Reportagem


Tim Hecker

gnration

09/05/2016


© Hugo Sousa / gnration

Começar a semana com um concerto é óptimo. Que nesse concerto possamos ouvir a música de Tim Hecker, melhor se torna.

A passada segunda-feira foi, nesse sentido, um dia especial. Depois de um repentino cancelamento na última edição do Semibreve, a cidade de Braga tinha algumas contas a ajustar com o canadiano. E percebe-se porquê: desde 2001, quando lança Haunt Me, Haunt Me Do It Again, torna-se um nome referência na electrónica experimental, com discos seminais dos quais continuaremos a falar daqui a dez, ou vinte anos. Nas suas mãos, o ambient não é apenas um género de criação escapista, de composições passivas que se contentam sem o esforço de captar a nossa atenção (vide Brian Eno em Ambient 1: Music For Airports, por exemplo); pelo contrário, a sua música é extraordinariamente densa, textural, revelando-se multifacetada apenas após a audição mais atenta.

No entanto, Hecker pretende marcar uma diferença, dentro do seu ouevre, com Love Streams, o seu primeiro a ser editado com a chancela da 4AD. O mote do concerto no GNRation está neste disco, e à estética que lhe veio associada.

“What do you do when you’re known for making a certain type of work? Do you have to make a more intense version of that? For me, the way through was not stacking things louder and heavier but working in a different way.”*

Ainda antes de entrar no recinto da Blackbox – a sala onde decorrem os concertos, no edifício – já se sentia o ar carregado, ligeiramente enevoado: Hecker inundou a sala de fumo, e, no palco, nada se via além de um cordão de luzes, a delinear uma barreira que separou o músico da sua audiência. A partir desse seu reduto, isolado visualmente do resto da sala, comandou a noite. Love Streams teve tempo e espaço para brilhar.

“Part of darkness, part of this, is to circumvent the silhouetted, hunched ego of the knob-turner.”

Claramente, a ausência de uma concreta componente visual é intencional; obriga-nos, de uma forma mais esclarecida e consciente, a interagir sensorialmente com a música. Na obra de Hecker, a composição textural sobrepõe-se à procura de uma melodia; é mais importante o como, do que o quê. Se utiliza instrumentos tradicionais, muta-lhes o som até se tornarem irreconhecíveis; se envereda pela liberdade da electrónica, esforça-se por surpreender e evitar o previsível. De facto, é impossível discernir, em Love Streams, a natureza do som produzido; as fontes analógicas soam tão processadas como as digitais. A voz humana, inédita na carreira de Hecker e que provém de composições corais renascentistas, é ironicamente profanada pelo auto-tune e múltiplos processos sonoros (pode pensar-se numa mistura entre Ian William Craig, músico que trabalha muito a voz, e o último trabalho de Oneohtrix Point Never, Garden of Eden (2015), com quem Hecker colaborou no disco Instrumental Tourist, de 2012).

“For me now, it’s a way of almost painterly focusing on grays, or some muted pastel, or making things hyper-color while still being vibrant. I don’t know.”

Quanto mais se investiga sobre o músico canadiano, mais nos apercebemos que Hecker é um artista inteligente, e não dissocia a sua música de uma certa intelectualidade. Paralelamente à sua carreira artística, trabalhou recentemente num doutoramento em noise; ou, melhor dizendo, investigou as ocorrências de fortes manifestações auditivas no passado, onde as pessoas se juntavam para ouvirem sons de volume elevado. A sua música, necessariamente mais abstracta que manifestações artísticas mais convencionais, aproxima-se desse cânone que o próprio investigou. E por extensão, parte dessa celebração está presente nos seus concertos; somos necessariamente atraídos para essa espécie de cultura: gente, numa sala, a ouvir som. E bem alto. É algo poético, não?

Voltamos à passada noite de segunda-feira. Um pouco depois do início do concerto, a música sobe de volume num crescendo controlado; sente-se o badalar do baixo, a ressoar à volta e em nós. O som deixa de ser apaziguador – torna-se intrusivo, pontuado pelos intermitentes glitches de voz, ou duma estranha percussão. Do nada, tudo se transforma num assalto aos sentidos. As vozes, que nunca se chegam realmente a libertar dos fardos que se lhes impuseram, sugerem a impossibilidade de comunicação, uma ideia que, de resto, parece permear todo este disco. A confusão sonora à qual Hecker nos sujeita, embora não seja abertamente desagradável, é desconcertante.

“I think I’m just interested in hypnotic spaces that I want to return to, things that yield repetitive listens, things that show their age and the date in which they’re made but also transcends those date markings”

Com isto, valeu a pena ter esperado mais uns meses para ouvir a música de Tim Hecker em Braga. Love Streams, ao vivo, aposta na força da sua dissonância, e nos tais ‘espaços hipnóticos’ por onde inevitavelmente passámos durante os ininterruptos quarenta e cinco minutos. O concerto, já passou; este disco há-de ficar connosco nos próximos tempos.

*  citações retiradas de entrevistas concedidas à Fader, TinyMixTapes, Pitchfork, e Rolling Stone.


sobre o autor

Alexandre Junior

Interesso-me por muitas coisas. Estudo matemática, faço rádio, leio e vou escrevendo sobre fascínios. E assim o tempo passa. (Ver mais artigos)

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