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Detroit é uma cidade perfeita para o post-punk. Tem rica tradição musical, infra-estruturas decadentes, péssimas perspectivas, toda uma comédia de erros e de maldades – por parte de políticos, administradores de empresas e sindicalistas – que só pode ter por corolários a fuga de populações, o protesto, a resignação ou, se tiverem algum talento artístico, a formação de uma banda. Dali germinaram os Protomartyr, banda com uma década de existência, quatro álbuns e uma obsessão pelo declínio.
O vocalista, Joe Casey, é um monumento aos anos oitenta, o homem providencial para esta missão: é quase um clone de Bob Mould, abrasivo na voz como Mark E. Smith, sincero na raiva e enternecedor nos seus maneirismos (bem que podia acompanhar Norm e a restante malta de Cheers nuns finos ao fim de uma jornada). Pouco ou nada interessa aos Protomartyr se vocês os entendem; afinal, é a escola dos Clash do primeiro álbum: se vocês não percebem o que está a ser cantado (?!) então é porque não foi composto para vocês. Pirem-se, vão a um qualquer bar da moda fingir que gostam de The National ou assim.
Salutar casa cheia que viu os quatro do Michigan entrarem em palco pelas 22h45, que nem quatro turistas num after, com demasiado jet lag e álcool em cima. Quatro músicos em palco, umas dez cervejas e um copito de uísque para o grande e acérbico declamador de blazer levar a cabo a sua missão. Joe Casey (orador), Chris Ahee (guitarra), Scott Davidson (baixo) e Alex Leonard (casa das máquinas/elevador hidráulico) vieram mostrar que o post-punk continua válido na grande roda da História da música alternativa.
Sem demoras, “My Children”, de Relatives in Descent (2017); fantasmagórica e litúrgica, a proclamação de um pretenso pai de família que desdenha do seu próprio sangue. Revelam-se já Leonard como casa das máquinas basilar no som da banda e Ahee como alguém que conseguiu actualizar essa coisa das “guitarras angulares”, sem precisar de ser do math rock ou de igualar mediocridades que se dizem post-punk, mas que não passam de lixo panfletário.
A primeira impressão para quem segue a banda é a mais óbvia: os Protomartyr são ainda melhores ao vivo, com todo um poderio e uma agressividade que lhes permite dar um salto para territórios equiparáveis a uns Pop. 1280. Afinal, o alcatrão esburacado e gasto (mas orgulhoso) de Detroit pode muito bem ser transposto para disco e para o palco. Com maior berreiro chegariam a MC5.
Já tardava a evocação a Mark E. Smith, com I Forgive You. AAAAAH YOU HERETICS, CHEATS, cospe Casey com completo despudor a letra da canção. Falámos em Smith e agora em Bob Mould: não é só na aparência física que Casey se assemelha a Mould; também em Wait, canção nova que anda a ser testada na estrada, parece que estamos perante o lendário vocalista dos Hüsker Dü e dos Sugar, dado o timbre de Casey.
Num alinhamento bem escolhido, sobressai a violência de Windsor Hum: marcial ritmo de Leonard, ruído de Ahee no sítio certo e toda uma série de lamentos de Casey sobre o ter e o querer. EVERYTHING’S FINE, canta ele, cínica e falsamente, como um homem de meia-idade desesperado; doravante, ouvir isto em disco já não será a mesma coisa, dado o estoiro ao vivo. O público continuava a responder desde o início a um alinhamento relativamente transversal à obra dos Protomartyr – decerto que a Patrícia de 1986 aprovaria com esgar de nojo.
Retrato de um diabo enquanto jovem, The Devil in His Youth, vincadamente punk, visto à distância dos anos de Joe Casey neste mundo. Se uma canção lida com a juventude, o lo-fi de 3 Swallows é um lamento etário: I’m getting old/Worse than before/Un-vincible/Close but not pitiful, a nós apresentado com a pantomina da garrafa na mão ou no bolso de uma personagem resignada. Lá fora, o tempo também provava que estas três andorinhas não trouxeram Primavera alguma.
Ao fim de quase uma hora de concerto, o aviso: Don’t Go To Anacita. Perfeito relato sarcástico sobre a vidinha do hipócrita pseudo-cosmopolita deslocado da terra que emborca kombucha e vocifera armado em progressista. Mantenham-se longe de Anacita, se tiverem noção, e ouçam antes Come and See, exposição oral sobre a guerra perdida que é a vida. A batalha do set principal dos Protomartyr findaria instantes depois, com Half Sister.
Por entre elogios à banda-fantasma de abertura (“belíssimo baixista”, segundo Casey) e a umas iscas de porco – finamente cortadas, como mandou João César Monteiro, com mais uma garrafa de cerveja a sair do bolso do blazer, arrancava o encore com “duas das nossas músicas mais merdosas” (que mentiroso): Why Does It Shake? e Scum, Rise!
Desvalores raivosos da vida, invectivas cheia de bílis, sendo a segunda uma biografia de alguém que bem pode ter vivido anonimamente por Detroit, por entre as ruínas da Estação Central do Michigan, da ignomínia da 8 Mile, do desemprego crónico e das conquistas dos Red Wings de Steve Yzerman. Escumalha do post-punk, revolta-te. Com humor, preferência.
No meio de tanto desgaste da revoada post-punk pós-2000, os Protomartyr são do melhor que apareceu por aí. Tocando para nós no meio de ruas que ainda há poucos anos eram um retrato do declínio urbano nacional, mostraram o contraste cronológico-qualitativo do post-punk: caríssimos, não vale a pena chorarem em vídeos do YouTube (ou em bares históricos ali ao lado) que antigamente é que era bom, visto que mais vale uns gajos inspirados de Detroit em 2018 do que aturar quem não tem mais para oferecer hoje em dia do que um micro-ondas destruído e que vive da inspiração de ontem.
A guerra da vida continua a perder-se hoje, as ruas continuam esburacadas e as invectivas estão à espera que as digam, com ou sem cervejas ao bolso.