Entrevista


Conan Osiris

Para mim a multiculturalidade é omnipresente


© Rita Carmo

Estabeleci como uma espécie de resolução de ano novo dedicar mais atenção a música nova, fresca, fruto da sua contemporaneidade; porque a cultura não se faz apenas e só de olhar o retrovisor, ou de escavações arqueológicas no agora imenso domínio dos artefactos digitais. Há uma espécie de segurança em consumir arte do passado, já estacionária no tempo, com as suas influências delimitadas: por lhe sabermos o antes e o depois, o risco de uma surpresa é diminuído. Qualquer reacção provocada pela sua irreverência faz já parte do passado.

Mas, há cerca de um mês, enquanto o país e o mundo se convalesciam da época natalícia no limbo existencial que precede o dobrar do ano, Conan Osiris aproveitou um período desprovido de grandes acontecimentos para lançar o disco ADORO BOLOS, editado junto da AVNL Records. Ao colectivo já tem chegado atenção estrangeira: em 2014, a THE FADER mencionava os ‘sons singulares do underground de Lisboa’ – no qual se inclui necessariamente, por exemplo, a Príncipe Discos – e pouco tempo depois a britânica WIRE mencionaria Marie Dior, entre outros, na edição impressa.

De volta a Conan Osiris. Depois de vários trabalhos soltos, dos quais muitos ainda estão registados na sua conta do Soundcloud, 2016 viu chegar MUSICA, NORMAL, colecção de pop de inspiração e produção modernas, com traços da tendência que bebe do dancehall (presente em muitos hits recentes americanos), das melodias lânguidas, de alguns laivos musicais pertencentes a outras geografias. Tudo isto, e uma atitude condizente com a intencional vacuidade da música pop (cantada em inglês), denunciada no humor e na desenvoltura das suas letras.

Um ano depois, um novo disco. E poder-se-ia fazer uma análise preliminar das intenções de ADORO BOLOS, começando pelo singular statement no seu título, ou pela figura do petiz que agarra ternamente um pintainho, na capa do disco. A declaração pueril de amor à pastelaria, tanto como o símbolo de infância e inocência, são possíveis sinais de um trabalho mais íntimo e pessoal. Ou melhor: seria, com certeza, no âmbito de outro artista qualquer.

Porque na obra de Conan Osiris, a poesia finta a definição hermenêutica e ultrapassa-nos a compreensão. Se por ora satiriza lugares comuns ou os clichés do género, produz noutra ocasião – quando não em simultâneo – assertivas imagens ou ideias que pertencem por excelência ao universo que se propõe a emular. Sejamos concretos: BORREGO, faixa inaugural, por entre batida e voz soturnas, canta um amor transviado – a culminar numa auto-atribuição pejorativa – que remonta a Variações, por exemplo, ou à fatalidade do fado, cruzados por uma sensibilidade étnica ou multicultural no timbre e entoação da voz.

Para mim a multiculturalidade é omnipresente”, escreve Conan, por e-mail, em resposta a uma série de perguntas que lhe faço. “Tive a sorte de ter tido uma educação inclusiva”, e recorda uma infância pautada pelas “novelas brasileiras com os mais distintos temas, a música de dança de todo o mundo que passava na primeira Rádio Cidade, e partilhar cassetes e cds de kizomba e kuduro na escola”. A ideia da partilha física da música é já um reflexo do passado, embora não muito distante, numa altura em que a nossa cultura ainda era maioritariamente determinada pelo nosso meio geográfico (a cidade, o bairro), sem a influência da Internet como meio de comunicação global. Havia, ainda, uma diferença entre a nossa cultura e a que nos chegava pelos media do resto do mundo, pré-globalização. E esta noção parece estar intimamente ligada com a sua música.

Hoje em dia, e principalmente para os putos, já não há muita distinção; mas, claro, há 15 anos havia. Hoje se eles são k-poppers, metaleiros, ravers, trappers, fazem um evento no Facebook, conhecem-se, curtem a cena deles e conseguem sempre arranjar esse porto de abrigo” – a internet a funcionar como formadora de subculturas. Remata: “são benefícios construtivos de crescer já dentro da net.

Conan Osiris - Adoro Bolos

Uma outra das consequências da vida com internet, amplamente estudada desde a sua génese, é o poder das hiperligações – rápidas associações à distância de um clique, que nos levam de um texto para um outro radicalmente diferente – e que mudou a forma de lermos e apreendermos informação. Se, antes, a atenção era monogâmica, o paradigma mudou em prol de pequenos rasgos dirigidos para vários quadrantes, um autêntico multitasking mental, onde coexistem várias ideias, ligadas não por uma coerência temática, mas sim por uma ténue associação. É uma ideia que se ajusta a ADORO BOLOS, e que explica como podem coexistir, na mesma faixa, uma calma aura baladeira, e logo depois um outro electrónico, desenvolto, com ritmos africanos em altíssima rotação (como em NASCE NAS ACUCENAS).

Nesse sentido, este disco parece existir numa ilha povoada de contradições: enquanto a electrónica da base das músicas é maioritariamente um reflexo da música moderna internacional, o estilo lírico e vocal revelam anacronismos onde se inclui a nossa cultura, os nossos artistas passados, a língua portuguesa e, sobretudo, seus derivados; uma tecelagem de diversidade no crioulo cruzado com um acordeão, o mar da saudade como paisagem para deglutir carne assada, e um rissol. Para Conan, escrever em português, neste português, “[não é uma experiência] mais genuína, mas entendo que as pessoas recebam de forma mais genuína”.

Posto tudo isto, não é descabido assumir que este é um processo de um único interveniente dada a ausência de colaborações, seja nas faixas ou noutra qualquer fase da produção do disco. “O meu percurso tem sido tão solitário que me habituei assim – tive que fazer feat. comigo próprio”. Talvez só assim, sem concessões a visões artísticas de outrem, fosse possível produzir algo tão único, tão pejado de personalidade – mesmo que nos chegue amortalhado num humor auto-irónico, que alguns descartarão como sinal de pouca seriedade. “Eu preciso de me rir; a parte da sinceridade já vem de mim. Mentiras são água parada (…) Agora não sei partilhar [este] espaço, mas talvez consiga no futuro”.

São, ao todo, onze faixas que destoam de tudo o que possam ouvir neste ano. ADORO BOLOS chega, impõe o seu estilo, deleita-nos e vai embora com um sentido agradecimento. Este será o ano para o apresentar ao vivo, seja na cave de um obscuro espaço alternativo, ou frente a milhares no palco de uma Feira Popular –  e, já agora, qual será a demografia que porá com interesse num evento do Facebook? Conan Osiris continuará o seu trabalho solitário: um universo pessoal e particular, contemporâneo e imbuído de tradição, onde joga à sueca com Paião, Amália, e Variações; o lanche é à base de enchidos, numa barraca de farturas, e acabam todos a dançar ora o vira, ora a última sensação na cena do kuduro. Que belo mundo, este de Conan Osiris.


sobre o autor

Alexandre Junior

Interesso-me por muitas coisas. Estudo matemática, faço rádio, leio e vou escrevendo sobre fascínios. E assim o tempo passa. (Ver mais artigos)

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