Reportagem


The Body + Full Of Hell

Foi para isso que, ali ao lado na Rua do Arsenal, se afrontou decisivamente o regime, fez anteontem 42 anos.

Musicbox

25/04/2016


Em 2016, é quase inimaginável conceber, num quadro mental e cultural de um País democrático e (aparentemente) livre, que os gostos e actividades culturais dos cidadãos sejam proibidos por uma entidade pública que se norteie por princípios políticos e até religiosos avessos à liberdade – em suma, que haja censura. Pois bem, passaram exactamente 42 anos desde que assim deixou de ser em Portugal, com alguns soluços e polémicas pelo meio.

O coro da Primavera entoou a liberdade de se poder escolher entre ficar em casa a ver a novela, ir à igreja orar ou ir a um concerto cujos artistas proclamam que o Homem está destinado a falhar e que a morte é o único desejo que se tem – e vontade de morrer, haverá?

Num fim-de-semana prolongado que serviu para rever fotografias do dia do golpe de Estado (e não revolução, que a mudança veio de dentro do próprio Estado, caros leitores) e reler alguns textos da época, resolveu-se gozar a liberdade cultural consagrada nos artigos 37.º/2 e 73.º/1 e 3 da Constituição e rumar ao MusicBox, local da primeira data dos norte-americanos The Body e Full of Hell. Em vez de cravos, levou-se tampões para os ouvidos, que a tormenta seria “daquelas”. Dentro do espectro da actual música pesada, ambas as bandas destacam-se por serem caldos bem mexidos de influências e sons, não havendo vergonha de guinchar e grunhir, de variar a percussão e de brincar com samples e ruídos de instrumentação vária, sem falar na colaboração com artistas de outros géneros.

Abriram a noite os Full of Hell, banda que chegou para espalhar uma sopa não de pedra, mas de pedradas. Blast beats e mudanças bruscas de ritmo, sem quaisquer remorsos em recorrer aos guinchos do black metal e aos grunhidos do death metal, com a inquietação em palco de quem acabou de ver uma aranha superior à tolerância da sua fobia. A lição de brutalidade (bem estudada em colaborações com mestres como Merzbow/Masami Akita e com os The Body) vai para além do mero grindcore, com Dylan Walker a recorrer à electrónica e Spencer Hazard a dar o mote com drones e provocações em forma de acordes de hardcore.

Cerca de meia hora passada em revista pela curta mas proveitosa carreira dos Full of Hell – desde Roots of Earth Are Consuming My Home até Full of Hell & Merzbow. Curvas e contracurvas de truculência, com direito a dispensáveis “ventoinhas” num mosh pit improvisado, rapidamente domado pela noção.

Vessel deserted? Não, que (parafraseando Fernando Pessoa) cheios de Inferno, não temíamos o que viesse, pois viesse o que viesse, nunca seria maior do que as nossas almas. Mas estávamos enganados, que era bem maior.

Os The Body já eram de difícil categorização antes do lançamento, em 2016, de No One Deserves Happiness (talvez perto de uns Eagle Twin, quando muito); com a tremenda mistura que é este último álbum, partiram a gaveta. Se as nuances pop (se a Taylor Swift tivesse barba e tocasse guitarra, vá), brincadeiras com trombones e 808s e falsetes do álbum se perdem ao vivo, canções de outros álbuns, como A Curse, expandem-se e envolvem-nos como é impossível em disco, que nem uma jibóia de decibéis.

Chip King e Lee Buford, agora residentes em Portland, são experimentalistas da música pesada – ninguém soa como eles em palco e em disco. Se a agonia avassaladora que ouvimos e vemos em palco lembra algo entre o sludge e o doom, há sempre um acorde ou um pormenor da caixa de surpresas de Chip King (como os samples) que mudam toda a perspectiva. Apenas uma constante: o ideário da morte, incluindo no fundo de palco: “I want nothing but death”. Depois da misantropia dos Full of Hell, temos o ideário de suicídio dos The Body.

Em cerca de trinta e cinco minutos se desenvolveu o abraço esmagador daquele corpo, que ora berrava a agonia a plenos pulmões, ora sussurrava com samples de cultos no meio de nenhures. Não foi preciso acelerar, que uma Lathspell I Name You é suficiente para manter toda a gente presa ao palco, tal é o poderio que dali emana.

O clima no Noroeste dos Estados Unidos deve ter qualquer coisa de especial, que os The Body (que até com Haxan Cloak colaboraram, no magnífico I Shall Die Here) e bandas como os Wolves in the Throne Room mantêm-nos interessados no que vão fazer a seguir, para além de darem concertos dignos de uma lista de campeões de um dado ano. Não queremos só a morte como os The Body apregoam (se se fartarem disto ainda abrem uma funerária), só mesmo a liberdade para testemunhar concertos destes.

Foi para isso que, ali ao lado na Rua do Arsenal, se afrontou decisivamente o regime, fez anteontem 42 anos.

Galeria


(Fotos por Cláudia Andrade)

sobre o autor

José V. Raposo

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