Of Fragility and Impermanence“, novo disco de André Carvalho, uma exploração musical profundamente pessoal sobre a fragilidade e transitoriedade da vida. Cada peça do álbum nasce como uma meditação independente, abordando diferentes perspectivas: a vulnerabilidade da parentalidade, a melancolia ligada ao desejo de regressar a um estado primordial de plenitude ou a beleza efémera de pequenos gestos quotidianos. Através desta lente, Carvalho cria música que convida à escuta atenta e à reflexão, evocando tanto delicadeza como intensidade emocional, e trabalha os contrastes entre silêncio e densidade, clareza e ruído, o íntimo e o universal. O álbum conta com a participação de José Soares (saxofone), Raquel Reis (violoncelo), Samuel Gapp (piano) e João Hasselberg (electrónica) e resulta de uma residência artística realizada no Centro Musibéria (Serpa) e contou com o apoio da Antena 2 e da Fundação GDA.

#1 A Galope

A Galope abre o disco como um mergulho directo na energia da infância – aquela loucura feliz e imparável das crianças quando correm sem destino. É uma peça sobre essa vitalidade bruta, sobre o impulso de brincar, cair e voltar a correr.

Musicalmente, nasce de uma progressão de acordes a que juntei um arpeggiator com um padrão quase aleatório. No início, não sabia bem como transpor essa ideia para o grupo e fui partilhando estas ideias iniciais e até dificuldades com o resto dos músicos. Aos poucos, durante os ensaios e a residência artística, o tema foi tomando forma. Fui experimentando melodias – algumas em bloco, outras sobrepostas e com mais contraponto – e diferentes combinações rítmicas.

Há aqui uma influência clara de John Adams, sobretudo na pulsação rítmica e na liberdade harmónica. Gosto da forma como a electrónica, com a sua intensidade, se mistura com os instrumentos acústicos e cria essa sensação de frescura e excitação – como se estivéssemos a correr, de sorriso no rosto, sem olhar para trás.

#2 Dente de Leite

“Dente de Leite” fala sobre o momento em que deixamos de ser crianças – essa passagem confusa e inevitável entre a infância e a adolescência. O título funciona como uma metáfora para o crescimento, para aquilo que perdemos e substituímos ao longo do caminho. É um tema mais sóbrio, talvez até um pouco sombrio, como se olhássemos para trás e víssemos a inocência a desvanecer.

Musicalmente, arranca com uma improvisação de contrabaixo e electrónica à qual se junta mais tarde o saxofone. Depois, surge um ostinato no contrabaixo, uma base que se repete e sustenta várias melodias que se vão cruzando. Depois da exposição do tema, há uma improvisação colectiva – um momento em que o grupo respira junto, sem rede. Curiosamente, só depois de gravarmos é que, num ensaio, surgiu uma nova ideia para o final. Não entrou no disco, mas ficou no ar. Gosto dessa sensação de que as composições nunca estão completamente fechadas – há sempre espaço para algo inesperado nascer.

#3 Dores de Crescimento

Este é o segundo single do disco. É uma peça simples, escrita ao piano, com um tom nostálgico e uma certa mágoa silenciosa. Fala sobre a passagem do tempo e a perda de inocência que acompanha o crescimento.

No início, não tinha uma ideia clara de como transformar o esboço inicial para piano numa peça para o grupo. Nos primeiros ensaios experimentámos várias direcções, até perceber que a música pedia uma formação mais reduzida – apenas piano, electrónica e saxofone. Essa escolha acabou por ser essencial: cria contraste com os temas em quinteto e dá-lhe uma atmosfera mais íntima, mais próxima da emoção que quis traduzir desde o início.

O piano conduz a peça, tocando tanto a melodia como os acordes. A electrónica estabelece um loop desde o início, quase como um mantra, e vai manipulando e colorindo os sons do piano e do saxofone. O saxofone entra mais tarde, com uma presença contida mas transformadora.

É, honestamente, um dos temas que mais me comove tocar ao vivo. Nasceu de pensamentos sobre os meus filhos – sobre o tempo que passa, o crescimento, e a beleza frágil que existe em vê-los mudar todos os dias.

#4 Echoes

“Echoes” fala sobre a memória – sobre o modo como recordamos a nossa infância e como essas imagens se tornam difusas, como ecos do passado que o tempo vai desfocando.

