhar de todos aqueles que não conseguem fazer a transição da teoria do estúdio para a prática do palco – algo essencial nuns tempos em que as vendas não asseguram sustento e a estrada tem de dar para pagar as contas, ainda que, como sabemos, as grandes bandas fazem do palco vida. O fervor ritualístico com que Ackermann joga com botões dos pedais depois de ter atirado a guitarra pelo ar, os malabarismos espásticos de Lunadon e a renovação melódica e rítmica que Braswell trouxe – em disco e ao vivo – são o cerne da relevância do grupo.

Uma excepcional versão de You Are the One ampliou literalmente a versão de estúdio para uns altos-fornos num palco. Never Coming Back bem pode ser uma súmula da história e da força da banda, introduzindo uma segunda voz (a de Lia Braswell) e Ackermann na percussão, perfazendo um dueto de grande efeito e com uma letra tão bem sintetizando a banda: “And it takes my tongue, when it trips on me, and it fills my soul”.

Ao fim de setenta minutos já bem suados que nem um ritual de Temazcal abrem-se as portas da rua e entra o ar fresco e termina o ruído, ficando os despojos da noite no palco: guitarras empilhadas a um canto que nem cadáveres de madeira e circuitos, baquetas, um timbalão vencido da vida e pobres luzes estroboscópicas, pedaleiras e suportes de microfone. Rentrée? Não há nada para reentrar em, que o noise nunca de nós saiu. E em noite de concerto dos A Place To Bury Strangers, é o sol daquele que mais brilha.


sobre o autor

José V. Raposo

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