Black Sabbath: Criadores… ou mais do que isso?
por Christopher Monteiro em 23 de Julho, 2025

Nota: O artigo foi inicialmente escrito entre acontecimentos. Após o concerto de despedida, mas antes da derradeira despedida que, por muito inevitável que fosse, deixou-nos a todos desolados. Não se pretendia cair naquela esparrela tão humana de esperar que os grandes partam para lhes prestar as homenagens e reconhecer-lhes o valor, mas sai cá para fora já quando toda a comunidade celebra o legado deixado por Ozzy Osbourne, que já seguiu para o pé de uns quantos velhos amigos. Este artigo sempre pretendeu prestar-lhe um enorme tributo. Que ganha uma maior dimensão ainda.
Já passaram dias mas ainda se sente o eco. Talvez literal, dado o ruído, dos amplificadores e do público, que ainda possa estar por lá a ranger, mas também figurativo. Ou até espiritual ou coisa que o valha, que aqueles acordes finais tocaram bem no fundo de todos os presentes e de todos que tiveram que recorrer aos facilitismos modernos que nos permitem ver tudo sem estarmos lá.
Oficializou-se o fim de uma das maiores instituições musicais de sempre, uma daquelas bandas históricas que nos permitem usar aqueles termos demasiado ousados como “das melhores de sempre” porque estes têm mesmo legado e provas disso. Mais de cinco décadas depois, nem seria de esperar que ainda cá andassem. E, realmente, até já tinham parado. Porque é que esta despedida derradeira, que precisou de uma reunião para acontecer, bate tanto? Porque esta era mesmo para ser assim, era mesmo para ser emocional e não só um “Pronto, até aqui chegámos.”
E obriga-nos a falar de Black Sabbath. Como não falar de Black Sabbath? Algo que, felizmente, até é bastante fácil.
Muito se recorre a certos palavrões como “pioneiros” ou “criadores” no que toca aos Black Sabbath e ao legado que deixaram no heavy metal. Por quanto sabemos, o legado que deixaram no heavy metal foi o heavy metal. A sua existência. Mas há aí pano para mangas. Dá para muita conversa. Em tudo, há sempre ali um pontinho anterior, uma junção de coisas, aquela coisa mais obscura que antecedeu e, se calhar, não conseguiríamos definir, com rigor, onde e quando começou oficialmente essa cena do barulho, para o qual o termo “rock” não era suficiente.
Difícil estar a listar as referências todas. Mas até o podemos fazer com duas recomendações muito interessantes de compilações muito úteis editadas recentemente. A primeira chama-se “The Devil Rides In: Spellbinding Satanic Magick & the Rockult 1966-1974,” foi editada pela Strawberry, subdivisão da Cherry Red Records, em Julho de 2024, e compila vários nomes, dos mais conhecidos aos mais obscuros, de rock psicadélico que tratava temas de ocultismo, em tempos em que era um tabu bem mais pesado. A outra chama-se “Yeah Man, It’s Bloody Heavy!!,” foi editada pela Rise Above Relics, subdivisão da Rise Above Records, em Março de 2025, e essa sim resgata os mais esquecidos nomes do protometal daqueles tempos, um “quem é quem” de nomes desconhecidos, que largaram as suas demos ali na altura da génese do estilo musical e desapareceram a seguir.
Pronto, recomendações à parte feitas, voltamos à questão inicial, que é se dá para continuar a garrear sobre quem fez o quê primeiro. Isto do rock mais pesado e voltado para o oculto… Não foram os Coven que começaram isso? A primeira música de metal não foi a “Helter Skelter”? O termo não saiu da expressão “heavy metal thunder” utilizada na “Born to Be Wild” dos Steppenwolf? E canções orientadas por riffs, de guitarras mais distorcidas… Não é o que andavam a fazer os Led Zeppelin, os Deep Purple, o Jimi Hendrix, os Iron Butterfly ou os Cream? Pois, o que não falta são sementes por aí. E ainda existirão mais algumas. Quando podemos ter a certeza que o mundo estava perante algo novo, algo diferente, algo que realmente mudava as coisas e nos apresentava um novo mundo assustador mas fascinante… Será ali por volta de Fevereiro de 1970. Um disco que fez tanto e uma particular canção que fez tanto.
Que foi feita por uns putos de Birmingham, chamados Earth, que tocavam blues mas que isso não lhes devia encher as medidas. E que também não estavam dispostos a ser mais uns hippies. E, fascinados por um filme de terror Italiano intitulado “Black Sabbath,” e por toda a indústria do cinema de terror, e inspirados por uma experiência de Geezer Butler, que alega ter visto um vulto negro aos pés da cama, na altura em que estava quase obcecado com o oculto, escreveram uma canção mais assustadora, mais pesada, mais lenta, que o que se andasse a ouvir. Deram-lhe o título do filme e, como soava tão bem, tomaram-no para si próprios. E história estava escrita para sempre.
