Entrevista


PZ

Parece que vivemos um dreamland tecnológico, mas há outras culturas que estão a ter o seu processo de imposição no mundo (...)


Corria o ano de 2013 quando, a estudar no Porto, me chegou pela primeira vez aos ouvidos a Croquetes. Hino sincero ao melhor salgadinho português, senti-me compreendido na minha paixão pelo croquete e entrevi naquele momento algumas características da vida portuense; e PZ, por sua vez, havia para sempre conquistado um lugar na nossa atenção colectiva. Lançou este ano o seu quarto disco, Império Auto-Mano, depois de um primeiro disco ainda algo obscuro, e na sequência de Rude Sofisticado e Mensagens da Nave-Mãe, em 2012 e 2015, respectivamente. Um assunto muito sério, retrato fiel de um povo no seu tempo, das idiossincrasias humanas contemporâneas, de uma cidade que é nossa também. Apresenta-o em Braga, no Theatro Circo, no próximo dia 18.

PZ é do Norte, e, ao telefone por volta do meio-dia (que para ambos foi início da manhã), diz-me que “o Porto sempre foi uma inspiração, mesmo que não tenha vivido os primeiros anos lá”. Esses, passou-os “em Famalicão; mas éramos uma família grande, e tínhamos muitas expressões, que até seriam mais minhotas do que do Porto, e acabava por ir lá muitas vezes”. Viver fora das grandes urbes é uma experiência agridoce, simultânea distância e proximidade de uma série de coisas que se perdem e ganham geograficamente; e sente-se na sua música a subtil influência da região, na forma descontraída de construir o relato da sua experiência, e no calão que utiliza a seu bel-prazer.

“Na minha música como PZ sempre tentei transpor para as letras um bocado da caracterização de quem sou eu nesta cultura, a portuguesa, e mais especificamente a do Porto”. É evidente, para quem alguma vez se imiscuiu na região nortenha, que é comum a gente de sangue na guelra, com a boca bem próxima do coração e de ditos cortantes e trespassados pelo humor brejeiro. No Porto em particular, cidade que retém a sua identidade de forma apaixonada, o conflito com a modernidade é fascinante: desde o Metro que se insere num centro histórico e de arquitectura mais clássica, às expressões populares, empedernidas na memória da cidade, que partilham as frases com o “bué de fixe”.

Nesse sentido, Império Auto-Mano, cujo nome alude a “este clash de culturas entre o ocidente e um certo radicalismo oriental, e também uma referência ao automático que está cada vez mais presente na nossa vida”, alberga preocupações próprias do nosso século, sem nunca se comprometer demais com elas. Todos nós carregamos no bolso um mini-computador omnipresente, e o nosso attention span tem sido paulatinamente reduzido para se formatar ao tempo necessário de um snap; a selfie é o novo retrato, que não necessita de mãos alheias para afirmar a individualidade. “Parece que vivemos um dreamland tecnológico, mas há outras culturas que estão a ter o seu processo de imposição no mundo e quis jogar um bocadinho com essa modernidade, falar sobre os tempos modernos, esse medo e tensão com o desconhecido e a nossa resposta no refúgio dentro da tecnologia”. Esta abertura permanente em relação ao mundo é uma faca de dois gumes: se parece haver mais liberdade para a troca de ideias e para o conhecimento independente, uma espécie de encurtar de distâncias entre várias culturas, também há a consequência da massificação da informação e pontos de vista contraditórios, um pequeno ecossistema mediático que é, também ele, uma forma perversa de entretenimento – “o medo vende, não é?”. E com isto, a tecnologia canibaliza a nossa atenção e reduz a humanidade do nosso quotidiano.

PZ - Império Auto-Mano

Durante a conversa, pressente-se um pessimismo latente mas nunca demasiado assumido; porventura as consequências de um olhar igual medida atento e preguiçoso. Ocorre-me que encontrou na música um sítio para libertar a frustração e necessidade de produtividade: “Olha, é um bocado isso: a música sempre foi vista por mim como uma libertação também das regras de comunicação, dum certo tipo de comportamento que uma pessoa tem que ter. E a música é uma libertação disso tudo – peças de arte de lidam com o tempo que vivemos.” Na Olá, temos um óptimo exemplo de tudo o que PZ tem desenvolvido até agora: ritmada por um beat brincalhão e orelhudo, a letra é uma simples permutação maquinal entre “Olá / tudo fixe? / tudo bem contigo?” e “Espera aí, tenho que atender isto / fazer isto / acabar isto” – e quantas horas das nossas vidas não se preencheram futilmente neste ritmo tresloucado (e profundamente desumano), tão próprio do nosso paradigma capitalista, a resvalar para o terreno desgovernado do pós?

