Numa época em que o cosmopolitismo de vão de escada é a praxis, isto é, de destinos massificados instagramáveis (e fanfarronice associada), de nómadas digitais, de importação acrítica de conceitos e práticas culturais, nada como receber uma dose daquele que vale a pena. E essa dose foi administrada no concerto dos Vampire Weekend, banda de Nova Iorque que, não obstante se ter estreado por cá há quase duas décadas e ter já passado por grandes palcos nacionais, estava em falta no anfiteatro natural de Coura. E, spoile-se já, excelente memória deixou.
Com Only God Was Above Us (Columbia, 2024) para mostrar, bem como um repertório já rico na construção de uma obra que os pode classificar como uma espécie de Talking Heads (com um piscar de olho ao Paul Simon de Graceland) do século XXI, os Vampire Weekend de 2025 são ambiciosos sonicamente e certeiros nos alvos dessa ambição. A saída do teclista Rostam Batmanglij, um dos feitores do som que revelou o grupo ao mundo, ainda que de lamentar dado o seu enorme talento (que se tem visto em colaborações com Hamilton Leithauser e Haim, entre outros), não partiu a espinha do grupo, que prosseguiu o seu caminho pelas vias da relevância musical.
Um pano preto gigante com o nome da banda em branco deixava apenas espaço à beira do palco para o trio de membros fundadores Ezra Koenig (vocalista e guitarrista), Chris Baio (baixista) e Chris Tomson (bateria) dar o pontapé de saída com uma das canções que mostrou a banda ao mundo: Mansard Roof. Interpretada com a mesma plenitude de há anos, deixou aliviados todos aqueles que estavam à espera de uma pretensa baixa de forma. Nem sequer os passos de dança de Baio foram afectados pela passagem do tempo, que aquela biqueira contra o palco é já um clássico.
Eis que na quebra-explosão de Ice Cream Piano cai o pano e toda a máquina sonora da banda é revelada: mais vozes, guitarras, teclas, violinos e sopros para plasmar em palco os arranjos crescentemente exigentes em estúdio (em particular neste último álbum) e condignamente replicados ao vivo e a cores no Couraíso. Antes de mais nada, Koenig pergunta, em português bastante decente, como está toda a gente e apresenta a banda como “os fim-de-semana dosss vampirusssh”.
Uma nota de relevo: quando Modern Vampires of the City saiu, há já doze anos, ficámos desiludidos (e não foi pouco) com o disco. Não obstante alguns pormenores e arranjos dignos de memória, o álbum pareceu-nos estafado e a banda criativamente estagnada, sem grande fôlego para mais. Pois bem, se já em 2019 em Algés o material do mesmo se saiu muito bem, aqui em 2025 foi preponderante para a qualidade do concerto, com Unbelievers e Step à cabeça.
Ambas são símbolos das características sócio-culturais da banda: a primeira uma reflexão sobre as vicissitudes (incluindo perigos) de não se crer em Deus e a segunda um gozo tremendo contra poseurs cujas afinidades musicais e políticas (o ridículo do radical chic de ontem e hoje) são, afinal, um embuste. Nenhum dos temas é novidade na música popular ocidental, mas a interpretação é única. E redime o estúdio.
O aludido substrato político e humorístico de Vampire Weekend tem paralelo na música popular ocidental recente – pouco, mas tem. Dos Titus Andronicus aos The Hold Steady, há quem faça das letras do seu material passagens em revista de conflitos (gaita, lembremos um dos álbuns do século até agora: The Monitor), mistérios e obsessões culturais ou, simplesmente, excertos da vida contemporânea urbana. A banda leva a cabo tudo isso com um toque de humor que transforma várias das suas canções em excertos de uma comédia – sem nunca tornar a banda numa joke band, porém.
Nos dias que correm, esse substrato é muito mais do que cantar sobre horchatas ou tocar polirritmos e riffs baseados na afrobeat. Depois de Modern Vampires of the City, a banda voltou ao activo com Father of the Bride (2019) que, na verdade, é mais um disco a solo de Koenig com acompanhamento ao vivo dos outros membros da banda. Todavia, deste álbum saiu Sympathy, que aqui juntou toda a força criativa que os distingue dos demais (sem esquecer que são dessa manta de retalhos urbana que é a cidade de Nova Iorque), em particular das bandas da fixeza de Brooklyn do mesmo período: cruzar o egoísmo da personagem da letra com a tríade Cristandade-Judaísmo-Islão e respectivos conflitos ao longo da História, como se George Costanza se estivesse a interrogar sobre as Cruzadas, a Inquisição e os conflitos entre xiitas e sunitas enquanto lamenta a sua calvície ao espelho.
Esta toada continuou com a banda a pegar numa New Dorp. New York, canção original de SBTRKT (na qual Koenig participa) e transformá-la num monumento em que este deixa de ser o tipo com cara de menino que faz uns acordes porreiros que soam a cosmopolitismo sónico pós-contemporâneo e passa a ser um gajo que perfaz uma das partes de uma dupla de saxofones que catapulta esta interpretação para a memória do festival, sem esquecer uma notável execução por parte da secção de ritmo e de um pedal de wah-wah que são as outras paredes de sustentação sonoras desta coisada. Um momento memorável, a que até David Axelrod, Fela Kuti e Isaac Hayes dariam o seu assentimento.
E dos velhos tempos, mais nada? Tudo, que bastou a energia dos primeiros acordes de A-Punk para se levantarem os pés do chão e um coro de vozes anfiteatro acima e abaixo. Do baú das recordações saiu também Oxford Comma (tipo de vírgula que, recorde-se, não se usa no português), mais um exemplo do humor e da curiosidade intelectual da banda (ou não fossem todos antigos alunos da Universidade de Columbia, no seu tempo um bastião de saber) que são a sua marca registada desde o primeiro minuto.
A viagem pela mundividência sónica dos Vampire Weekend terminou com Hope, uma grande canção do seu cancioneiro mais recente. Com direito a um último elogio a Coura e a um pedido da banda ao público para acompanhar o refrão de uma canção que é praticamente um lamento sobre a polarização política exasperante a que se assiste, foi mais um auge num concerto cheio deles e teve um final condizente, com cada um dos músicos a sair pelo meio do palco enquanto a música se ia apagando, mas não a esperança (que não era por um encore). Ponto extremamente a favor dos Vampire Weekend: dizerem o que têm a dizer com toda a categoria, sem necessidade de proselitismos nem evangelizações políticas – isso fica no âmago dos membros do grupo e a interpretação da mensagem a cargo de quem ouve.
Com tudo isto ficámos com mais um dos concertos do festival (e do ano) no saco. Faltou muita coisa? Faltou, mas é o preço a pagar por uma obra que se transfigurou ao longo dos anos. Gostaríamos de ter testemunhado canções como Giving Up The Gun ou Cape Cod Kwassa Kwassa, mas, perante a qualidade da interpretação (arranjos incluídos) do que se viu, longa vida aos Vampire Weekend, cromo que estava em falta na caderneta de Coura. Que voltem sempre, com ou sem vírgulas.