Com a canção e todo o álbum cá fora… A imprensa mais mainstream não se mostrou muito impressionada. Tiveram que ganhar o seu público e obrigar a uma imprensa mais especializada nisto, até realmente convencer os outros todos de que vinham para ficar e que isto era de valor. Fácil de assumir que os detractores iniciais apenas estivessem assustados. Ainda não tinham ouvido alguma coisa assim.
Não se iam deixar intimidar por essa recepção, especialmente quando essas vozes deixavam de se ouvir e ainda no mesmo ano tinham mais um disco cheio de riffs intimidantes, especialmente um tão ruidoso e tão distorcido, a anunciar um “I am iron man!” que viria a tornar-se (mais) um hino. E, como nem tudo era lento, havia uma “Paranoid” pronta para fazer cabeças e pescoços abanar por décadas. A juntar a esses, uma sequência com um “Master of Reality,” “Vol. 4” e um “Sabbath Bloody Sabbath” sem defeitos que se lhe encontrassem e onde deu para influenciar ou criar mais umas coisas como stoner, sludge e outros palavrões que agora não passamos sem eles quando queremos catalogar alguma coisa com rigor. No espaço de quatro anos, cinco clássicos assim, a parecer tão fácil. Seguiu-se uma discografia com quantos altos e baixos uma discografia vasta e saudável tenha, mas já se justificaria qualquer percalço maior que, felizmente, até nem chegaram a ter.
Mas seria realmente um caminho com muitas curvas. Com o tal panorama pesado já criado, foi um tal de bandas a aparecer e a criar subgéneros novos. Os próprios Black Sabbath quiseram começar a experimentar e a expandir a sua paleta sonora. Não tardaria nada e também se viam com aquela tarefa em mãos: a da adaptação. A de começarem a aproximar-se daqueles influenciados por eles. Foram modernizando o som e foram sempre capazes de ombrear com campeões novos que seriam capazes de reconhecer alguma dívida que tivessem para com os seus “pais.”
De facto, também não podia ser banda com um alinhamento imune a conflitos, desentendimentos e separações. Imensos músicos passaram pela banda e também existe uma boa colecção de vocalistas, assim que Ozzy, que talvez todos assumissem como insubstituível, saiu e embarcou no seu percurso a solo, também esse inigualável. Ronnie James Dio, já famoso de outras andanças, chegou em 1979 para liderar a banda para uma nova era e conquistar mais alguns fãs que talvez o viessem a preferir. Não há uma divisão de equipas à moda Lee Roth/Hagar ou Scott/Johnson, mas tem a sua fracção de fãs. Mais tempo levou a aceitar-se a curta passagem de Ian Gillan para um “Born Again” que só recentemente começou a ganhar o respeito que merecia. Provavelmente confusos com a presença de um vocalista já tão consagrado e a perguntar-se se a banda não se devia passar a chamar Purple Sabbath, ou assim qualquer coisa, muitos dispensaram o disco injustamente. Sim, a “Digital Bitch” até podia ser praticamente a “Highway Star,” mas não há como dizer alguma peste sobre um disco que tenha a “Zero the Hero.”
Talvez a fase mais desprezada acabe por ser a de Tony Martin, que apanhou muito da década de 90 e que realmente viu os Black Sabbath à procura da adaptação e modernização do seu som. O quão recente foi a reedição dos discos a que deu voz revela o quanto foi sempre uma espécie de “patinho feio” na história da banda mas, com o tempo, até essa fase encontrou a sua aceitação e adoração. Um percurso mesmo à banda histórica e onde não se encontra realmente algum ponto impertinente. Até à reunião com o senhor da voz original, o que também seria inevitável.
Paralelo ao percurso dos Black Sabbath, havia o mais errático de alguém tão “larger than life” como Ozzy Osbourne que, para além de grandes discos e malhas eternizadas e imortalizadas no espectro do rock e do peso, também se tornou imagem de marca de toda uma cena e todo um lifestyle pela sua personalidade e presença. Também ele inimitável, viria a ser notável pela sua imagem, sentido de humor, irreverência, conturbada relação com morcegos e até pela sua vida familiar. Tão admirado, que foi capaz de cometer um sacrilégio tão grande como levar a sua mística imagem a um reality show com a sua família. Não será visto como um dos pontos mais altos da sua vida e carreira, mas também ganhou o direito de o fazer. E, lá está, o sacana tinha graça.