Tudo começa com uma improvisação minimalista, feita de sons quase inaudíveis: harmónicos, notas tocadas junto ao cavalete, pequenos fragmentos sonoras. A electrónica junta-se a esse universo frágil, manipulando e expandindo-o. Uma melodia delicada surge num synth, depois partilhada pelo piano, e é retomada várias vezes pelo grupo num crescendo que se estende até ao final da exposição.

Depois, entramos numa exploração colectiva onde a electrónica manipula gravações de uma conversa entre um dos meus filhos e a minha mulher – uma brincadeira captada ao acaso. A forma como essas vozes aparecem e desaparecem, sem nunca se perceber totalmente o que dizem, faz-me pensar nas memórias mais antigas que guardamos: aquelas que não conseguimos reconstruir por inteiro.

A improvisação prossegue e, mais adiante, o saxofone introduz uma nova melodia – uma variação daquela primeira, o mesmo gesto delicado, mas agora envolto numa harmonia menos clara, como se estivéssemos a tentar recordar algo que já não sabemos se aconteceu mesmo.

#5 Mèrancolie

“Mèrancolie” nasceu de uma improvisação livre em que quisemos explorar a fragilidade do som. Trabalhámos com harmónicos, técnicas menos convencionais no violoncelo e no contrabaixo, e um piano preparado – tudo manipulado pela electrónica. O saxofone acaba por assumir um papel central, guiando a direcção harmónica enquanto o violoncelo e o contrabaixo respondem e se entrelaçam.

Dessa teia de texturas surgiu-me a imagem de um regresso – um retorno ao que há de mais natural e primitivo em nós: a ideia de voltar ao útero materno. É uma melancolia de origem, um desejo de reencontro com a totalidade perdida. Essa noção de “melancolia materna” encontrei-a num livro de Pascal Quignard, “A Noite Sexual”, e fez-me todo o sentido para dar nome a esta peça.

O tema nasceu de forma espontânea, durante a nossa residência artística no Centro Musibéria, em Serpa. É um dos momentos mais etéreos e instintivos do disco – um espaço onde a fragilidade se torna linguagem.

#6 Infância

“Infância” é uma espécie de ode à leveza e ao humor das crianças – à forma como olham o mundo com espanto, sinceridade e uma ingenuidade que não deixa de ser sábia. É um tema sobre esse riso fácil, sobre a simplicidade com que tudo parece possível.

Aqui, o grupo apresenta-se numa formação mais pequena: saxofone, contrabaixo e electrónica. O saxofone e o contrabaixo partilham uma melodia que não se apoia em nenhuma estrutura harmónica tradicional, o que lhe dá um carácter livre e espontâneo. Essa melodia tem algo de brincalhão, quase jocoso, mas também uma serenidade subtil, como se sorrisse em silêncio.

A electrónica desempenha um papel fundamental, moldando e manipulando o espaço sonoro, criando pequenas atmosferas que sustentam essa leveza – um mundo que parece suspenso entre a inocência e a curiosidade.

#7 The Journey of Kanji Watanabe

Este tema é inspirado no filme “Ikiru” (1952), de Akira Kurosawa, que acompanha os últimos meses de vida de Kanji Watanabe, um burocrata japonês que, ao descobrir que tem cancro terminal, decide dar significado aos seus últimos dias de vida. A narrativa explora a busca por propósito e a reflexão sobre a vida e a morte. Watanabe, antes consumido pela rotina, encontra um novo sentido ao dedicar-se à construção de um parque para crianças, deixando um legado duradouro. O filme é uma profunda meditação sobre a efemeridade da vida e a importância de viver com intenção.

Ao longo do filme, Watanabe busca significado nas suas interações com os outros. Ele compartilha uma conversa reveladora com um escritor boémio, que o leva a reflectir sobre as suas próprias escolhas de vida. Além disso, a sua relação com a família e colegas de trabalho é marcada por distanciamento e incompreensão, o que o motiva a buscar conexão e propósito. Essas interações ressaltam a importância das relações humanas e da busca por significado, mesmo nas circunstâncias mais desafiadoras.

