Quentin Tarantino: O movie-jockey

por Bruno Ricardo em 27 Março, 2015

Penso não me enganar muito quando afirmo que Quentin Tarantino se tornou, nos últimos vinte anos, num dos nomes mais reconhecíveis, na área da realização, para o cidadão comum. Existem poucos realizadores cujo nome signifique algo para o espectador que não lê com regularidade sobre a 7ª arte e que ainda se encontrem em actividade. Ocorre-me Spielberg, Scorsese… Talvez George Lucas, Coppola, Almodovar… Não sei se muitos mais. O culto de Tarantino adquire, aliás, uma dimensão extra, porque se é apenas um nome para o simples espectador, revela-se extenso e profundo naqueles que fazem do cinema mais do que um passatempo. Ganhou um tal estatuto que apontar-lhe erros é chamar a si próprio punhos fechados e palavras agressivas. Como se falar mal de Tarantino fosse apodar o cinema de embuste.

Quentin Tarantino nasceu a 27 de Março de 1963, em Knoxville, Tennessee. Os pais separaram-se antes de ele ter nascido e ainda novo, mudou com a mãe para a California, meca do cinema. Desistiu aos 14 anos da escola para frequentar aulas de representação, das quais se cansou também rapidamente.
Para ganhar a vida começou a trabalhar num clube de vídeo, onde discutia e devorava cinema com outros empregados. O clube viria a tornar-se num local fulcral da mitologia dos Tarantinómanos: eis um gajo como nós, que se baldou a qualquer aula de cinema e aprendeu onde todos nós podemos, a ver filmes. Prestou atenção aos filmes que via e ao que o público gostava, e disse um dia a um jornalista «Perguntam-me se andei na escola de cinema e eu digo que não. Fui ao cinema.». Em 1987, Lawrence Bender, um amigo que se viria a tornar seu produtor, convenceu-o a escrever guiões, e resultou nisso My Best Friend’s Wedding. Este seu primeiro filme acabou por ser parcialmente destruído num incêndio, mas o argumento formaria o que foi mais tarde True Romance, escrito por si, mas realizado por Tony Scott.

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Por uma série de acasos e felizes coincidências monetárias, Tarantino arranjou eventualmente quem lhe financiasse o seu primeiro filme de facto, Reservoir Dogs, em 1992. Estreou no Festival de Sundance e foi um sucesso, lançando alguns dos traços que viriam a tornar-se clássicos no seu cinema: personagens palavrosos, que se perdem em conversas da treta; laivos de coolness em homenagens cinéfilas que se confundem com pastiche; a utilização de música retro na banda sonora; um certo bas-fond criminal como pano de fundo. True Romance estreia no ano seguinte, e outro guião que Tarantino escrevera, Natural Born Killers (reler aqui a nossa crítica), chega ao cinema pelas mãos de Oliver Stone.
A sua reputação crescia, assim como as propostas de Hollywood (que o convidou para realizar, entre outros, Speed), mas o realizador decidiu-se por fazer algo de pessoal. Esse algo pessoal viria a ser Pulp Fiction, e a partir desse clássico do cinema moderno, surgiu a moda Tarantino. Surgiram também já dois Óscares por melhor argumento, entre outras nomeações a esses prémios, mais uma Palma de Ouro em Cannes.

“Tarantinesco” é um adjectivo que se tornou um valor em si mesmo, e a quantidade de filmes que imitou o estilo do realizador é longa e torna a sua influência e impacto inquestionáveis. No entanto, uma questão raramente levantada, e que tem toda a pertinência perante o status de Tarantino actualmente, é a da nossa memória como espectadores.

É curioso reparar que boa parte dos seus fãs têm, na verdade, uma memória cinéfila bastante curta, e conhecem pouco do passado do cinema. Compreendo que, para esses, a abertura de um filme como Inglourious Basterds, com referência A Once Upon A Time In The West, pareça genial e refrescante. Quem, porém, nunca viu um filme tão obrigatório como esse vai achar genial e originalíssimo. É o problema que Tarantino representa também para os críticos de cinema. Gostar dele é um acto de reconhecimento da homenagem à mesma arte que adoram; detestá-lo parece picuinhas e ridículo, quando a acusação é falta de originalidade.

©Kirk McKoy / Los Angeles Times

©Kirk McKoy / Los Angeles Times

Na verdade, quase todos os realizadores roubam uns aos outros. Apenas os mais fracos conseguem ser apanhados, afinal. Brian de Palma, que é um dos grandes virtuosos do cinema moderno, é basicamente uma enciclopédia de citações. Consegue-se reconhecer Hitchcock em todas as suas obra, e a cena mais conhecida do seu clássico The Untouchables é retirada de O Couraçado Potemkine, que é coisa para ter mais de 70 anos. Os “furtos” de Tarantino não são originais e muito bom génio já o fez. No entanto, as citações que de Palma usa na sua obra parecem integrar-se de uma forma mais orgânica no seu estilo. Não é descabido que este seja também um dos artífices que o próprio Quentin Tarantino mais gosta. Não sendo frutas da mesma árvore, consideram o cinema como a sua literacia o que é, aliás, apanágio de qualquer realizador que começou a trabalhar depois de 1970.