Também ele aproveitou o grande concerto deste mês para se despedir dos palcos. Já se tinha reunido com os velhos amigos para várias digressões e até mesmo mais um grande disco. Até já se tinham despedido antes! Mas tudo serviu de mote para também ele se despedir de forma tão emocional. Aquele personagem de fantasia, alguém tão único… Permitiu que lhe fosse vista alguma vulnerabilidade. Fisicamente incapaz de realizar mais concertos, aproveitou que a voz ainda estava lá para uma grande performance final, sentado num trono devido à sua condição de Parkinson – claro que não ia ser num banquinho qualquer, tinha mesmo que ser num trono digno do grande “Prince of Darkness”! Cantou e puxou das lágrimas dos maiores durões barbudos e com a simbologia oculta toda tatuada que ali estavam, com uma “Mama, I’m Coming Home” que se traduziu como uma perfeita canção de despedida.
E, entretanto, já com os dois parágrafos anteriores escritos, chega a notícia de que morre Ozzy Osbourne, talvez o mais imortal entre todas estas estrelas. Ou seja, partiu para outro sítio quando lá viu que já tinha feito tudo cá. Foi o que se sentiu. Ou que ele já sabia, ou que pôde deixar-se ir, descansado, por ter conseguido despedir-se de todos nós. Nem todos têm essa chance. Mas até que o merecia. Olhar para um mar de gente, de braços erguidos em adoração a si, a representar uma parte de todos os milhões pelo mundo fora tão marcados por ele, e lançar o seu último agradecimento, que nós já na altura retribuímos e que voltamos agora a reforçá-lo. Se havia alguma dúvida em relação ao seu impacto, que chegará além desta comunidade adoradora da música do peso, que este artigo trata… As manifestações de emoção e agradecimento que vimos nesse estranho dia confirmam-no. Haverá alguém mais incontornável do que ele?
Já se sabia que assim seria. Um dia muito emocional para aqueles que lá estavam e para todos que assistiriam posteriormente. Uma homenagem a lendas que só podiam ter tido uma despedida com aquela dimensão após realmente ter criado um mundo de onde pudesse sair o leque de convidados de luxo que actuou antes de chegar a sua vez. Tudo seguidores. Alguns deles já lendas enormes por si. Outros, bem mais jovens e a salvaguardar o futuro. Tal é a capacidade de marcarem tantas gerações em mais de cinco décadas de carreira. Uniram uma multidão com um gosto em comum, que apenas pode ter esse campo, essa sociedade, essa comunidade, essa tribo onde existir, porque eles estavam lá, décadas antes, a fazer isso existir. Será que os próprios têm a noção de todo o impacto que realmente tiveram, não só no panorama musical, mas em pessoas?
Com voz trémula, mais por emoção do que por perda de jeito, Ozzy antecedeu a performance final da grande “Paranoid” com um agradecimento, do fundo do coração. E tudo bem, é verdade essa coisa toda de que as bandas só são alguma coisa, graças aos fãs. Mas ficámos com a sensação de que nós é que temos que lhes agradecer. Nós é que temos uma sensação de dívida para com eles. Deram-nos uma coisa tão boa, que ainda dá cartas, um panorama musical tão amplo, capaz de criar tantos subgéneros, que até é quase impossível que haja um fã que goste realmente de tudo o que existe dentro dele. Isso não devia ser visto como uma coisa má, muito pelo contrário. E pode dizer-se que começou com eles, sim.
Alcançaram múltiplas gerações. Até porque, passando isto meio para a primeira pessoa, este escriba em particular que alcança quantos leitores isto tenha, fala dos inícios e primórdios da banda com muita lata no seu faz-de-conta: na verdade, nasceu entre o “Dehumanizer” e o “Cross Purposes,” dois dos discos menos relevantes da discografia. E já foi tão marcado pela banda. Talvez nem eles saberão a importância que tiveram na preservação de alguma sanidade mental, quer com a sua própria obra, como com aquela influenciada por eles. A mais melódica, a mais extrema, a mais estranha, a mais berrada em três tempos. Todo um universo já com tanta escolha. E, como este tal escriba, existirão outros milhões.
Foram “só” essas as vidas marcadas pelos Black Sabbath. Dignos de uma despedida da dimensão que tiveram. E não existirá outra banda como eles e tão pioneira como eles. Foram eles que criaram, sozinhos, aquilo a que hoje chamamos de “heavy metal” ou só metal? Lá está, é capaz de ser muito ousado dizer isso. Mas se não são criadores, só se realmente forem ainda mais do que isso.
Resta mais um agradecimento. Ao Ozzy, ao Tony, ao Geezer, ao Ward. E a todos os outros que lá passaram e deixaram, também, uma enorme marca. Cá erguemos uns embaraçosos corninhos com a mão, recorrendo a clichés, porque é a forma que temos para saudar. E esses, por acaso, até os devemos ao Dio!
“I was down, but now I’m flying / Straight across the great divide / I know you’re crying but I’ll stop you crying / When I see you, I see you on the other side / Yes, I’ll see you, see you on the other side”
R.I.P. Ozzy,
Obrigado por tudo!