Musicalmente, o grupo apresenta o tema de formas distintas: inicialmente, o contrabaixo e o violoncelo conduzem, acompanhados pelo piano e pela electrónica, e mais tarde o saxofone entra para adicionar uma nova dimensão. Seguem-se várias secções onde a melodia é explorada e desenvolvida, culminando num pequeno solo de piano antes de o grupo retomar a melodia. Toda a peça é tocada em rubato, refletindo a incerteza e a reflexão de Watanabe enquanto procura sentido nos seus últimos meses de vida. As ondas dinâmicas que surgem ao longo do tema representam os altos e baixos da sua existência, os momentos de confrontação com a própria mortalidade e a decisão de agir para deixar um legado.

#8 “No man ever steps in the same river twice, for it's not the same river and he's not the same man”

Este é o primeiro single do álbum. A ideia para esta composição surgiu de uma frase do filósofo grego Heraclitus, que fala sobre impermanência e o fluxo constante da vida – nada é fixo, nada se repete da mesma forma. A partir desta ideia, tentei explorar musicalmente a noção de irrepetibilidade: vários fragmentos melódicos aparecem pelos diferentes instrumentos, mas nunca da mesma maneira.

O tema desenvolve-se gradualmente, ganhando intensidade, e evolui para uma pequena improvisação colectiva. Esta improvisação, ligeiramente desconexa, cria uma sensação de movimento contínuo e instável, antes de se retomar uma das secções previamente apresentada, mas com pequenos twists que a transformam. A música, assim, torna-se um reflexo sonoro do fluxo constante que Heraclitus descreve – sempre em mudança, sempre única.

#9 The Restlessness of the White

Este tema inspira-se na obra “Livro Branco”, de Han Kang, que explora de forma sensorial e poética a fragilidade, a perda e a impermanência da vida. A narrativa não é linear; funciona antes como uma reflexão sobre experiências humanas, memórias e emoções, muitas vezes ligadas à morte, à ausência e à vulnerabilidade. O tema do luto – a dor de lidar com a morte de alguém próximo – é uma presença constante na obra e serviu de guia conceptual para esta música.

Musicalmente, procurei traduzir essas ideias num tema que surge mais adiante, conduzido pelo piano, mas cuja atmosfera e texturas são construídas previamente pelo grupo. É um ambiente sóbrio e negro, que cria uma sensação de desconforto e introspeção – um espaço sonoro onde a fragilidade e a impermanência se tornam quase palpáveis.

#10 Study for a Bullfight #4

Esta composição inspira-se na obra do pintor britânico Francis Bacon, um artista que admiro profundamente. Há alguns anos, li o livro de entrevistas de David Sylvester a Francis Bacon, onde ele fala sobre o seu processo e a forma como encara a arte, e isso deixou-me uma marca duradoura.

Uma das temáticas centrais na obra de Bacon é a vida, a morte, a violência e a brutalidade. A série de quadros intitulada “Study for a Bullfight” explora estas ideias através da tourada, como metáfora da tensão entre força e vulnerabilidade, vida e morte, e o lado instintivo e animal do ser humano. Apesar de existirem três quadros, quis expandir esse universo com esta pequena composição, que intitulei “Study for a Bullfight #4”.

O tema é apresentado pelo violoncelo solo, onde a Raquel toca com alguma liberdade interpretativa, explorando em tempo real os diferentes elementos composicionais. É um momento dissonante e bruto, mas ao mesmo tempo íntimo, com espaço para contemplação, eterealidade e até para um certo carácter onírico – como se a violência e a fragilidade coexistissem numa mesma dimensão sonora.

#11 Trica de Irmãos

O último tema do álbum é uma elegia ao amor incondicional entre irmãos. Talvez sejam das relações mais próximas que podemos ter: estabelecidas desde cedo com alguém que partilha o mesmo tecto, a mesma geração e a mesma criação. É uma ligação que nos acompanha ao longo da vida, marcada por ternura, altos e baixos, desavenças e conflitos, mas sempre sustentada por um amor profundo e incondicional.

A formação é mais reduzida – clarinete baixo, contrabaixo e electrónica – e reflete essa intimidade. O tema carrega uma sensação de docilidade, candidez e ternura, tornando-se um espaço sonoro de afeto e proximidade. Achei que seria perfeito para fechar o álbum com algo terno, esperançoso e, de certa forma, positivo.


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