Reportagem


IDLES + JOHN

Suada dialéctica de porrada e amor-próprio em comunidade.

Lisboa Ao Vivo

27/11/2018


No meio da decadência, aparecem umas fénix capazes de elevar o espírito e a esperança. Tracemos um paralelo com o Reino Unido das últimas décadas: entre a destruição de Thatcher e os crimes de guerra de Blair, a outrora poderosa Albion é (salvo algumas cidades) agora um monte de lixo deprimente onde se acumulam latas de Carling, cigarros e senhas do centro de emprego. Os Idles são uma dessas fénix saídas dos destroços da cultura britânica actual. Inconformistas, fazem da expressão “isto é para teu bem” lema artístico e de vida – e nós tivemos a sorte de levar nas ventas deles duas vezes em 2018, a primeira no Primavera Sound Porto, até porque há um grande Joy as an Act of Resistance (Partisan; 2018) para mostrar.

Primeira parte assegurada pelos John, duo de Joões do Sul de Londres, de rock sem peneiras e que conta já com vários LPs e singles. Contentes por estarem ali, deram meia hora de mescla de Japandroids (sem a melodia nem o engenho destes), Royal Blood (bem melhores do que estes) e da voz do saudoso Lemmy – e sarcasticamente disseram-se importadores do “bom tempo do Sul de Londres”.

Palco limpo, eis a hora dos Idles: Joe Talbot, Adam Devonshire, Jon Beavis, Mark Bowen e Lee Kiernan; o quinteto de Bristol (que tanta boa música nos dá) que anda desde 2011 a afiar adagas em forma de canções de urgência e êxtase sanguíneas. Os Idles são uma banda trabalhadora, num sentido de operariado da música popular, como os Black Flag o foram: andam (mesmo) muito em digressão, são prolíficos, suam a camisola em palco e ainda vão vender e autografar discos e demais tralha no fim. E abraçam-nos metafórica e literalmente.

Talbot e companhia carregam o peso de narrar com fúria e guitarras o declínio do Reino Unido  – acompanham-nos bandas como os compatriotas Shame (bem aparecidos foram em Coura). Se traçar um paralelo com os cursos de ‘77 e ‘82 do punk é lugar-comum e fácil, vá-se buscar os angry young men de John Osborne e companhia.

IDLES

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Não têm o substrato intelectual e histórico dos Titus Andronicus, mas não lhes ficam atrás em intensidade. E foi isso que vimos a partir das 22h05, com um colosso chamado Colossus: punhos no ar e sentimo-nos como o Stone Cold Steve Austin a esmagar cervejas em face alheia, ainda que sejamos nós a levar com o stunner. Mal refeitos, nova marreta: Never Fight a Man With a Perm, um monumento contra azeiteiros jardados e com dinheiro desmerecido.

Oriundos da tragédia – o vício da droga de Talbot e uma gravidez da companheira que acabou num nado-morto – e da opressão urbanística do cimento dos housing estates do pós-guerra, recorrem à mais elementar positive mental attitude de Napoleon Hill e do hardcore da cepa dos 7 Seconds e dos Youth of Today para nos convidarem à comunhão em cada uma das suas actuações e naquilo que contam em estúdio.

Não acreditem nos Idles quando vos dizem que não são uma banda punk ou hardcore; aquela canção é Bottled Violence dos Minor Threat actualizada para o contexto engatatão-anabólico. Da violência física vamos para a violência de um trabalho que não liberta nem dignifica em Mother, momento Stabat Mater dos Idles e homenagem de Talbot à saudosa mãe. Não é apenas a um Tory que mete medo gente informada: qualquer tiranete – à esquerda e à direita – teme quem saiba mais do que ele.

De surra, dedicam I’m Scum a todos os scumbags presentes. A cabronagem que enchia o pit do LAV correspondeu com fúria ao rasgar de vestes de que, para os tiranetes desta vida, somos todos números e alvos a abater, somos todos escumalha mal paga, que vive em cidades que de abandonadas viraram poiso de patos-bravos. E ninguém quer saber do próximo James Bond.

IDLES

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Talbot admitiria que a banda tem “quatro músicas conhecidas” e Danny Nedelko é uma delas. Escorreita e directa como o futebol de Alan Shearer (atentem nos calções do baixista), é um conto da diversidade da massa de estrangeiros que povoa o Reino Unido, sob a égide de um lingrinhas ucraniano (e de Yoda) – querendo ser anti-nacionalista, acaba por ser do nacionalismo da diversidade, com um dos melhores refrões do ano. Resulta ainda melhor ao vivo, uma ode à alegria de todos – talhantes, atletas, mães, todos seremos Nedelko. Sabemos que estamos diante de malhão quando até a voz mais reconfortante das manhãs dos mais alternativos salta rejubilante no fragor.

