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Juha
Título Português: Juha | Ano: 1999 | Duração: 78m | Género: Drama, Romance
País: Finlândia | Realizador: Aki Kaurismäki | Elenco: Sakari Kuosmanen, Kati Outinen, André Wilms, Elina Salo

Um filme a preto e branco. Mudo. Produzido na Finlândia. Digam lá se não é algo que sempre tiveram vontade de ver?

Pois, eu percebo. Mas há uma coisa que, desde logo, se pode dizer em defesa deste Juha, mesmo para quem for alérgico a cinema mudo. É que foi realizado por Aki Kaurismäki. E quem está familiarizado com a obra deste cineasta, sabe que isso faz toda a diferença.

Kaurismäki, verdade seja dita, não foi o primeiro cineasta a ter a ousadia de fazer um filme mudo desde que o som tomou conta das imagens na sétima arte. Desde os anos 30 até O Artista (o inesperado vencedor do Óscar de Melhor Filme em 2012), houve sempre realizadores a aventurarem-se a voltar ao tempo da pantomima, ao tempo em que eram os olhares que serviam de voz aos actores e em que a atenção prestada na composição das imagens enchia cada plano de informação e simbolismo sobre a história que estava a ser contada. Raras vezes essas aventuras foram bem-sucedidas, é certo, até porque na maioria dos casos eram obras criadas com um intuito experimental, em que se olhava para o passado para tentar estimular a inovação. Uma espécie de desafio que os cineastas impunham a si mesmos para ver até que ponto seriam capazes de criar algo à altura do que os seus antecessores tinham feito com menos recursos técnicos.

Ainda assim, houve alguns filmes mudos que deram que falar (desculpem o trocadilho), como a curta-metragem Filme, realizada em 1965 pelo dramaturgo Samuel Beckett e interpretada por Buster Keaton, um ano antes da morte deste, ou a comédia burlesca e erótica La Fille du Garde-barrière, dirigida em 1975 por Jérôme Savary (um nome mais conhecido pelo seu trabalho no teatro musical), que chegou mesmo a criar controvérsia, na altura, por conter cenas de sexo consideradas demasiado explícitas.

 

Juha, de Aki Kaurismäki, não criou a mesma controvérsia, mas também não passou propriamente despercebido na altura em que estreou (foi até reconhecido com uma Menção Honrosa no Festival de Cinema de Berlim). É que apesar de se ter tratado da quarta adaptação cinematográfica de um dos mais conhecidos romances finlandeses do século XX, escrito por Juhani Aho, o filme tem todas as marcas do universo de Kaurismäki: os anacronismos, a mistura de drama e humor nonsense, a primazia dada aos detalhes para a compreensão da história e das motivações das suas personagens, e um estilo de filmar conciso e sem rodeios, como se, apesar do ritmo pausado, não houvesse tempo a perder e cada sequência fosse indispensável.

E o facto de o cinema de Kaurismäki sempre se ter revelado parco em diálogos e pouco propenso a interpretações exageradas («o meu segredo, quando dirijo os actores, é não deixá-los representar, não deixá-los levantar a voz ou mexer muito os braços», chegou a dizer numa entrevista ao apresentador televisivo Jonathan Ross nos anos 90), permitiu-lhe experimentar, sem grandes problemas, essa solução técnica e narrativa que é tirar a voz aos actores. Até porque os intertítulos também ajudam a explicar o que só as imagens não podem.

A história de Juha anda à volta de um triângulo amoroso, e tema mais clássico do que esse não deve haver no cinema. Neste caso, uma camponesa deixa o marido, com quem partilhava uma existência pacata e feliz, para ir atrás de um citadino que a leva para um mundo de violência e degradação moral. Uma alegoria melodramática, na linha de grandes clássicos de Griffith e Murnau, em que a simplicidade da vida no campo se opõe à perdição da sobrevivência na cidade – tal como a pureza idealista do cinema mudo se opunha à explosão tecnológica do final do século XX, parece ser a leitura mais óbvia. No entanto, fiel ao seu espírito iconoclasta, Kaurismäki realizou um filme sem vozes, mas não sem sons. A música está sempre presente (mais ainda do que nos seus outros filmes) e há ainda vários efeitos sonoros (o barulho do motor de um automóvel, de um rádio que se acende ou de uma porta que se fecha) que, tal como as idiossincrasias já mencionadas do Kaurismäki touch, enfatizam a sua dimensão pós-moderna.


sobre o autor

Luís António Coelho

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