Reportagem


ID - No Limits

A música urbana de hoje (e um pouco da de ontem e talvez da de amanhã) foi ao subúrbio mostrar-se

Centro de Congressos do Estoril

30/03/2019


© ID No Limits

Chegado o segundo dia, a previsão era de tempo leve de Primavera e pesos pesados no recinto. Arca à cabeça, seguido de Kamaal Williams e de uns Little Dragon e Dino D’Santiago.

Também com produto nacional começou o segundo e último dia do ID. Os portugueses Meera apresentaram a sua house/synthpop/etc. fofinha, devidamente apadrinhada pela Discotexas de Xinobi e Moullinex, num par de singles do ano passado: Fine Without You e Little Of Your Time, bem como uma remistura de Malamente, de Rosalía. Mereciam mais gente na sala? Sem dúvida (cambada de preguiçosos que chegam tarde), mas a trabalhar assim terão toda a gente levantada e a dançar da próxima vez.

Em noite de vitória do grande Sporting em Chaves não houve só #ondaverde na cidade flaviense. Kerox, produtor português, apresentou-se como se tivesse chegado de Meereen e deu-nos as BPM da guerra, iluminado por uma luz verde que mais parecia de uma tochada – para mais com uma malha acabada de sair, Pressure.

Autor de Sarna (Xita, 2018), oscilou entre o technão de partir pescoços e, por vezes, a um neo-kuduro de interesse. O maior elogio que se pode atribuir ao que foi visto na sala com nome de vodka é este: o pouco público presente (tendo o número crescido um pouco, diga-se) e aquele que se refastelava nos pufes da sala ao lado foi um privilegiado que terá assistido a mais uma aparição do som da Lisboa electrónica contemporânea.

Ali ao lado, o primeiro nome grande da segunda noite encheu o auditório (e com toda a razão, diga-se). Kamaal Williams, membro dessa espécie de nova geração do jazz mais acessível, a par de Kamasi Washington, BADBADNOTGOOD (que somam dois magníficos concertos em Portugal), Comet is Coming e Sons of Kemet, mobilizou o seu power trio e toda a pujança dos seus teclados e órgãos.

O que começou por aparentar um ensaio deu lugar a um crescendo de complexidade rítmica e melódica, a que a plateia aderiu sem reservas, saçaricando ao som do que lhe ordenava a secção de ritmo. A espaços lembrando Thundercat e banda e a outros espaços o jazz funkeiro a que as ruas peçonhentas do Reino Unido dão direito.

Ouça-se pois The Return (2018), em especial Salaam, High Roller e LDN Shuffle e espere-se pelo reencontro em Coura lá para Agosto, quando apanharmos novamente o loop do trio de Kamaal Williams.

Dada a sobreposição de horários, tivemos de deixar Williams e rumar, às 22h00, para as grades do palco principal/”grande auditório” para testemunhar Arca. Sim, testemunhar, porque esta discípula dilecta de Bjork, Madonna de noventas (Erotica à cabeça) e Klaus Nomi e que ombreia com nomes do presente como SOPHIE trouxe não só a menos ortodoxa actuação do ID como quiçá a mais importante.

De saltos altos e na maior fluidez (ou androginia, se preferirem) de género, Alejandro anuncia-se como uma Gloria Swanson da música experimental, proclamando reiteradamente que só há um tipo de bruxa. Pousa a mala, dali saiu uma garrafa de Veuve Clicquot (afinal de contas, era sábado à noite, dia de paródia) e começa imediatamente a arranhar a distorção, em espasmos agressivos dignos de um Buffalo Bill de O Silêncio dos Inocentes (faltou Q Lazzarus).

As flores caídas no ecrã e no chão do palco eram simbólicas do desvario retratado e os strobes piscam furiosamente enquanto a voz de Arca ecoa em drones pelo pavilhão. Bem, esta foi a parte vocal, porque na cénica tivemos direito a imperial cosplay (ligeiro) do que em tempos fez Deus Nosso Senhor GG Allin em palco (para a vossa imagem mental ficar completa) e à leitura de um manifesto sobre dor e criação artística. Sólo hay un tipo de bruja, o de Arca.