Não discernimos se o elogio ao público nacional é sincero ou não, mas, em 24 anos desde o nosso primeiro concerto, foi a primeira vez que se viu uma banda estrangeira elogiar a capacidade de resolução pacífica de conflitos da rapaziada: “de empurrões passaram para abraços”, exclama Bowen, meio enternecido. Logo ele, que parece Eric Idle (piada intencional) num sketch de vendedores de erva de setentas, de tronco nu saltando como um arlequim e nadando pelo público. É, citando Charlie Kelly, um wild card.

De facto, os Idles envolvem toda a comunidade – humana e não humana. Não sabemos se um sapo de peluche pagou bilhete ou não, mas levou uns cânticos futeboleiros de Talbot (“SAAHPO!”) para contar aos girinos. Também nas grades houve um suposto membro de canal televisivo a anunciar-se como “António Costa” e a fazer de chato-que-pede-aquele-êxito-a-toda-a-hora, o que levou ao riso e ranger de dentes de Talbot, com a fugaz amizade entre ambos selada com um aperto de mão.

Ora, como a igualdade é de rigueur para a banda (veja-se a t-shirt da iniciativa Safe Gigs for Women, de Beavis), haveria que abrir o palco ao público feminino; o cortejo de miúdas substituiu Kiernan e Bowen, que foram empoleirar-se no público enquanto uma delas assegurava os acordes. Também nesta senda entrou a PMA de Talbot, ex-viciado, que ecumenicamente lançou a esperança para quem foi embrulhado pelo veneno do vício: todos são doentes, todos precisam de ajuda. E todos deveriam dar-se bem nesta “Europa”, pelo que atirou mais uma dedicatória a Portugal, aos lisboetas e aos seus “irmãos” europeus.

IDLES

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Vimos toda uma singular banda: Talbot em intrépida pose de comando (ou rindo-se como um tresloucado, agarrando nos cabos como um Rollins ou um Morris) e com a sarcástica t-shirt do musical (lol, musicais) Cats, ali junto ao Tejo emulando um Álvares Cabral desbravando a britishness e a alma contemporâneas, sendo o microfone um coração metafórico nas suas mãos e a boca um PA do que lhe tolhe a vida. Kiernan e Bowen os estarolas guitarristas simbióticos, cujas Fender lhes causam espasmos e a secção de ritmo de Beavis e Devonshire frenética, a tarola daquele expiando os pecados da banda.

Ah, e a iconoclastia, amigos Idles: antigamente, segurança era pau-mandado e cobardolas, agora é garante de paz; e o bar serviço público, mantendo a malta ceguinha. Não entrarão aqui os Idles em contradição? Talvez, que ninguém é perfeito. Para onde irão artisticamente? Arriscarão ou serão sempre comida de conforto punk, como os Metz ou Pissed Jeans? Ou descerão ao raquitismo ideológico?

Mácula única: faltou All I Want For Christmas Is You; logo agora que estamos a menos de um mês do Natal. Bem, a prenda final foi um muro de ruído, de duelo de pedais e guitarras e um Bowen a berrar numa bad trip. Encore? Não há corridas com voltas extra para os cabrões atrevidos e de peito feito de Bristol, até porque quanto mais obrigarem Talbot a falar a menos música terão direito – a taxa Talbot, portanto.

Canções como 1049 Gotho e Samaritans (que agressivamente bela execução, com o som a ajudar) são duas faces da mesma moeda: depressão e masculinidade tóxica andam de mão dada e oprimem ambos os sexos. Pelas palhetas, cordas e baquetas dos Idles vemos as lágrimas por detrás daquelas máscaras – e ouvimos as da sua versão de Cry To Me (Solomon Burke).

Amem-se a vocês próprios e dancem até o Sol rodopiar com os Idles, é o que fica da carga ocorrida no Braço de Prata. A banda sensacionista e sensacional deixou marca, neste quase infindo torvelinho de punk: na carne e no espírito de gentes de larga faixa etária, que ali aprendeu que a alegria é resistência e que precisa de forte e terno abraço comunitário contra o brutalismo dos indignos. O cabedal dos justos vencerá o betão dos injustos, com dois ou três acordes e crowd surf pelo meio. Porque, assim, no way, we shall never decay. Ah, valentes.

Galeria


(Fotos por Hugo Rodrigues)

sobre o autor

José V. Raposo

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