Há bandas que só se vê uma vez na vida e que quando as vemos tocam exactamente com esse facto em mente. Foi isso que fizeram os The Jesus Lizard, mítico quarteto norte-americano que nos abençoou (com latas de cerveja) com um concerto inacreditável no Primavera Sound Porto.
Renascidos da cova dos Scratch Acid, para além de cultores da infâmia sónica que são, os The Jesus Lizard são ainda, como dissemos na antevisão do festival, uma banda “à Primavera”, isto é, uma banda influente que geralmente nunca passou por cá e que muito provavelmente não o voltará a fazer, tornando o concerto no festival numa ocasião única para se constatar o porquê do seu estatuto. Dada a sua veterania e existência inconstante, a noite seria mesmo irrepetível – nem que fosse porque o caos da actuação não deixaria pedra sobre pedra.
Coisa rara nestas coisas de reuniões: a formação que tivemos diante de nós é a mesma de clássicos como Goat e Liar. David Yow, o maestro da rebaldaria, Duane Denison, o tipo que com fonocaptadores single coil produz mais ruído do que vinte bandas de metal juntas, David Wm. Sims e as suas linhas de baixo gigantes e Mac McNeilly, cujo espancamento de timbalões é o mais perto que um ser humano pode estar de ser uma arma de destruição maciça. Hipérbole? Nem por isso, como se verá.
Como maneira de nos recordarem que são sobreviventes dos excessos dos tempos do grunge (não sendo confundíveis com bandas do género) e adjacências sónicas, dão o pontapé de saída (as nossas cabeças serviram de bola) do concerto com Puss, oriunda de um single a meias com os Nirvana e também constante em Liar. Salta logo ao ouvido que em palco também soam a uma banda cujos registos foram gravados pelo saudoso Steve Albini: bateria a liderar a carga e a fazer tremer o chão e uma guitarra que grita mais ritmo do que melodia. Num concerto que era para bater recordes, Yow resolve estilhaçar logo um ao fim de quarenta e cinco segundos: atirou-se às águas humanas num furioso crowd surf.
Com tantas expectativas, estaríamos perante uma banda que ficou presa a glórias passadas e que só consegue viver delas? Só se se considerar que um disco do ano passado como Rack é já algo de um período distante; dali saiu Grind, canção portentosa na instrumentação e abstracta sobre o idadismo e as cambalhotas da vida. Inclua-se também nestas as que se vai vendo no crowd surf, cujos adeptos pegaram muito cedo ao serviço neste “turno”, seguindo o exemplo de David Yow.
Este, de camisa branca imaculada (até ao fim de umas três canções, que a Super Bock da sua lata voou para todo o lado) e botas de cowboy, é um mestre-de-cerimónias cuja palavra é o caos. É um dos grandes vocalistas da História da música popular, um vulcão com pernas que mesmo já perto da idade da reforma (para as pessoas normais, que por ele mal passou o tempo) continua a investir contra tudo o que mexa e que fez do apoio do microfone e do monitor bodes expiatórios para pecados imaginários. E também não se esqueceu de Donald Trump (nem de um antigo senhorio em Chicago, “um cabrão daqueles”), pedindo que o público lhe fizesse companhia para, em uníssono, mandar o actual presidente dos Estados Unidos fornicar-se.
A eliminação da fronteira entre melodia e ritmo pela guitarra de Duane Denison cedo atinge o apogeu, mantendo-se assim até final. Como banda que não perde tempo e que está possuída por uma vontade dionisíaca, eis Mouth Breather, a canção que pode resumir os The Jesus Lizard. O humor ácido da letra sobre um Steve Albini lixado com a destruição da sua casa por parte de Britt Walford (baterista dos Slint) e a tríade rítmica guitarra-baixo-bateria perfazem aquela que foi a canção que introduziu a banda no cerebelo de muita gente – e desejo de longa data de muitos de a ver ao vivo (oi).
Os riffs doentios e as mudanças de tempo de Boilermaker só nos inspiram palavrões de profunda admiração. O baixo de Sims chocalha-nos os ossos e McNeilly continua a destruir calorias, do próprio e nossas. Ao nosso lado, membros de uma certa (e muito boa) banda de post-hardcore nacional decerto que tiram notas mentais enquanto suam no pit – afinal de contas, este concerto também é uma aula da cátedra do noise.
Ainda sobre riffagem tramada, quando Gladiator começa a desenvolver não podemos concluir outra coisa senão que foi para isto que o ruído e as guitarras foram criados. Se o concerto era já memorável, daqui saltou para o imprescindível para se contar a história desta edição do festival.
Novo regresso a Rack, desta feita com What If?. Fazendo de um monitor de palco um banco e encarnando o modo “cantautor-em-sessão-intimista” (se encararmos o nosso capataz como um contador de histórias), Yow elenca uma série de interrogações sobre identidades escondidas de alguém saído das profundezas da paranóia de Henry Rollins de tempos áureos enquanto a banda desce (salvo seja) ao subtil, nem que seja para retemperar os ossos e as carnes antes de novos vagalhões sónicos.
Por falar nisso, não podia faltar Seasick. Se a maioria dos artistas que se aventura a surfar por cima da plateia espera que os levem por ali fora como se estivessem a flutuar num agueiro, David Yow, qual Michael Phelps do Parque da Cidade do Porto, decide-se a dar umas braçadas por cima de todos nós enquanto grita o refrão de alguém indeciso nas suas capacidades natatórias (“I CAN’T SWIM, I CAN SWIM”) e a banda, bem, essa toca noise tipo bandeira vermelha para afastar todos aqueles que não sejam destas praias.
Há umas boas décadas, cantava o tio Alfredo Marceneiro que cabelo branco era saudade; o cabelo branco dos The Jesus Lizard significa apenas para se temer quaisquer gajos mais velhos que triunfem há dezenas de anos onde os mais novos supostamente seriam reis (mais sobre isto no segundo dia, através dos seus discípulos Chat Pile). Limitando-se a fazer aquilo que os grandes (porque influentes) nomes fazem, que é mostrar o domínio total sobre o seu métier, deixaram-nos destruídos do corpo mas instruídos na alma.
Todo o caos e todo o ruído a que se assistiu deixou-nos simultaneamente de queixo caído e de peito cheio. O noise é mesmo um dos prazeres da vida, até porque, como bem disse Jack London na sua imortal lição, andamos cá para viver e não apenas para existir.