De caminho e como fez questão de dizer no dia seguinte, numa espécie de prelecção nas Carpintarias de São Lázaro (na qual partiu um salto, uma jarra e voltou a dar nos drones de voz), haveria que esbater a relação entre público e artista. Pois bem, salta do palco e vai para uma plataforma do outro lado do recinto (e as centenas na plateia em cómico êxodo, diga-se), elevando-se e cantando como faria(m) Marilyn (Monroe e Manson, atento o corpete de Arca) numa plataforma, para depois descer e montar uma espécie de circle pit onde pediu ainda mais eco. Sai que é sua, Taffarel, perdão, Arca.

Este é o mundo de Arca, um de distorcida introspecção; de fetos em ecrãs e gatinhos fofinhos no outro. Dalí e Gala num só combo de dissociação surrealista dentro de uma misturadora com imaginário de jogos de vídeo e da transformação corporal como arte primitivista de Fakir Musafar. No dia seguinte, nas Carpintarias de São Lázaro (onde encarnou Swanson novamente e partiu um salto, uma jarra e voltou a dar nos drones de voz), Arca explicou a importância que o anime de Neon Genesis Evangelion (e dicotomia pessoa-máquina, em voga nestes tempos de discussão do que é a inteligência artificial) e que os jogos de vídeo tiveram e têm na sua abordagem artística e mesmo na sua mundividência.

Dissociação e distorção: de imagens (por parte do seu companheiro, Carlos Sáez), de samples de música de câmara e de Madonna e Garbage (fomos levados de volta a 1996/97, com uma Vow que levaria a saltar na cama), transformando-se a ponta final num DJ set. Cá esperamos pelos próximos capítulos da obra de Arca, que esta foi fundamental na História do ID No Limits de 2019.

Daí para a frente, o público teve direito saçaricar com Dino D’Santiago e a recuar a 2008/2009 e à synthpop orelhuda e solarenga dos Little Dragon (confessamos não a distinguir de outra oferta da altura, como Little Boots). Na sala com nome de marca de cerveja, ouviu-se uma pequena incursão pela História do hip hop nacional com a curadoria Parkbeat (do bar lisboeta Park), que convidou um vulto como DJ Kronic, um dos mais antigos DJs do hip hop nacional (ouçam-se as colaborações com Chullage) – do recuo a 1996/97 com Arca recuou-se mais um ano ou dois até ao Não Sabe Nadar dos Black Company ou Todagente dos Da Weasel, entre outros clássicos.

Uma nota para a Cascais Silent Disco. Uma ideia distópica e à primeira vista peregrina revelou-se um feito com piada: o silêncio do PA é contraposto pela música vinda de auscultadores distribuídos ao público, com dois DJs distintos actuando nos dois canais disponíveis. Ideia tão conseguida que até Arca e o visitante Mykki Blanco (e sua comitiva) deram de si na pista. Num dos canais This is America, de Childish Gambino; na nossa cabeça: this is Estoril, look what we’re whippin’ up.

A terminar o certame, Hunee ofereceu um set cosmopolita e sem embaços – em termos de género e geográficos. Dois bons exemplos: Ela Mora em Mato Grosso Fronteira com o Paraguai de Jorge Ben Jor logo a abrir e a belíssima Stay Up Zimbabwe, de Bro. Valentino, lenda da calypso. É dançável, tem categoria e está na playlist? Podem contar que Hunee a vá girar.

A noite era ainda uma criança, mas o essencial do festival estava visto. Enquanto residente no concelho e melómano, a nota a atribuir é positiva, extremamente positiva. Os receios de falta de acerto no som e na acústica saíram (felizmente) gorados e a circulação entre palcos e atenta a fisionomia do espaço, deu-se sem percalços – para os fumadores e faladores, uma ampla varanda junto à rampa de acesso ao auditório bem serviu de espaço de interlúdios. Ao público que insistiu em chegar tarde: perderam coisas boas e se moram perto e aparecem a más horas é porque são mesmo burros.

É para continuar e na zona, cuja maioria de gentes precisa de aprender uma coisa ou outra sobre a identidade da música contemporânea que interessa, que a realeza presente agora é outra. E porque o Estoril precisa de nova identidade, sem reservas.


sobre o autor

José V. Raposo

Partilha com os teus amigos