A Olá refere a quando estamos frente-a-frente com uma pessoa e parece que não temos tempo para essa comunicação; temos que voltar ao trabalho ou ao que estamos a fazer. Hoje em dia o sistema de trabalho é estar em frente ao computador, ou a ligar a pessoas, ou a estar no Facebook a criar comunicações. São tarefas que nos obrigam a estar em frente a um ecrã e por vezes tira-nos o lado pessoal da coisa.” E como este, há outros exemplos no disco de tiradas certeiras e acutilantes; a Zona Zombie, ou a Mais, que é “sobre a nossa necessidade de termos sempre mais: somos bombardeados continuamente com novos produtos que não precisávamos e agora precisamos e não podemos viver sem eles”.

No entanto, PZ acaba por se dividir constantemente nas suas opiniões sobre os tempos modernos, com sentimentos contraditórios em relação a esta omnipresença tecnológica. Por um lado, todo o mal que já previamente enunciámos; por outro, a possibilidade de músicos chegarem ao público de uma outra forma, do acesso à informação, e até “a quantidade de recursos que temos para fazer a nossa própria música”. “Agora, por exemplo, estou de férias e tento usar o telemóvel o menos possível” – aqui, rimo-nos por ambos termos começado o dia ao telefone, e em trabalho – “mas há coisas óptimas! Hoje em dia podemos estar fora do sítio de trabalho do costume e trabalhar onde quiser, só que, ao mesmo tempo, quase que nos obrigam a uma certa produtividade porque estamos sempre ligados, e as pessoas estão sempre em contacto connosco. E isto vai criar, acho, uma coisa exponencial onde não vamos ter tempo para nada e vamos ter que viver esta insanidade. Ou então não: o ser humano é um animal cada vez mais social e isto também são produtos da nossa própria mente e forma de estar”.

PZ

PZ, dentro e fora do universo musical, parece viver tudo de uma forma descontraída e ciente do humor intrínseco à nossa condição humana. Identifica pontos de referência nos Monty Python, Herman José e o seu Tal Canal, e cita alguns nomes da animação da televisão americana, e a sua música de humor proeminente segue na linhagem dos Ena Pá 2000, por exemplo, modernizada pelo meio da electrónica e do mote do-it-yourself. Dentro do minimalismo intrínseco dos seus trabalhos, encontrou uma evolução natural: “neste álbum se calhar tive mais tempo a fazer overdubs de sintetizadores, a pensar em técnicas de produção diferentes: [na Mais] passei um SH-101 a entrar num amplificador de guitarra com um spring reverb, tinha umas máquinas novas que não tive no outro álbum…brinquei mais um bocado.” E está encontrada a linguagem predilecta na electrónica, com os instrumentos que vem habitualmente utilizando? “Sim, já, mas depois é o problema que relato na Mais: quero sempre mais, quero mais máquinas, quero ter tudo. É a minha perdição, os sintetizadores e as caixas de ritmos, tudo o que seja associado ao mundo do sintetizador.”

“Muita da minha influência vem da pop dos anos 80 e 90, e do techno e do hip-hop e trip-hop – e todos os outros hops – mas também não tento recriar essas influências, mas criar a minha própria música. (…) E tenho montes de instrumentais que espero usar mais cedo ou mais tarde, sem voz, que vou fazendo. E gostava de lançar esse projecto daqui a um ano ou dois.” Estão dadas pistas para um eventual futuro, sempre com ligação à editora que gere, a Meifumado, onde edita os seus trabalhos, os Guta Naki e os conterrâneos Corona. Balançando-se no limiar entre o engraçado e o mordaz – “eu próprio por vezes não sei como avaliar as músicas que faço” – passa por Braga na apresentação do disco, no próximo dia 18, acompanhado pela sua banda pijama. O bilhete para o Theatro Circo está marcado a 10€ – um módico preço para conhecer o Império Auto-Mano.


sobre o autor

Alexandre Junior

Interesso-me por muitas coisas. Estudo matemática, faço rádio, leio e vou escrevendo sobre fascínios. E assim o tempo passa. (Ver mais artigos)

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