Lendo o livro “Scorsese Sobre Scorsese”, vi-me apanhado numa teia de referência cinéfilas que nunca julguei possíveis na obra do genial italo-americano. A carreira de Scorsese, se quiséssemos interpretar assim, seria basicamente uma destilação de horas passadas em salas de cinema e ecrãs de televisão a consumir e comer imagens para criar um estilo. Há, no entanto, uma diferença, entre este método e aquilo que Tarantino efectua. O primeiro criou um estilo absolutamente próprio e distintivo, onde as influências que o moldaram são reconhecíveis, mas de forma subtil. Ver Taxi Driver, por exemplo, não é como estar a digerir uma obra urbana de Antonioni, ou um filme de tensão e paranóias de Powell e Pressburger. O que ali está é Scorsese, com obsessões próprias, temas que lhe dizem tudo e um sentido visual que é seu.

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Um filme de Tarantino é outra coisa. Um filme de Tarantino é um mashup. Não há nada de errado com isso, claro, são opções artísticas e de carreira. É minha opinião que desde Pulp Fiction que Quentin Tarantino não fez um qualquer grande filme: Jackie Brown é demasiado cool para inspirar empatia; Kill Bill é um épico partido ao meio, onde a primeira parte é uma enciclopédia de cinema asiático e a segunda começa como a primeira acaba, mas pelo caminho até consegue criar alguns dos melhores momentos da sua carreira, quando Tarantino decide deixar de brincar aos sabichões; Inglourious Basterds é um divertidíssimo delírio cinéfilo, sem qualquer outra consequência mais séria que não seja descobrir a excelência de Christopher Waltz; e Django Unchained é um dos piores filmes que vi nos últimos anos, salvo da mediocridade total apenas e só por Leonardo di Caprio e uma das cenas mais cómicas da filmografia de Tarantino. (reler aqui a nossa crítica)

O que separa toda esta obra de Pulp Fiction é o seu carácter de faz de conta extremo, uma manta de retalhos de outros filmes que entretêm mesmo os mais analfabetos de cinefilia, mas falham em criar uma obra dramática consistente. A “The Bride” do binómio Kill Bill é um espectro de badasserie, e pouco mais. Tarantino cria-lhe os dramas, posiciona-os no sítio certo, mas nunca os faz explodir. Aflora-os aqui e ali, como se quisesse justificar os seus excessos mais gratuitos com algo que não está bem lá. É um milagre que Uma Thurman consiga arrancar uma excelente interpretação de um personagem tão inexistente, mas isso é uma prova do seu talento como actriz e, também, de Tarantino se tornar um director de actores competente nos seus próprios filmes quando filma aquilo que escreve.

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O estilo movie-jockey de Tarantino chama a si tudo o que o realizador filtrou nesses dias de clube de vídeo, desde Sonny Chiba a Eddie Romero e Sergio Leone. É este o iconoclasta que se envolve em polémicas a propósito da estilização da violência e racismo, atirando opiniões sempre polémicas quando se trata de cinema: quando classificou Apocalypto, de Mel Gibson, como o melhor filme de 2006 (na minha opinião, grande escolha, por acaso) ou Battle Royale como a obra máxima de cinema desde 1992, quando começou a realizar filmes. Temos alguém sem medo de tornar os seus gostos conhecidos nem de vincar opiniões. Por muito polémico que seja, admita-se isto: o homem escreve diálogos com uma pinta enorme e tem cenas que são, basicamente, aulas de escrita para cinema (a cena no “La Louisiane”, no seu último filme, é um prodígio, uma pérola brilhante enfiada no meio de jóias bonitas, porém foscas).

Compreendo o hype que existe em redor de Tarantino, e o próprio contribui com a sua natureza egocêntrica e truculenta, mas não consigo achá-lo genial ou algo perto disso. É um tipo que viu muito cinema, e sabe aplicá-lo. Ainda espero dele uma outra obra-prima, quase 20 anos depois, mas não sei se alguma vez a verei. No entanto, a tarantella em seu redor certamente continuará, numa febre que remete ao tarantismo da Idade Média, onde cidades inteiras entravam numa febre de transe que retirava os habitantes da consciência da realidade. O fanatismo tarantinesco não anda muito longe disto, hoje em dia.

Já agora, para quem é fã, ficam aqui os doze filmes preferidos do senhor de Knoxville:

Apocalypse Now (reler aqui a nossa crítica)
Bad News Bears
Carrie
(reler aqui a nossa crítica)
Dazed and Confused
(reler aqui a nossa crítica)
The Great Escape
His Girl Friday
Jaws
Pretty Maids All In a Row
Rolling Thunder
Sorcerer
Taxi Driver
(reler aqui a nossa crítica)
The Good, The Bad and The Ugly
(o seu favorito)


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Bruno Ricardo

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